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História Trégua Suspensa - Oh no he didn't


Escrita por: caulaty

Capítulo 3 - Oh no he didn't


Stan beliscava a ponta do nariz, olhando concentrado para o nada absoluto, a outra mão segurando firme o copo de cerveja sobre o balcão empoeirado do bar. Pirate Jenny tocava ao fundo, dando um tom muito mais dramático àquela cena de expectativa. Quando Kenny telefonou e propôs que eles se encontrassem pra beber alguma coisa, Stan ficou genuinamente surpreso. Primeiro, porque tinha quase certeza de que o loiro desapareceria depois do encontro no supermercado, porque ele costumava ser um pouco bicho do mato e escorregadio. Mesmo quando eles eram melhores amigos em seu grupo de quatro garotinhos sujos e inconseqüentes, Kenny dava um jeito de sumir por dias quando lhe era conveniente. Stan também ficou surpreso porque algo na voz do loiro parecia... Quebrado. Tão diferente do tom presunçoso e seguro que ele costumava usar.

Apesar de tudo, sentiu-se feliz. Kenny era o tipo de pessoa que enche o espaço em que ele entra; não há como não notá-lo e não há como ser indiferente a ele. Sempre com uma gargalhada alta e uma tirada perspicaz. Era sempre com quem Stan contava, na juventude, para quebrar qualquer clima de tensão e fazê-lo esquecer de qualquer problema. Não era o amigo para o qual ele corria quando precisava de conselho ou de conforto, porque esse papel o loiro nunca teve interesse em desempenhar. Não, ele funcionava na base de um tapinha nas costas, distrações e drogas ilícitas para apoiar os amigos.

E Stan sentia muita, muita falta dele.

Estava tão envolvido nos próprios pensamentos que a mão tocando suas costas fez com que ele pulasse no banco de susto. Kenny soltou uma risada de tom maldoso enquanto sentava no banco ao seu lado, apoiando os cotovelos no balcão.

-Jesus, Stan, calma. Eu não vou te estuprar.

O moreno deixou escapar uma risada nervosa, passando a mão pelos cabelos e abaixando um pouco a cabeça, respirando fundo. Estava exausto. Enfim virou o rosto para o lado e deu uma boa olhada no loiro, erguendo a mão para dar um tapa em seu ombro como forma de cumprimento. Kenny estava com os cabelos úmidos e uma jaqueta que Stan tinha a impressão de já tê-lo visto usando quando eram mais jovens. Não seria surpresa: Kenny continuava magro como na época em que os três moravam juntos, Stan, Kenny e Kyle. Sempre foi magro, desde criança, e todos presumiam que fosse porque o loiro não fazia tantas refeições ao dia como os outros. A família de Kenny sempre foi muito, muito pobre. Mas na época em que dividiam o apartamento, o loiro provavelmente uma das pessoas que mais comia nesse mundo, então a falta de gordura era culpa de um metabolismo muito acelerado. Ele parecia mais forte.

-Então. – Stan limpou a garganta, voltando a olhar para frente enquanto o loiro pedia uma cerveja ao garçom. – Você queria conversar?

-Hm? – Kenny respondeu distraidamente, atravessando a mão na frente de Stan para alcançar os amendoins em cima do balcão, pegando um punhado e levando à boca. Nem havia terminado de mastigar quando voltou a dizer. – Ah, é, eu preciso conversar com você.

O loiro bateu as mãos para limpar o excesso de farelo, espalhando por cima da madeira do balcão e recebendo um olhar de desaprovação do garçom quando trazia a cerveja dele, mas Kenny sequer pareceu reparar.

-Fiz uma coisa impulsiva e tô começando a me arrepender. Preciso que você me diga que eu fiz a coisa certa.

-Certo... – Stan respondeu em um tom desconfiado, levando o copo de cerveja aos lábios lentamente, observando Kenny com cuidado. O loiro deu um gole ansioso, quase esvaziando o copo de uma vez só, batendo-o em cima do balcão e sacudindo a cabeça. – O que você fez, Kenny?

-Sabe, eu não vou te colocar na posição de me contar o que ele disse. Eu não faria isso com você. – Rapidamente, o loiro limpou a boca úmida de cerveja com a palma da mão e depois apontou o dedo indicador na direção de Stan, o cotovelo apoiado na superfície do balcão. – Mas eu te peço o seguinte: seja imparcial no que você vai me responder, Stan, por favor.

Ele não tinha certeza absoluta de que poderia se comprometer com isso, mas fez que sim com a cabeça de qualquer forma. Era estranho. Não via Kenny há anos, nem tinha notícia dele até poucos dias atrás, mas a sensação continuava intacta: ele era um amigo. Kyle sempre dizia que Stan tinha um fraco por uma carinha de vira-lata, e essa era uma arte que Kenny McCormick dominava.

-Eu tô tão fodido, Stan. Eu achei que tinha superado essa merda toda, mas quando eu ouvi a voz dele... – o loiro bufou enquanto corria os dedos pelo cabelo molhado, inclinando o tronco sobre o balcão antes de dar o último gole na cerveja. Mas não soltou o copo. – Foi como se não tivesse passado nenhum dia. De que adiantou ter saído dessa merda de cidade, então?

Stan umedeceu os lábios.

-Não sei, Kenny. Mas você fez a coisa certa. Em ligar pra ele, digo.

-Você acha?

-Acho. Teria sido pior se ele descobrisse de outro jeito.

Alguns instantes de silêncio, os dois de cabeça baixa. Apenas o burburinho de outras conversas e problemas e comemorações e galanteios acontecendo nas mesas do bar.

-Ele ficou muito puto por você não ter contado?

Stan deixou escapar uma risada e balançou a cabeça.

-Ficou sim.

-Desculpa, cara. Eu não devia ter contado que a gente se encontrou, eu sabia que ele ia estourar pra todo lado

Stan ofereceu apenas um gesto com a mão, indicando que ele não se preocupasse com isso. Sim, Kyle havia telefonado com um arsenal de palavrões e uma voz esganiçada de bronca, mas nada realmente grave. Stan sabia que isso viria logo. Estava mais preocupado era com as reações que não poderia prever, e era esse o pensamento fixo em sua mente quando se ajeitou sobre o banco, dando mais um gole breve na cerveja com os olhos focados em Kenny.

-Tem algo que eu preciso te contar. – Stan disse, depois de uma pausa longa.

O loiro franziu as sobrancelhas.

-O que é?

-O Kyle já tem alguém.

Apesar de a recuperação ter sido rápida, Stan enxergou por dentro daqueles olhos ridiculamente azuis que Kenny havia fraquejado um segundo. Mas não houve um músculo sequer de seu rosto que o traiu ao soltar uma risada e endireitar o tronco no banco, espiando Stan de canto através dos fios de cabelo, com um ar relaxado.

-Stan. Qual é. Faz oito anos que eu não o vejo, você acha mesmo que eu tava esperando que ele estivesse disponível e me esperando? Eu não vim pensando em voltar pra ele.

-Eu sei, mas...

A mão de Kenny em seu braço o interrompeu.

-Relaxa. Eu não ligo. Não é como se eu fosse ficar em South Park também.

-Kenny. – a voz de Stan agora era mais alta e firme. Stan costumava falar muito baixo, em um tom muito calmo. A entonação fez com que o loiro estreitasse os olhos para ele, um brilho curioso nas íris azuis. – É o Cartman.

O loiro manteve a expressão confusa antes de soltar o braço de Stan e virar para trás, procurando em volta.

-Onde?

E a cena foi tão estranha que Stan demorou a entender que não era brincadeira. Mesmo assim, soltou um riso baixo enquanto sacudia a cabeça negativamente, voltando a apertar a ponta do nariz entre os dedos, suspirando baixo.

-Não aqui, seu idiota. É com o Cartman que o Kyle tá.

Kenny ainda estava com o rosto virado quando Stan soltou as palavras, então o moreno não teve uma noção muito precisa do quanto a face de Kenny o entregaria agora. O que deve ter sido reconfortante para o loiro. Os olhares não demoraram a se encontrar, Kenny com a testa levemente franzida e os lábios um tanto entreabertos, estudando o rosto de Stan por alguns segundos. Stan pulou de susto quando o punho do loiro colidiu contra a madeira do balcão, fazendo com que os copos de vidro tremessem.

-Gordo desgraçado!

Alguns olhares em torno deles se voltaram para os dois homens, mas não deram muita atenção. Stan foi obrigado a soltar um riso baixo pela forma como o xingamento saiu, porque não havia tanta raiva ali. Soava mais como um resmungo de criança. Não soube ao certo o que fazer quando Kenny cobriu o rosto com as mãos e abaixou a cabeça, se escondendo por baixo dos cabelos, grunhindo em frustração.

-Eu sabia. Eu sabia que aquele gordo filho da puta era apaixonado por ele, sempre foi.

-Kenny... Vamos, cara, pensa comigo. Isso muda mesmo alguma coisa?

Ele não respondeu imediatamente. Esfregou o rosto com as duas palmas, escorregando as mãos para baixo devagar, a pele da face um tanto avermelhada.

-Não. Mas... Porra, como isso aconteceu? – enfim, virando-se para encarar Stan, genuinamente confuso. É claro. Essa era a reação natural de qualquer cidadão de South Park ao descobrir.

-Na verdade, acho que a culpa é um pouco minha. Aconteceu na noite do meu casamento. Os dois ficaram muito bêbados na festa, enfim. Passaram a noite inteira brigando porque... – uma pausa. – Eu nem sei porquê, eles brigam o tempo inteiro. E depois de seis meses de negação, eles eram um casal.

-Mas... Pode, isso? Os ancestrais judeus não se levantaram do túmulo e declararam uma guerra por ele estar com um neo-nazista? Não existe alguma lei contra esse tipo de coisa?!

Stan deixou escapar uma gargalhada, mas a expressão de Kenny ainda era séria. Sua boca era uma linha reta.

-Eu demorei muito tempo pra entender. Porra, nem sei se os dois entendem.

-Você é casado há quanto tempo?

-Três anos.

-Faz três anos que eles vivem nessa blasfêmia?

Stan confirmou com a cabeça, chamando o garçom para que trouxesse mais uma cerveja para cada. Por algum motivo, achou que Kenny precisava.

-Stan.

-Hm?

-O Kyle é feliz com ele?

O moreno levou a mão à nuca e coçou em um gesto de nervosismo, visto que a resposta não chegava a ser exatamente clara para ele também. A única certeza absoluta que ele tinha era de que nunca seria feliz no tipo de relação que Kyle e Cartman levavam, porque parecia a situação mais desgastante possível. Envolvia muita dor de cabeça, drenava os dois emocionalmente, era um choque de dois cérebros totalmente opostos que nutriam um ódio por natureza um pelo outro. Era obsessivo, doentio. Pelo menos visto de fora. Mas Stan também enxergava outra coisa ali. Um fogo. Uma paixão que, mesmo em três anos de relacionamento, parecia o tipo de paixão que só se sente nos primeiros meses quando se conhece alguém. Sim, era loucura. Mas era muito visível o quanto eram loucos um pelo outro, como se deve ser louco por alguém com quem se escolhe dividir a vida. Stan acreditava que os dois tinham o essencial.

-Eu acho que sim, Kenny.

A conversa se estendeu por horas noite adentro. Logo, estavam falando de coisas que não fizessem a cabeça de Kenny latejar. Stan contou como conheceu a esposa, como mudou de emprego, como estavam as pessoas que estudaram com eles, que conheciam desde criança. Kenny contou sobre todos os países em que havia morado, como sobrevivia sem emprego fixo, mudando de casa a cada poucos meses, viajando de trem pela Europa, conhecendo a Ásia. Passou vinte minutos falando apaixonadamente sobre o Himalaia. As horas passaram tão rápido que Stan não se deu conta de que já eram 2h até que Sally telefonasse, interrompendo um papo muito importante sobre futebol. Kenny estava tão bêbado que tropeçou assim que tentou descer do banquinho para ir ao banheiro. Resmungou sobre como o marido da irmã faria com que ele dormisse na varanda da casa se chegasse àquela hora, naquele estado. Stan ofereceu o sofá de sua casa, que Kenny aceitou de muito bom grado.

A situação fez com que os dois se lembrassem – embora nenhum deles tenha verbalizado – da noite em que Kenny apareceu no apartamento que Stan dividia com Kyle com apenas uma mochila nas costas, contando que o pai o colocou para fora de casa e ele não tinha pra onde ir.

As coisas teriam sido tão diferentes se aquela noite não tivesse acontecido. Mas até hoje, enquanto se ajeitava no sofá da casa de Stan, beirando a inconsciência, Kenny continuava infinitamente grato a ele.



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