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História Trégua Suspensa - Landslide


Escrita por: caulaty

Capítulo 23 - Landslide


- When I wake up well I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who wakes up next to you. When I go out yeah I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who goes along with you. - Kenny acompanhava o ritmo estalando os dedos das duas mãos com uma coesão que jamais entregaria seu estado etílico. A cantoria, ao contrário, delatava-o completamente. Embaralhou as últimas palavras, mas Kyle e Stan fizeram coro à música que tocava no rádio com maestria, como se tivessem ensaiado a tarde inteira. - If I get drunk well I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who gets drunk next to you. And if I haver yeah I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who's havering to you.

O loiro aumentou o volume e ergueu o dedo indicador como se pedisse atenção, virando o rosto para enxergar Stan no banco de trás. O contato visual estimulou os dois homens a levantar mais a voz para o refrão, enquanto Stan torcia a tampinha de uma garrafa de vidro para beber a cerveja do gargalo. Pararam em uma mercearia para comprar as garrafas antes de seguir caminho. Aquela já era a segunda que o moreno abria desde que fora sequestrado por seus amigos.

-But I would walk 500 miles and I would walk 500 more just to be the man who walked 1,000 miles to fall down at your door!

Foi a vez de Stan de romper com o ritmo para soltar uma gargalhada que não era exatamente bêbada. A embriaguez se devia muito mais ao estado genuíno de empolgação e adrenalina sobre fazer algo tão fora do comum naquela época, mas que costumava ser cotidiano para ele. Stan tinha facilidade em esquecer o quanto sentia falta de determinadas coisas até que entrasse em contato com elas novamente. Kyle dirigia e, naturalmente, ainda não tinha tocado em uma gota de álcool e muito menos aceitado o baseado vergonhoso que Kenny enrolou no carro, que deixaria o couro do banco cheirando a maconha a semana inteira. Aquela era a menor das preocupações do ruivo no momento. Ele também não tinha problema algum em cantar com um sorriso largo que acompanhava o espírito alterado dos outros dois.

Kenny já tinha se livrado dos sapatos e apoiava um dos pés sujos no painel do carro, tragando devagar, de olhos fechados como se isso pudesse potencializar o efeito da droga. Quase gemeu ao afastá-lo da boca, segurando a seda delicada entre o polegar e o indicador com todo cuidado. Ofereceu-o a Stan, que aceitou sem hesitar. A ausência de reclamação da parte de Kyle sobre seu pé no painel e a disposição de Stan para fumar com ele foram dois aspectos surpreendentes e positivos para Kenny naquela noite.

-When I'm working yes I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who's working hard for you. And when the money comes in for the work I'll do, I'll pass almost every penny on to you. When I come home oh I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who comes back home to you. And if I grow old well I know I'm gonna be, I'm gonna be the man who's growing old with you.

Stan tossia e gargalhava pela falta de prática. Não fumava – e sequer via – um baseado há pelo menos quatro anos, desde que noivou com Sally e passou a priorizar as questões da vida adulta. Ela não tinha nada propriamente contra, mas Stan podia dividir como água e óleo a pessoa que era na juventude e que se tornou ao lado da mulher que amava. Fumou muito durante a adolescência, coisa que o tornava ainda mais calmo do que ele já era. Kenny pareceu achar graça da dificuldade dele em se habituar com algo que, para o loiro, era como andar de bicicleta.

-Você já foi mais forte, Marsh. - Comentou alto sob o som da música, batendo no joelho de Stan duas vezes antes de pegar seu baseado de volta, escorregando no banco como se tentasse deitar.

Eles cantaram a música até o final com um comprometimento quase religioso, como se tivessem alguma obrigação sagrada com um público imaginário que ficaria decepcionadíssimo caso parassem. Kyle praticamente dançava com a cabeça, os cachos balançando tão leves com o movimento. Kenny o observava com uma admiração deslumbrada, pois era uma das coisas mais belas que ele já vira em toda a sua vida. Aos seus olhos azuis, Kyle era mais bonito do que todo o Nepal, do que as ruínas do Machu Picchu, do que as cataratas do Niagara e qualquer outra porra maravilhosa que ele já teve o prazer de presenciar. Aquele pensamento lhe apertou o peito.

Quando a música acabou, dando lugar a Starman, Kyle fez questão de aumentar o volume. Os outros dois sabiam que ele tinha uma fascinação específica pelo David Bowie em determinadas fases da carreira, algo que o ruivo levava muito a sério. Ele apertou o volante nas mãos e jogou a cabeça para trás por um segundo, logo retomando os olhos na estrada escura à frente deles. Fazia alguns quilômetros que a iluminação era escassa; a cada poucos minutos eles passavam por um poste que jogaria uma luz laranja inesperada sobre eles. Dirigiam-se ao topo da montanha. No refrão, Kyle cantava baixo, mas Kenny tinha uma voz mais forte e empolgada. Não sabia de cor o restante da letra.

-There's a starman waiting in the sky, he'd like to come and meet us but he thinks he'd blow our minds. There's a starman waiting in the sky, he's told us not to blow it 'cause he knows it's all worthwhile.

Stan não se uniu ao coro. Recostou-se no banco de trás e bicou de sua cerveja morna algumas vezes, com o corpo largado, as pernas abertas, torto e estirado como um homem abatido. Estava com os olhos fechados, mas foi como se pudesse sentir o movimento quando a mão de Kenny avançou pela perna de Kyle para acariciá-lo.

-He told me: let the children lose it, let the children use it, let all the children boogie.

 

* * *


 

Nenhum deles saberia contar exatamente quantas memórias eles tinham naquele lugar desde que eram crianças. Stark's Pond sempre foi um dos únicos ambientes da cidade em que eles sabiam que teriam paz. South Park não era uma cidade grande ou barulhenta, especialmente na época de sua infância e juventude, mas quando eles precisavam se certificar de que não haveria ninguém por perto para contar aos seus pais que estavam fumando ou para perguntar por que estavam na rua até aquele horário, aquele era o lugar certo. Era lindo de ver como o lago estava quase inteiramente congelado naquela época do ano. Kenny não tinha mais a mesma resistência ao frio depois de morar em ambientes tropicais durante a maior parte de seus dias de nômade. Esfregava as mãos como um louco e se encolhia, abraçando o próprio corpo para preservar o calor. Os três se sentavam em um tronco grosso nas próximidades do lago; não devia ser o mesmo tronco que usavam na adolescência, que também não devia ser o mesmo tronco que usavam na infância, mas eles gostavam de acreditar que sim. Os banquinhos próximos ao lago haviam sido destruídos pelo mal uso dos adolescentes bêbados e pelo próprio tempo. Kenny fumava um cigarro – que teve muita dificuldade em acender, pelo tempo úmido – encarando o gelo.

Stan enterrava sua garrafa de cerveja na neve fofa para que ela gelasse mais. Batia as mãos enluvadas para se livrar do excesso, espreguiçando-se. Kyle estava sentado entre os dois, apagando o último baseado que tinham acabado de dividir. Esfregou o rosto lentamente.

Os três permaneciam em silêncio há quase um minutos. O riso fácil da anestesia da maconha acabou morrendo aos poucos, quando eles se esqueciam do que estiveram rindo para começo de conversa. Nenhum sabia no que os outros estavam pensando – e aquilo tampouco lhes interessava no momento – mas tinham certeza de que se tratava de alguma memória daquele lugar que fez parte primordial da vida deles quando eram um quarteto inseparável.

A lembrança de Kenny, em particular, era sobre os concursos de cuspe que eles começaram a fazer bem no início da infância e foi um habito que morreu somente quando o loiro foi embora de South Park. Kyle participou com afinco até a metade da adolescência, mas depois disso, começou a julgar como um hábito infantil demais que eles precisavam largar. Stan apenas não era bom naquilo. Kenny, modéstia à parte, ganhou algumas vezes. Mas o cinturão de quem sabia cuspir mais longe do que todos os rapazes com os quais eles cresceram, e que tinha uma pontaria excepcional, com certeza era o homem que faltava entre eles.

-Eu sinto falta do Cartman. - Kenny disse de repente. Os outros dois viraram o rosto na direção dele, Stan inclinando um pouco para frente como se quisesse enxergá-lo em confirmação. O silêncio fez com que o loiro tivesse oportunidade de ouvir as próprias palavras. - Isso é muito fodido de falar? Eu não devia estar dizendo isso?

Kyle desviou o olhar para a neve sob seus pés, umedecendo os lábios em um suspiro fraco.

-Eu também sinto.

-Ele deixa um buraco, não deixa? É bizarro estar aqui sem ele.

Stan soltou uma risada curta e involuntária, mas parou ao perceber que aquilo não tinha sido uma piada sobre o tamanho de Cartman. De fato, o tronco em que estavam sentados era menor do que os de antigamente e Eric não teria lugar – espaço físico – ali. Desperdiçou alguns segundos imaginando que aquilo era um espécie de analogia estranha para a falta de lugar para Cartman entre eles. Stan sempre acreditou que eles estariam unidos independente de qualquer coisa, já que a atitude egocêntrica, muitas vezes preconceituosa e inconveniente de Cartman não fez com que parassem de desejá-lo por perto depois de tantos anos. Aquilo era como um sinal de que os quatro poderiam sobreviver a qualquer coisa. Mas Stan estava enganado. Coçou a lateral do nariz e deu um gole na cerveja. Parecia curioso e injusto que Cartman não estivesse ali com eles justamente por motivos pelos quais não tinha culpa alguma.

-Sobre o que vocês conversaram afinal? - Kyle perguntou de repente, virando-se para o loiro.

-Ah. Você sabe, sobre várias coisas. - Ele respondeu em seu tom mais sério. - Sobre pés minúsculos de gueixas naqueles sapatinhos, sobre a bolsa de valores, a opressão das mulheres no Oriente Médio, tudo. - Só abriu um sorriso ao levar o cigarro nos lábios e observar a expressão confusa de Kyle, que de repente revirou os olhos para ele. Kenny riu, soltando a fumaça pela boca. - Sobre o que você acha, inteligência?

-Você entendeu. O que ele queria com você?

O loiro umedeceu os lábios devagar, brincando com a língua nos dentes da frente. Stan lhe passou a cerveja, que Kenny passou algum tempo segurando, sem beber imediatamente.

-Ele queria saber se eu ia emborar.


 

Kenny McCormick sempre foi bom de briga. Crescendo com um irmão mais velho e seus amigos truculentos que estavam sempre em casa, considerando o ambiente em que moravam e a necessidade de sobrevivência no gueto, o loiro descobriu desde muito cedo que o segredo de qualquer briga é não ter medo de apanhar. Não levou poucos socos em seus quase trinta anos, era verdade, ele colecionava cicatrizes e hematomas sem qualquer pudor. Kenny não era um homem agressivo, não se estressava com facilidade e não gostava de socar ninguém gratuitamente, mas tinha uma habilidade sublime para fazê-lo; era rápido e conseguia derrubar um homem muito maior do que ele simplesmente por saber onde doía mais. Não era preciso dizer que, diante da figura de Eric Cartman estralando os dedos com o olhar lascivo fixo nele, como se Kenny fosse uma presa e Eric fosse um leão, ele teve certeza absoluta de que levaria uma surra. Não teve medo, coisa que não se devia somente à sua habitualidade com briga, mas principalmente pelo fato de enxergar uma surra como consequência de suas próprias escolhas. Kenny não tinha a menor dúvida de que destruiria o rosto de Cartman se estivesse no lugar dele, mas não estava.

Ele tinha problemas graves com a ideia de comer o namorado de outro homem e ainda bater nele depois disso. Cartman tinha pleno direito de fazer o que quisesse e o loiro não resistiria a nada, não daria um soco sequer de volta. Talvez, tratando-se de qualquer outro namorado, Kenny não reagisse da mesma forma. Mas tinha um respeito imenso por Eric Cartman, apesar de qualquer coisa. Genuinamente gostava dele. Nunca quis machucá-lo. Após aqueles dias de solidão que teve para pensar a respeito do que fez, Kenny não culpava ninguém e tentava ao máximo não ressentir a escolha de Kyle. Era a coisa mais difícil que já precisou fazer na vida, mas acabou se convencendo de que era para o melhor.

Kenny se aproximou dele com certa pressa, parando a poucos metros. O outro homem continuava próximo ao carro, agora com as mãos nos bolsos. O casaco grosso impermeável de Kenny, velho e de um azul marinho quase preto, estava fechado até o pescoço e aquilo fazia com que se sentisse sufocado. Ele desceu um pouco o zíper. Separou os pés como se fosse desconfortável estar ali em frente a ele.

-Faça o que tem que fazer, Cartman.

Eric o observou por um segundo com os lábios entreabertos, então sorriu sarcasticamente, transparecendo o gosto amargo em sua boca. Apertou os lábios de repente, como se precisasse segurar algo na boca. Palavras, provavelmente. Ele queria calculá-las muito bem.

-O que você ainda está fazendo em South Park afinal? Eu imaginei que você teria mais orgulho do que isso. Sabe, perder e continuar por aqui... Não deve ser fácil. - Cartman disse de sua forma extravagante, teatral, com seu melhor ar de superioridade.

Aquilo não podia enganar alguém que cresceu com ele. Aliás, talvez enganasse Kyle e Stan por vezes, pois os dois tinham facilidade em descartar as atitudes arrogantes de Cartman ou ignorá-las, especialmente para evitar que se irritassem, pois acreditavam naquilo. Mesmo Kyle, que conhecia Cartman melhor do que todos eles, ainda acreditava naquele teatro na maior parte do tempo e julgava Eric a pessoa mais forte que já conhecera. Kenny parecia o único que sempre percebeu o quanto aquilo era infundado, o quanto Cartman sempre teve tantas inseguranças e dores e desesperos quanto qualquer um deles. Kenny não culpava Kyle e Stan por não entenderem. Eles estavam em contato com o lado frágil deles, não tinham qualquer problema em chorar e admitir que estavam fodidos. Kenny lia Cartman como um livro aberto porque se identificava com ele, porque o compreendia, porque sabia tão facilmente enxergar um homem magoado, destruído, que lutava com todas as forças para não transparecer.

-Bem, nós dois perdemos. - O loiro respondeu com uma voz rouca, sem força para discutir. - Você sabe disso.

“Você sabe que o que vocês tinham também acabou”, era o que ele estava dizendo com os olhos. Não diria aquilo em voz alta porque não acreditava realmente que Cartman e Kyle fossem se separar. Mas o que quer que tivessem compartilhado de verdadeiro acabara há muito tempo. Os dois eram as pessoas mais teimosas que Kenny já conhecera em toda a sua vida e não tinha dúvida de que eles encontrariam uma maneira de continuar convivendo, talvez até fossem felizes. Mas pensar naquilo era um soco no estômago muito pior do que qualquer coisa que Cartman pudesse fazer com ele. Sentiu o vômito arder na boca do estômago, querendo subir à garganta, mas respirou fundo e se conteve.

-Olha só pra você. - Eric cuspiu, enfim deixando o ódio transparecer, rangendo os dentes por um instante. Ele era muito bom em auto-controle até que não fosse mais. Deu alguns passos à frente e Kenny não se moveu. - Você é deprimente. Um homem adulto que não tem uma porra de um trabalho decente, que só usa roupa de segunda mão do seu irmãozinho marginal, você achou mesmo que o Kyle me largaria pra ficar com você?

Kenny abriu a boca para responder imediatamente, mas segurou quaisquer palavras e chegou a levar a mão à boca, desviando o olhar, esfregando a palma pelo maxilar como se não soubesse o que fazer com o próprio corpo. Seus olhos ardiam pelo frio, ou pelo menos era isso que ele dizia a si mesmo. Quando abaixou a mão bruscamente, sua voz saiu em um volume descontrolado.

-Que merda você quer de mim, Cartman?! Eu já... - Sua respiração estava descontrolada. Sua respiração quente colidindo com o ar produzia vapor em frente ao seu rosto conforme ele falava. - Você não tem o que você queria?

O sorriso que se formou nos lábios de Cartman foi quase sádico, mas o olhar furioso jamais desapareceu de seu rosto, dando-lhe quase um aspecto de demência. Kenny pode ver claramente o quanto tudo aquilo havia deformado Eric de formas que ele jamais diria em voz alta. Foi esse pensamento, em especial, que umedeceu os olhos do loiro.

-Não. Eu não tenho porra nenhuma do que eu queria. Eu não vou ter o que eu quero até que você pegue as suas tralhas e desapareça de South Park pro resto da sua vida miserável.

Kenny usou as costas da mão enluavada para secar um princípio de lágrimas que se formavam em suas pálpebras, fungando e sacudindo a cabeça negativamente. Não encarou o outro em momento algum, mas também não olhava para o chão. Demorou para responder.

-Eu sinto muito, Cartman.

-Me poupe dessa merda. Você não sente porra nenhuma.

-Eu não pensei! - Kenny agora gritava, quase o interrompendo, enfim olhando-o diretamente. A expressão no rosto de Cartman era impossivelmente dolorosa, rígida, carregada de amargura. Fez uma pausa longa, engolindo seco, gesticulando com uma das mãos. - Se você se deu ao trabalho de vir até aqui, é porque você quer ouvir alguma coisa de mim. Eu sei disso, tá bom? Eu sei que o Kyle não foi o único que te sacaneou. Eu nunca pensei que eu conseguiria fazer isso com um amigo meu, mas ele... - Kenny apertou os olhos por um momento, esfregando o rosto com as duas mãos, perdido. Subiu os dedos pelos cabelos, umedecendo os lábios devagar, encarando o nada como se precisasse se explicar com cuidado. Cartman cruzou os braços, sem se mover. A voz do loiro saiu fraquejando, dolorosa. - Ele me deixou louco. Ele é diferente, cara.

Cartman soltou um riso baixo, levando a própria mão à testa, dizendo através da expressão que Kenny não precisava dizer obviedades, que ninguém sabia daquilo melhor do que ele. Mas não seriam essas as palavras a sair da boca de Eric, naturalmente. Ele bufou.

-O seu coitadismo e o seu arrependimento não significam porra nenhuma. Se recomponha, pelo amor de Deus, isso é patético. - Sua capacidade para manter a voz fria era algo extraordinário, mas parecia visivelmente desconfortável pela forma com que Kenny entregou os pontos. Estava desarmado.

-Bom, eu realmente sinto muito.

-Para de falar isso, caralho!

Cartman marchou na direção dele, acabando com a pouca distância que existia, enfiando a mão no bolso do casaco para tirar um relógio de bolso enferrujado que já não funcionava há alguns anos. Aquele pequeno e insignificante objeto quase fez o coração de Kenny parar de bater. Cartman lançou-o em sua direção com raiva, franzindo o rosto por um instante, e o loiro agarrou o relógio pela corrente de mal jeito, abaixando o rosto para observá-lo como se fosse necessária mais uma olhada para reconhecê-lo.

-O quê...?

-Uma recordaçãozinha. Pra não dizer que você saiu sem nada.

O relógio de bolso era algo que Kyle namorava na vitrine de uma loja de antiguidades, que já havia fechado no centro de South Park, na época em que ele e Kenny estavam juntos. Kyle ainda cursava a faculdade de jornalismo na época e Kenny tinha um emprego terrível numa lanchonete; o dinheiro do aluguel e da comida era sempre apertado naqueles tempos. Kenny teve que fazer mais horas extras do que podia contar durante três meses para ter dinheiro o suficiente para comprar o maldito relógio para o ruivo no aniversário dele. Muitas vezes, o loiro não pôde acreditar que estava economizando para comprar algo que nem cumpria sua função inicial, que era ridiculamente caro e não tinha qualquer utilidade. Mas Kyle literalmente chorou quando abriu o presente e foi um dos momentos de maior satisfação pessoal que Kenny teve durante toda a sua vida. Aparentemente, o relógio tinha pertencido a um general da Guerra da Secessão e tinha um valor histórico que somente Kyle podia entender. Cartman era suficientemente próximo dos dois na época para ter acompanhado a trágica história do relógio de bolso.

Sendo a pessoa ridiculamente organizada que era, Kyle se livrou da maioria dos objetos que o lembrassem de Kenny quando o loiro deixou a cidade definitivamente. Foi somente algum tempo depois de começarem a namorar que Cartman foi descobrir aquele maldito relógio pendurado no abajur de cabeceira de Kyle. E depois que começaram a morar juntos, ele se mudou junto com o ruivo para o apartamento e passou a ser guardado no fundo de uma gaveta. Não estava sempre à vista, mas algumas (poucas) vezes, Cartman o pegou com a corrente enrolada no bolso, sentado na cama e encarando o objeto na palma da mão.

-Eu não entendo. - Kenny murmurou, sem afastar os olhos do relógio, passando o polegar sobre o vidro.

-Não? Sério, McCormick? Então deixa eu te esclarecer. - Cartman quase sussurrava, carregado de sarcasmo. - O Kyle é doente por você. Eu tirei ele do chão e consertei ele depois da merda que você fez. - Seu punho se fechou quase instintivamente, a mão pressionada contra o abdômen. Fez uma pausa necessária, contra a própria vontade, com a respiração alterada. - Faça um favor a si mesmo e a todo mundo. Desaparece daqui. Ele não quer mais sentir porra nenhuma por você.

-E isso é suficiente pra você?

Cartman franziu as sobrancelhas de repente, tão irritado quanto confuso.

-O quê?

Kenny selou os lábios como se estivesse arrependido de ter vomitado qualquer palavra. Apertou o relógio no punho e ergueu o olhar para o outro lentamente, encarando-o intimidado pela primeira vez.

-É suficiente pra você saber que ele gostaria de não me amar mais? Isso... Te conforta?

-Vai se foder, Kenny.


 

-Bom. - Stan disse depois de alguns segundos de silêncio diante da breve e pouco detalhada versão que Kenny lhes contou. Não chegou a mencionar o que Cartman lhe entregou naquele dia. Kyle encarava o chão, roçando os dentes pelo lábio inferior, pensativo. - Eu ainda posso ver o Cartman. Mas acho que é bom eu ir me acostumando a sentir falta de vocês, não é?

-Cara. - O loiro interrompeu com um sorriso quase constrangido, algo que era raríssimo em seu rosto. - Ele ainda não disse que sim.

Kyle virou o rosto de Kenny para Stan rapidamente, substituindo a expressão melancólica por uma careta confusa, desconfiada, observando o rosto de seu melhor amigo no escuro, apoiando os cotovelos nas coxas. O moreno sorriu e envolveu seus ombros carinhosamente com o braço.

-Ele vai dizer. - Stan completou, olhando diretamente para o ruivo bem de perto.

-Como é que você sabe disso? - Kyle perguntou, sorrindo fraco pela tranquilidade nas palavras do outro, como se ele realmente soubesse de tudo. Stan Marsh era excelente em deixar essa impressão.

-Eu vou mijar. - Respondeu com uma risada fraca, batendo com as duas palmas nas coxas antes de se levantar como se desse a questão por encerrada.

Stan tinha problemas graves para segurar a cerveja na bexiga. Logo, ele desapareceu no escuro entre os pinheiros que os rodeavam. Kenny levou a mão à parte interna da coxa de Kyle e apertou em um carinho grosseiro que era tão característico dele, aproximando o rosto do pescoço do ruivo, que encolheu o ombro e riu baixinho, empurrando-o com o joelho. Kenny não se afastou. Roçou o nariz pelo cachecol listrado dele, azul e preto, macio o suficiente para ser usado como travesseiro. Deitou a cabeça no ombro do ruivo e subiu a mão ao encontro da dele para entrelaçar os dedos, afim de sentir a pele dele, incomodado pelo toque das luvas grossas. As de Kenny continuavam furadas. Kyle olhou para a pele exposta das mãos dele nos furos da lá e pensou que seria um excelente presente de natal.

-Faz muito frio em Rostock? - Perguntou, virando o rosto para tentar fitá-lo.

O loiro preguiçosamente olhou para cima, sem parecer prestar muita atenção. Demorou para abrir um sorriso sutil, quase malicioso.

-Por que o interesse, Broflovski?

Ele encolheu os ombros, retribuindo com um sorriso envergonhado, levando a mão livre aos cabelos dourados de Kenny para ajeitá-los.

-Pra saber.

-Aqui é pior. - Uma pausa. - Tudo é pior aqui.

Kyle passou alguns segundos em silêncio, enrolando alguns fios do cabelo de Kenny em seu dedo indicador, mantendo aquela expressão branca que era impossível de decodificar para entender o que se passava no cérebro dele.

-Eu tenho um emprego. - Ele repetiu a mesma frase de poucas horas antes, em seu tom mais racional que não chegava a ser convincente quando ele ainda estava sob efeito da erva. Falava desnecessariamente devagar.

-Eles têm jornais na Alemanha também.

-Eu não falo alemão.

Kenny soltou uma gargalhada.

-Se um retardado como eu conseguiu aprender, por que você não conseguiria? Não é tão diferente assim.

Agora o loiro endireitou o tronco e se espreguiçou com um bocejo escandaloso, ajeitando o braço sobre os ombros de Kyle, virando o rosto para poder vê-lo apropriadamente, seus olhos já acostumados com a escuridão. A proximidade do rosto de Kenny era quase dolorosa, porque todos os pensamentos racionalmente elaborados, tão eloquentes e cheios de sentido, simplesmente desapareceram diante daqueles olhos mais azuis do que um ser humano deveria ter, aquele rosto que já conhecia de cor. O rosto mais bonito que já viu em toda a sua vida.

Diante do silêncio do ruivo, Kenny apenas encolheu os ombros.

-Tudo bem. - O loiro disse, limpando a garganta, falando muito mais baixo do que de costume. Lembrou, de relance, um menino de dez anos que perdeu seu pirulito. - Eu não vou ficar argumentando.

Kyle levou a mão ao maxilar dele para segurá-lo de forma quase rude, fincando as pontas dos dedos na pele dele, puxando-o contra o seu rosto para colar seus lábios gelados nos dele, entreabrindo-os para sentir o calor da boca do outro, da saliva, beijando-o quase sem usar a língua. Foi breve, intenso, interrompido justamente quando Kenny menos teve vontade de parar. Poucos segundos depois, ouviram os passos de Stan na neve, aproximando-se deles enquanto fechava a calça.

-O meu pau quase congelou. - Stan comentou casualmente, corado de frio. Kenny quase caiu do tronco ao jogar a cabeça para trás, rindo alto. Kyle precisou segurá-lo pelo braço, mantendo um sorriso largo estampado no rosto.

O moreno parou de pé em frente ao tronco em que os outros dois estavam sentados, enroscados um ao outro. A perna de Kyle estava no colo de Kenny àquela altura. Ele os observou com uma expressão séria durante alguns segundos, balançando sutilmente a cabeça sem afirmar que sim ou que não, deixando transparecer um sorriso confuso, coçando um dos olhos, suspirando fundo.

-O que foi, Stan? - Kyle perguntou, quase preocupado.

-Nada, nada. Eu só... Eu sempre pensei que você estaria aqui quando... Quando o meu primeiro filho nascesse.

Stan e Kyle tinham uma sintonia inexplicável. Observando de fora, Kenny precisou sorrir pela beleza do que assistia. O ruivo cobriu a boca com as duas mãos primeiro e confirmou a pergunta com os olhos, sem dizer uma palavra. A resposta de Stan foi sorrir lagro e abrir os braços praticamente no mesmo instante em que Kyle saltou do tronco e quase escorregou na neve ao correr na direção do seu melhor amigo, colidindo o corpo no dele, mas as camadas grossas de roupa amorteceram o contato. Foi um dos abraços mais apertados que já compartilharam, quase tão apertado quanto o do dia em que a mãe de Stan morreu depois de três anos lutando contra o câncer. Kyle ria alto no ouvido dele e apertava os olhos úmidos, enquanto Kenny também se levantava, perguntando se teriam um Stanzinho na família antes de se unir ao abraço convidativo.

Kyle se desenroscou de Stan quase contra a própria vontade para que Kenny tivesse a chance de levantar Stan do chão por um momento, dando tapas nas costas dele com vontade, um gesto tão típico do abraço entre homens que Kyle particularmente não conseguia entender. Kenny segurou o rosto de Stan nas duas mãos com firmeza ao soltá-lo.

-Você nasceu pra isso, caralho. Ninguém vai ser melhor pai nesse mundo do que você. É sério.

O moreno assentiu com a cabeça com um sorriso tão genuíno que era quase iluminado, querendo mais do que tudo acreditar naquelas palavras, ainda aterrorizado pela ideia. Tinha descoberto no dia anterior, apenas. Ele e Sally discutiram a ideia há cerca de um ano, mas haviam propriamente começado a tentar há seis meses e aquela foi uma das únicas coisas em sua vida que não compartilhou com Kyle, a pedido da esposa. Ela só queria começar a compartilhar com as pessoas quando fosse algo concreto.

Kyle uniu as mãos em frente ao rosto e desviou o olhar para Kenny por um instante, com lágrimas acumuladas nos olhos, parecendo aflito. Aliviou a expressão com uma risada sem jeito, descendo uma das mãos ao peito.

-Como é que eu vou embora agora? Eu não posso ir, eu preciso ver esse bebê crescer. - Ele dizia em um tom de brincadeira, mas com uma agonia muito real.

-Que história é essa? Quando é que você tava cogitando viajar comigo pra começo de conversa? - Kenny perguntou, franzindo a testa.

-Eu não sei!

-Kyle. - Stan chamou com aquele tom tranquilo, calmo, levando a mão ao rosto do melhor amigo para delicadamente fazê-lo virar o rosto em sua direção, da maneira que certiificava a todos eles como Stan tinha a paternidade correndo nas veias. - Kyle.

A mão continuou espalmada na bochecha do ruivo. Eles trocaram um olhar longo, demorado, do qual Kenny absolutamente não fazia parte. Sentiu-se quase invasivo ali entre os dois. Parecia haver algum tipo de comunicação telepática durante algum tempo, entre o rosto ansioso de Kyle e a calma segura de Stan, que roçava o polegar pela pele dele.

-A gente cresceu. - O moreno disse, finalmente. - É diferente agora.

E era, era diferente da primeira vez.

O que assustava Kyle realmente na grandeza daquela situação era o fato de que ele parecia não ter escolha. Lançou um olhar breve ao loiro, que se afastou alguns passos sem que eles percebessem, mas ainda olhava para os dois com as mãos nos bolsos. Aquela criatura tão falha, que fumava e bebia demais, que falava palavrão nas horas mais inapropriadas e passava tempo demais sem lavar o cabelo, que não precisava de dinheiro, de estabilidade ou de roupas sem rasgos para ser feliz, aquele homem que o fazia rir com as suas caretas tão naturais e os seus gestos de criança, que era imensamente mais inteligente do que as pessoas julgavam que fosse, que tinha interesses tão peculiares sobre eventos sobrenaturais e acreditava piamente em vida em outros planetas, que estudava a parte teórica da física moderna por satisfação pessoal e tinha horror a cálculos matemáticos, que lidava tão bem com pessoas e era tão espontâneo mas também tinha uma timidez que combatia com o humor, um deslocamento social e uma inadequação tão próprias da sua alma, aquele homem que tinha um dente faltando no fundo da boca e as unhas sujas, que o beliscava com força demais nas suas brincadeiras sem medida, aquele homem tão estranho e confuso e inapropriado era o amor da sua vida. Seu oposto. Que o enlouqueceu o suficiente ao ponto de fazer coisas que jamais pensou que faria, das quais não se orgulhava mas também não conseguia se arrepender, porque Kenny era o ar que ele respirava.

-Eu tenho que começar a aprender alemão, não tenho? - Kyle perguntou.

Stan assentiu com a cabeça, levantando um pouco o canto dos lábios em satisfação.

-Nós vamos nos mudar. Sally e eu, para uma casa maior, por causa do bebê. Não precisa se preocupar, sempre vai ter um quarto pra quando você vier. - Ele levou a mão pelos cachos ruivos do melhor amigo, acariciando a parte de trás da cabeça dele.

“Pra visitar com ele ou pra voltar de vez. Se tudo der errado, você volta. Mas não vai dar”, foi o que Stan lhe disse com os olhos.

-É sério isso? - Kenny perguntou, como se tudo acontecesse rápido demais para que a mente dele pudesse acompanhar. O ruivo confirmou com a cabeça com um sorriso imenso de expectativa, quase encolhendo os ombros como se a coisa toda tivesse acontecido sem que ele tivesse controle de nada.

O loiro se aproximou rapidamente para erguê-lo no colo com tanto afinco que quase foram parar no chão, gritando com uma gargalhada para que ele repetisse, enquanto Kyle gritava e ria com toda liberdade naquele lago isolado na montanha, como se os três fossem as únicas pessoas do mundo. Stan os observou com um resquício de melancolia que tentou engolir, preservando o sorriso no rosto,


 

* * *


 

A árvore de natal montada no centro da praça pública de South Park era imensa, imponente, mais bonita a cada ano que passava. Na noite de natal, sempre havia o coro das crianças da igreja montado na praça e depois a maior parte da cidade se reunia para assistir às luzes da árvore sendo acesas para potencializar ainda mais a sua beleza. A neve que caía era fina e estava quase cessando. Kenny carregava Honey sobre os ombros enquanto ela tentava pegar os flocos de neve com a língua, conversando com Craig Tucker enquanto a sobrinha se segurava nos cabelos dele para manter o equilíbrio. Havia muitos rostos conhecidos ali. Token também trouxe seu menino para ver as luzes e a decoração de natal, acompanhado da nova namorada que parecia se dar extremamente bem com o garoto. Havia uma banda de elfos que tocava músicas natalinas, enquanto algumas garotas – igualmente fantasiadas – distribuíam lembrancinhas para todas as crianças que encontrassem. Kyle conversava com a cunhada, Ruby, e com seu irmão que estava um pouco mais pegajoso do que de costume, abraçando-o de lado e apertando com saudade precipitada.

Na manhã daquele mesmo dia, Kyle contava a eles, acordou em um quarto praticamente todo encaixotado, com Kenny engatinhando sobre ele completamente nu com uma pequena caixa de presente com o relógio de bolso que acreditou ter deixado no apartamento de Eric, esquecido numa gaveta, e se torturava por isso há semanas. Kenny disse que não tinha dinheiro para uma aliança – e nem teria tão cedo, pois todas as suas economias seriam investidas na mudança – mas que aquilo poderia cumprir o papel durante o tempo necessário. O relógio tinha sido a promessa de que ele voltaria quando fosse a hora certa. Tal hora tinha chegado.

As luzes já estavam acesas e o coro da igreja já tinha parado de cantar. As pessoas se dispersavam aos poucos, abrindo espaço, dirigindo-se às suas casas para fazer a ceia natalina. Kenny se aproximou de Kyle com a sobrinha ainda nas costas, rindo tão alegremente, balançando os pezinhos que trajavam botinhas vermelhas que combinavam com seu vestido de festa sob o casaco grosso. Kyle foi convidado para a ceia na casa dos McCormick, mas optou por passar na casa de Ike como previamente combinado, onde não ocorria propriamente uma ceia, mas um jantar de celebração dos últimos dias de Kyle em South Park. Kenny viajaria no dia seguinte, veria o apartamento e o emprego com seu amigo. Kyle continuaria na cidade até depois do ano novo para resolver as questões pessoais, o trabalho, seu apartamento e especialmente para lidar com a fúria de sua mãe, que chorou três horas seguidas com a notícia. Kenny segurou o rosto dele com um sorriso apaixonado, beijou seus lábios e pediu para que prometesse que não mudaria de ideia. O ruivo apenas riu, como se aquilo fosse realmente uma opção.

Desperdiram-se rapidamente, pois se veriam logo depois do jantar. Karen abraçou Kyle apertado, com seu jeito silencioso, sem dizer o quanto estava grata e feliz. Ela beijou o rosto dele e seguiu para o carro com seu marido, seu irmão e a sobrinha que tagarelava sem parar. Kyle ainda teve a chance de abraçar e parabenizar Sally pela gravidez e ela quase chorou ao dizer o quanto sentiria sua falta. Era uma das coisas mais honestas que dissera em toda a sua vida. Stan beijou o topo da cabeça de Kyle antes de ir embora com sua esposa para voltarem à casa do pai de Stan, onde Randy vivia com a namorada.

No meio das poucas pessoas que continuavam pela praça, Kyle viu um rosto familiar. Disse a Ike que fosse com Ruby para o apartamento em que moravam juntos com seus dois poodles, que iria logo em seguida. Ike deu-lhe um apertão no ombro, sorriu e obedeceu.

Eric Cartman nunca fora particularmente interessado nas luzes de natal. No entanto, lá estava ele, contemplando tudo afastado da multidão, com certo brilho nos olhos. Abaixou o rosto lentamente e encontrou Kyle Broflovski caminhando em sua direção. Uma brisa gelada soprou sobre eles, fazendo com que os cachos de Kyle se movessem delicadamente para trás. Eric guardou as mãos no bolsos e desviou o olhar para o chão por um momento, depois voltou a erguer o queixo para observar o céu, a neve que pouco a pouco parava de cair. O som da banda dos elfos agora era mais distante.

-Tsc, tsc. Não é um sacrilégio um judeu com a audácia de vir contemplar Jesus bem no aniversário dele? Já se esqueceu do que o seu povinho fez? - Cartman disse assim que Kyle estava próximo o suficiente para ouvi-lo.

O ruivo fechou os olhos e parou de andar por um instante, sorrindo fraco e balançando a cabeça negativamente, umedecendo os lábios ao voltar a encarar o homem alto e imponente a poucos metros dele.

-Como vai, Cartman?

Ele não respondeu imediatamente. Onde estavam, não era tão iluminado quanto nas proximidades da árvore, mas Kyle pôde ver perfeitamente o peito do outro estufar em um suspiro pesado, torcendo o nariz e a boca por não mais do que um segundo, sem olhar diretamente para ele. Os olhos castanhos de Eric estavam focados no nada, seus lábios levemente partidos como se tivesse algo a dizer, mas o silêncio se prolongou. Ele respirava mal. Pigarreou.

-Stan me disse que você... - Ele começou, voltando a encarar o ruivo com seus olhos agressivos, agora carregados de coisas inimagináveis, terríveis. Não prosseguiu.

-Eu não queria ir embora sem me despedir.

Cartman franziu as sobrancelhas. Olhava-o com a cabeça um tanto baixa, os cabelos mais longos na frente chegavam a cobrir seus olhos pela posição do rosto. Estudava o ruivo com tanta cautela que Kyle teve medo de se mover.

-Eu... - Kyle continuou, tirando uma das mãos do bolso para levá-la à testa, afastando os cachos. Desviou o olhar por um instante para pensar no que estava dizendo para preencher aquele abismo que existia entre eles. - Eu penso muito em você.

-É claro que pensa. - A resposta veio imediata, retomando o sorriso irônico que mostrava os dentes. A voz irônica de Cartman sempre vinha suave, dolorosamente macia, como se acariciasse os ouvidos.

A única forma imediata de resposta que Kyle encontrou foi assentir em compreensão com a cabeça, engolindo o acúmulo de saliva, piscando devagar. Quando abriu a boca para falar novamente, quase gaguejou. Seu nariz e suas bochechas estavam vermelhas pelo frio, seus lábios inchados, os olhos úmidos e brilhantes, tão verdes que quase doía encará-los.

-Eu sei que você provavelmente não quer ouvir mais nada de mim, mas... - Sua voz estremeceu, insegura. - Eu preciso te dizer que eu não passei esses anos com você querendo estar com mais ninguém. Enquanto eu estive com você, eu estive por inteiro. Eu te amei tanto...

Cartman o interrompeu pigarreando alto, levando o punho à boca, encarando os sapatos de Kyle com uma ruga entre as sobrancelhas, uma expressão que não entregava por inteiro o tamanho do que ele sentia ardendo dentro do peito. Precisou apertar os olhos por um segundo. Abaixou a mão devagar e ergueu a cabeça com todo o seu orgulho, a expressão em seu rosto agora impecavelmente dura, como uma escultura de pedra, sem vida.

-Eu sempre pensei que nós dois fôssemos diferentes porque nós não cedemos ao tipo de sentimentalismo babaca que todo mundo parece adorar. Não vamos mudar isso agora, Kyle. Vamos preservar pelo menos isso, que tal?

Kyle quase sorriu para ele, embora fosse um sorriso triste. Deu mais alguns passos em direção a ele, calmos e seguros agora, deixando a intimidação de lado.

-É justo.

Cartman passou a língua pelo lábio superior e respirou fundo, estreitando os olhos quando o outro parou a poucos centímetros dele, encarando-o fixamente. Podia sentir seu coração bater na garganta. Estava quase desnorteado pelo que aquele rosto bem à sua frente significava, pelo tsunami de memórias que o atingiu, os momentos em que Kyle sorria aberto para ele e Cartman o levantava com um braço só, quando tudo era diferente. Por mais que aquilo latejasse em seu peito, também ofereceu uma calma fascinante que ele jamais pensou que pudesse sentir depois de tudo.

Porque eles, desde crianças, se amavam. Era o tipo de amor que a paixão não podia destruir. Aquela ideia fez os olhos de Cartman começarem a arder.

-Você veio se despedir, não veio? Pode se despedir.

Kyle mordeu o lábio inferior de nervosismo por um momento antes de dar mais um passo à frente e encaixar os braços em volta do homem grande à sua frente, encostando o rosto em seu peito, fechando os olhos ao ouvir seu coração bater em seu ouvido, o calor emanando dele, a textura do casaco grosso e elegante que ele vestia. Cartman não o envolveu nos braços.

-Tchau, Eric. - O ruivo murmurou baixinho, deixando que as lágrimas acumuladas em seus olhos escorressem livremente pelas bochechas.

Houve um momento de silêncio antes que Kyle sentisse uma mão quente nas suas costas. E então:

-Tchau, Kahl.



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