1. Spirit Fanfics >
  2. Trégua Suspensa >
  3. Reunion

História Trégua Suspensa - Reunion


Escrita por: caulaty

Capítulo 8 - Reunion


Bebe Stevens se casou com Clyde Donovan, como era o esperado. Ela não era mais apaixonada por ele desde a adolescência. Para ser bem honesta, Bebe não sabia mais se ainda possuía a capacidade humana de se apaixonar por alguém. Os homens mudaram aos seus olhos depois que ela se tornou mulher de verdade, não mais uma garota insegura que deixava os meninos passarem a mão por dentro da blusa porque precisava disso para levantar a auto-estima. Mas Clyde a amava e sua mãe lhe disse que ela não conseguiria um rapaz melhor em South Park. Bebe estava grávida. O que não era esperado – e talvez tenha acontecido por conta da gravidez – era que a garota selvagem, que todos queriam nas festas, já não existia mais. Kenny ficou surpreso ao vê-la. Ela havia engordado bastante, mas o tal brilho da gravidez realmente existia nela, deixando-a tão bonita aos olhos. Era o estágio final da gravidez, sua barriga estava imensa e seus pés estavam inchados, mas ela não deixou de se arrumar e aparecer radiante na casa de Stan, com o marido ao lado. Ela trabalhava com crianças agora, dando aula para o jardim de infância de South Park, algo que Kenny também jamais esperaria ouvir dela. Clyde era um homem feliz. Era vendedor de carros, ganhava o suficiente para pagar o aluguel de um apartamento pequenininho sobre uma loja de conveniência, grande o bastante para ele, Bebe e sua futura menininha que estava para nascer.

Craig Tucker, que Kenny se lembrava como um imbecil sem consideração por ninguém, havia entrado para o exército e servia com as tropas americanas no Iraque. Isso também foi muito surpreendente, mas pensando a respeito, fazia sentido. Ele era forte o suficiente, internalizava todas as emoções e não entrava em contato com elas enquanto era possível evitar. Era concentrado, inteligente e uma pedra emocional. Ele devia ser um bom soldado. Felizmente, ele estava na cidade naquela época, são, salvo e inteiro. Kenny não esperava ficar tão aliviado por saber disso quando Stan contou que Craig havia servido na guerra. Nunca gostou dele, mas todas aquelas pessoas fizeram parte de mais de 20 anos da sua vida, de uma forma ou outra. Craig e Token chegaram juntos, trazendo quantidades absurdas de engradados de cerveja e um menino de seis anos segurando firme a mão de Token. Kenny não esperava que Token ainda estivesse em South Park também. Ele era um gênio, almejava coisas grandes, era uma dessas pessoas que sairiam da cidadezinha para conquistar o mundo. Mesmo continuando em South Park, Token Black tinha uma carreira impecável como juiz de paz do Colorado, mantendo aquela vida de ostentação que seus pais sempre lhe proporcionaram. Kenny estava feliz por ele. Gostava muito de Token. Os dois eram solteiros, mas Token havia morado com uma mulher por dois anos e tido o tímido rapazinho que segurava sua mão aquela noite. Aparentemente, a mulher só queria o dinheiro dele e acabaram se separando. Token era discreto demais para entrar em detalhes.

Wendy também continuava na cidade, contra as expectativas de Kenny. Trabalhava como assistente da prefeita, almejando que sua carreira política crescesse ao longo dos anos. Ela era boa nisso. Wendy sempre teve um espírito de liderança, uma habilidade especial para discursar, um carisma e uma autoridade que você precisava respeitar assim que ela pisava no recinto. Era organizada, competente, inteligente e muitíssimo justa. Ela estava linda, também, foi impossível não notar. Os cabelos negros presos em um coque alto, mostrando bem seu rosto, vestindo um cachecol que a deixava com um ar de francesa intelectual extremamente charmosa. Seu pescoço era comprido e seus traços eram elegantes. Não era o tipo para Kenny, mas era uma maravilha de se olhar mesmo assim. Ela e Stan, apesar do relacionamento que se arrastou por anos, pareciam preservar uma amizade muito próxima.

A pessoa que Kenny mais esperava ansiosamente para ver era Butters Stotch, porque havia feito uma aposta interna consigo mesmo que Butters finalmente teria assumido seu lado Marjorine e andaria vestido de mulher em tempo integral. Infelizmente, ainda não era o caso. Na realidade, Butters também era a pessoa que mais havia mudado desde que Kenny deixara South Park. Ele se lembrava de Butters Stotch como uma criatura angelical, assustada, um saco de pancada para qualquer um que fosse conveniente. Mas o Butters que apareceu na porta, apesar de ainda ter a mesma voz aguda e a mesma simpatia radiante, era muito diferente. Emanava confiança. Deu um abraço caloroso em Kenny com genuína saudade, sem dizer nada, apenas apertando-o com força em seus bracinhos que continuavam finos como há oito anos. O abraço fez com que, no fundo, Kenny se sentisse um tanto culpado por esperar ansiosamente ver um travesti. Aparentemente, Butters trabalhava no escritório de advocacia de Eric Cartman. O loiro menor até chegou a desenvolver uma explicação sobre o que fazia no escritório, mas a menção do nome de Eric desconsertou Kenny de tal forma que ele não registrava mais nada do que ouvia.

Estava nervoso sobre ver Eric Cartman com Kyle debaixo do braço, é claro. Stan sabia disso. Tanto que lhe ofereceu um tapinha nas costas e um daqueles olhares de compaixão que apenas Stan sabia dar.

Kenny acreditava que Stan não tinha total compreensão de como um olhar desses podia fazer um homem se sentir um coitado. Piedade é a última coisa da qual o orgulho precisa. Stan não poderia entender isso porque era um homem livre dessas imbecilidades do ego.

Heidi Turner havia se casado com Bradley Biggle e, juntos, os dois abriram um restaurante. Apareceram com um garotinho gorducho de quatro anos tão risonho que parecia conhecer (e fazer muito sucesso entre) todos que estavam lá. Red se casou com Scott Malkinson e os dois apareceram de mãos dadas com uma garotinha de três anos. Aquilo era surreal demais para Kenny, mas ele não podia deixar de sorrir com a cena das três crianças correndo entre os adultos, envolvidas em algum tipo de brincadeira que apenas elas entendiam.

Jimmy Valmer, que tinha a comédia nas veias, estava morando em Nova York e realizando o sonho de criança. Tweek Tweak continuava em South Park, mas também não apareceu naquela noite. Craig contou que o pai de Tweek tinha uma doença degenerativa há quatro anos e Tweek era a única pessoa que restara para tomar conta dele, pois a mãe o deixou logo no começo da doença. Kenny sentiu um aperto no peito ao ouvir a história. Tweek sempre foi um garoto irrefutavelmente problemático e instável, mas nada do que lhe aconteceu era sua culpa. O mundo podia ser muito cão às vezes, foi a conclusão à qual Kenny chegou. Mas a forma com que Craig falava era quase reconfortante, porque para o bem ou para o mal, era possível ver o quanto eles se mantivera unidos apesar de tudo. Craig, Tweek, Token e Clyde pareciam tão próximos quanto na infância e adolescência, tão diferente do grupo que Kenny teve um dia.

Ike Broflovski já era um homem. Assim que ele entrou pela porta, Kenny nem chegou a reconhecê-lo de cara, especialmente com aquela barba. O loiro pôde se dar conta do quanto estava ficando velho quando viu o irmãozinho do seu ex. Ike era um médico. Médico. A relação de Kenny e Kyle não chegou a se constituir exatamente como um namoro estável de longa data, então eles não experimentaram aquela fusão entre duas famílias que costuma acontecer com relacionamentos duradouros. Ike não chegou a ser um irmão mais novo para ele, mas mesmo assim. Ele o conhecia desde que era um bebezinho, desde antes de Ike aprender a falar. O que foi cedo, porque o garoto era um prodígio. Não deixou de ser doloroso, da forma mais fraternal possível, vê-lo como um homem feito e independente. Ike vinha com a esposa envolvia debaixo do braço, que por acaso era Ruby, a irmã de Craig Tucker. Ike conversava com Craig com a intimidade de um irmão. Ruby não chega a ser uma garota bela, estava sempre com o cenho franzido e não gostava de sorrir. Mas era difícil não gostar dela, apesar do temperamento difícil, porque ela se posicionava muito bem. Ike sorriu para Kenny de longe e se aproximou para um abraço forte, um sorriso triste nos lábios.

-Que saudade de você. – ele sussurrou baixinho ao ouvido de Kenny, que não pôde conter um sorriso imenso que tomou conta do seu rosto.

Talvez por uma conspiração universal para deixar Kenny mais nervoso, talvez pelo simples fato de que Cartman vivia pela ideia de que nenhuma festa começava antes dele chegar, fato é: Eles foram os últimos a chegar.

O ambiente era preenchido pelo burburinho de conversas individuais, algumas empolgadas, outras calmas, outras desconfortáveis. As crianças brincavam embaixo da mesa da sala de jantar com o caminhãozinho que o filho de Token, Tony, havia trazido. Sally trabalhava arduamente na cozinha, recusando a ajuda de todas as mulheres que se ofereciam, enquanto Stan mantinha os olhos atentos caso algum copo de cerveja esvaziasse na mão de alguém, pronto para trazer mais uma lata. Kenny estava sentado sobre o braço do sofá com os braços cruzados e conversando com Token, que perguntava fascinado sobre a época em que Kenny morou na Índia. Butters ouvia atentamente próximo aos dois, mas não se manifestava. As sobremesas que Wendy e Bebe haviam trazido estavam dispostas sobre a mesa de jantar, junto a uma pilha de pratos.

Kenny não chegou a ouvir a campainha, estava absorvido pela troca de ideias incessante com Token e finalmente havia relaxado, segurando uma lata de cerveja apoiada na coxa.

Quem atendeu à porta foi Bebe, que estava mais próxima e viu que Stan estava ocupado demais tentando servir quatro pessoas ao mesmo tempo, rindo para algo que Clyde dizia a ele. Um sorriso quase inconsciente brotou nos lábios da loira enquanto observava o marido, abrindo a porta de forma distraída. Levou alguns segundos para que ela virasse o rosto e desce de cara o peitoral de Eric Cartman, cuja altura sempre exigia que ela olhasse para cima. O sorriso aumentou em seus lábios pintados de batom quando Bebe viu Kyle, oferecendo ao casal um oi empolgado e alto, cumprimentando o ruivo com um abraço apertado antes de jogar um beijo de longe para Eric, convidando-os a entrar.

Após a noite que passou com Kenny oito anos antes, Bebe esperava que Kyle cuspisse na cara dela quando se vissem novamente. Mas os eventos foram bastante contra o que ela esperava. Na época, ela era uma garota sem muitos princípios e que priorizava o prazer e a bebedeira, mas sua consideração e carinho pro Kyle sempre foram inquestionáveis para ela, e a última coisa que desejava era que ele sofresse. De alguma forma muito estranha, aquilo os aproximou. Não imediatamente, não de forma simples, mas a traição de Kenny resultou em uma noite muito honesta entre Bebe e Kyle, em que a loira terminou em prantos, pedindo perdão. A resposta de Kyle foi seca, porém compreensiva: “Você não fez nada de errado, você não me devia nada. Ele sim.”

Isso, é claro, aconteceu antes que Kenny fosse embora de vez. Nessa época, Kyle ainda mantinha uma postura forte e segura da própria decisão, afirmando com todas as letras que tinha acabado e que não queria ver Kenny, senão nunca mais, pelo menos não tão cedo. Bebe entendia que Kyle era uma pessoa extremamente orgulhosa, e portanto, não acreditava que ele estivesse tão bem e seguro quanto à própria decisão. Isso ficou escancarado quando Kenny foi embora de South Park sem a menor intenção de voltar. Ela se lembrava muito bem de como Kyle ficou em frangalhos. Como ele desapareceu de todos os ciclos sociais durante quase seis meses, como as únicas notícias que os amigos recebiam eram de Stan, que permaneceu tão fiel ao lado dele mesmo que isso o estraçalhasse por dentro.

Essa era a coisa mais incrível. Stan cresceu para se tornar o tipo de homem simples, que não exigia muito da vida, que cuidava de sua horta, se importava com os animais e não tinha vergonha de chorar (especialmente quando bebia). Kyle poderia ser o mais feminino dentre eles, mas Stan com certeza era o mais sentimental. De alguma forma, isso o tornava o mais forte. Bebe sempre achou que Kenny fosse o mais forte, mas ele fugiu correndo do país assim que as coisas deram errado. E Cartman podia ter o tamanho todo e a atitude grosseira, mas por dentro, era só tirar um tijolinho da parede que ele construiu para se proteger e ele despencaria completamente. Assim como Kyle. Os dois tinham muito mais em comum do que as pessoas poderiam enxergar, olhando de fora. Kyle era tão agressivo e passional por baixo do orgulho e da postura de superioridade, isso se tornou muito claro na ausência de Kenny. Bebe teve medo de que ele nunca conseguisse se recuperar.

No entanto, provando que ela estava errada, Kyle se reergueu às custas do bem estar e sanidade mental de Stanley Marsh, que deu tudo o que tinha e o que não tinha para que Kyle fosse feliz de novo. “Feliz” era exigir demais, mas ele ficou bem. Bebe se fez o mais disponível que podia para ele durante essa época, tentando cessar uma espécie de culpa. Foi ela quem disse que Kyle deveria parar de pensar em quem não estava mais ali e começar a olhar em volta, para quem estava perto dele.

E Eric Cartman teve uma chance.

Bebe alisou a própria barriga voluptuosa e observou os dois homens entrando com um sorriso no rosto. Quando disse aquilo ao Kyle, ela se referia a Stan. Na verdade, Eric deveria ser a última pessoa na qual Bebe pensaria em dizer para que Kyle considerasse enxergar com outros olhos, mas acabou acontecendo e ela não lamentava isso.

-Porra, tá congelando lá fora. – Cartman resmungou alto, esfregando as mãos, aliviado com o calor da casa. Depois se virou para a loira que fechava a porta. – É impressão minha ou você engordou?

Bebe respondeu apenas com um tapa no peito do homem ao passar por ele, mas o fez com um sorrisinho no canto dos lábios. O tapa de Bebe foi seguido por outro de Kyle, no mesmo lugar; mas ao contrário da loira, ele não sorria.

-Cartman!

O homem o segurou pelo pulso e o puxou contra o seu peito, sorrindo maliciosamente ao ponto de deixar uma risadinha escapar pela boca, inclinando um pouco o tronco para correr a ponta do nariz pelo pescoço de Kyle.

-Eu adoro quando você me chama assim... Só faz isso quando tá irritadinho.

-Vai se foder. – a resposta veio em um tom estranhamente casual; e de fato era, qualquer um que convivesse um pouco com os dois saberia disso.

Para Kyle Broflovski e Eric Cartman, um “vai se foder” tinha quase o mesmo peso de um “eu te amo” para a maioria das pessoas.

Kyle foi à direção de Stan, que conversava com Craig e seu irmão sobre hockey ou qualquer outro esporte pelo qual o ruivo não se interessava nem um pouco. Passou por Butters no caminho e o cumprimentou com a cabeça, distante, observando de relance o brilho nos olhos azuis dele ao perceber que Cartman havia chegado. Butters era louco por ele. Kyle estava perfeitamente ciente disso (bem, seria preciso ser cego para não enxergar, àquela altura). Mas isso não chegava mais a causar estranhamento; Kyle aceitava aquilo como uma admiração de subordinado pelo seu chefe, embora não fosse. Foi a forma que encontrou de conviver com aquilo.

Chegando por trás de Stan, o ruivo cutucou suas costas apenas por formalidade; Stan já sabia que ele estava ali, sinalizou isso ao esticar a mão para trás e puxá-lo ao seu lado, passando-o debaixo do braço enquanto ouvia atentamente o argumento de Craig. Ike observou com curiosidade como Stan parecia sentir o cheiro de seu irmão assim que ele pisava no ambiente. Talvez fosse pelo “vai se foder” que Kyle gritou alguns segundos antes, mas era impressionante de qualquer forma. Os dois podiam se comunicar sem abrir a boca. Ike nunca conhecera duas pessoas (nenhum casal, inclusive ele mesmo e Ruby) com tanta sintonia entre si.

Geralmente, Cartman estaria atrás deles arrancando o braço de Stan dos ombros de Kyle e bufando como um bulldog, mas naquela noite, ele tinha assuntos mais importantes com os quais se preocupar. Marchou diretamente até Kenny, que continuava sem reconhecer a presença dos dois, concentrado na conversa. Token viu Eric chegando pela visão periférica, mas não se virou para ele, embora pesasse em sua mente se estaria disposto a levar um murro caso tivesse que separar os dois de algum arranca-rabo. Felizmente para Token, não foi o caso. Eric apenas parou ao lado dos dois com uma expressão ilegível no rosto e disse:

-McCormick.

Kenny se assustou com a voz dele. Muito mais do que deixou demonstrar, o que foi um alívio, porque mostrar fraqueza diante de Eric Cartman nunca era boa ideia. Cartman era basicamente como um cachorro raivoso que podia sentir cheiro de medo. E Kenny sempre teve um pouco de medo dele.

Não por uma questão física. Não, isso nunca. Kenny cresceu com um pai violento, um irmão mais velho abusivo, trabalhou em bares e botecos a vida inteira, já separou brigas de homens muito maiores e mais pesados que Cartman. Mas mesmo assim, crescer com ele foi, psicologicamente, uma experiência complicada. Todos acreditavam que ele mudaria quando crescesse, que se tornaria diferente, mas os amigos íntimos sabiam que não. Kenny não era mais um amigo íntimo, é verdade. Estava longe disso. Mas conhecia Eric Cartman, dividiu vinte anos de sua vida com ele e ainda podia enxergar em seus olhos castanhos: ele continuava exatamente a mesma personificação de todas as coisas feias que as pessoas tentam esconder lá no fundo de si mesmas.

Cartman era psicologicamente intimidador porque trazia o que Kenny tinha de pior dentro dele.

Mesmo assim, o loiro engoliu qualquer insegurança e ofereceu um sorriso no canto dos lábios, cumprimentando com a cabeça:

-Cartman.

Kenny estava grato por já ter bebido três latinhas de cerveja para esse momento.

Cartman franziu o cenho e cruzou os braços de forma pensativa, embora já soubesse muito bem o que ia dizer, e o loiro teve que conter uma risada baixa ao pensar que esse gesto era um vício de advogados. Fingir ponderar sobre uma coisa quando já está tudo esquematizado.

-Eu tenho que dizer, você me deixou curioso aparecendo aqui em South Park de novo. Por que isso?

-Bom... A minha família toda tá aqui. Acho que quase dez anos sem ver meus pais já era suficiente. Você tem algum problema com isso?

Cartman ignorou a pergunta, é claro. Não era a vez de Kenny de fazer perguntas.

-Você vai ficar?

-Eu não sei, Cartman, você tem um emprego pra me oferecer?

-Ah, não. Desculpa, Kenny. Onde eu trabalho as pessoas realmente precisam fazer alguma coisa pra manter um emprego. Sabe, não dá pra viver de encher a cara e coçar o saco.

Kenny soltou uma risadinha e sacudiu a cabeça, virando um gole de cerveja. Era engraçado como, mesmo que eles não fossem mais garotos tentando se tornar adultos, algumas coisas continuavam iguais. Talvez nem tudo tivesse mudado.

-Sabe, Cartman, até de você eu senti saudade.

-Não vem dar uma de viadinho pro meu lado, McCormick.

Agora, a risada do loiro não foi mais discreta. Foi uma gargalhada propositalmente exagerada, que fez com que Token pressionasse os lábios para não rir também.

-Tá aí uma tentativa de ofensa bem irônica, vindo de você. Olha só, Cartman. – Ele se virou no braço do sofá para se colocar de frente ao homem que bufava encarando-o, e ergueu as mãos em um gesto de trégua, a lata de cerveja firme entre seus dedos. – Eu não tenho problema nenhum com você. O que eu e o Kyle tivemos, faz uma pá de anos, nós éramos duas crianças idiotas. Eu não vim pra te incomodar.

-Bom, quem citou o judeu foi você. Eu não disse nada.

Assim que a frase foi terminada, o dito cujo apareceu ao lado de Eric tão sorrateiro quanto um rato, pegando-o desprevenido. Kyle não precisou perguntar o que estava acontecendo, sequer se deu ao trabalho, apenas bateu com as costas da mão no braço forte de Eric de forma barulhenta. Cartman olhou para baixo como se não tivesse notado sua presença antes do tapa, franzindo o rosto de maneira irritada.

-O que você quer?!

-Deixa ele em paz, Eric, mas que porra. Vem comigo.

Duas coisas prenderam a atenção de Kenny diante daquela cena. A primeira, talvez a mais assustadora, foi como Kyle o chamava pelo primeiro nome. Era fácil esquecer que Cartman sequer tinha um primeiro nome, como todo ser humano normal, porque desde que eles eram pequenininhos, ninguém o chamava de Eric. Bom, ninguém além da mãe dele. Aquilo fez com que ele tivesse mais certeza de que não conhecia esse Kyle. Ele era diferente da pessoa por quem Kenny havia se apaixonado um dia. É claro que era, eles não poderiam ser as mesmas pessoas, nenhum deles. Bebe seria mãe, Butters era independente, Stan era casado, Craig era soldado. Nada disso fazia sentido, mas era a vida pelas quais cada um deles havia optado e eles pareciam felizes desse jeito. Assim como Kyle parecia feliz como essa pessoa nova que chamava Cartman pelo nome.

A segunda coisa bizarra aos olhos de Kenny aconteceu quando Kyle segurou o pulso de Cartman para puxá-lo, descendo a mão até a dele para que os dedos se entrelaçassem com tanta naturalidade. Bem, porque aquilo devia mesmo ser natural entre eles. Mas para Kenny, era uma aberração da natureza. Ele não acreditava que seu problema realmente fosse ciúme. Não, o incômodo na boca do estômago diante daquela cena era curiosidade. Foi isso que manteve seus olhos presos naquelas duas mãos entrelaçadas foi uma curiosidade corrosiva quanto ao funcionamento do namoro entre aquelas duas pessoas, que ele conhecera a vida toda e que sempre se detestaram.

-Token. – O loiro chamou, ainda observando o casal se afastar. – Me explica o que acontece ali, por favor.

Token observava tudo de fora, com um sorriso de divertimento esboçado de leve nos lábios, quase não aparecendo. Após dar um gole na própria cerveja, ele encolheu os ombros, incerto do que Kenny estava perguntando.

-Eu não sei, cara, eu não me meto.

Houve uma pausa. Diante do silêncio de Kenny, que olhava pensativo para o chão, ele esfregou a nuca com a mão livre e prosseguiu:

-O Kyle ficou muito perdido depois que você foi embora. Eu sei que isso deve ser muito estranho pra você, os dois juntos. Mas... Só depois que eles ficaram juntos, o Kyle começou a voltar ao normal. Eu acho que eles meio que equilibram o temperamento um do outro, sabe?

Kenny esfregava o queixo enquanto pensava, com seus olhos azuis curiosamente observando o homem à sua frente, assentindo com a cabeça em entendimento.

Por mais difícil que fosse elevar aquela ideia a níveis reais, pelo menos na teoria fazia algum sentido. Havia muita paixão no ódio. Kenny sabia que, no fundo, todas as provocações, xingamentos, ofensas, tudo o que Cartman direcionava de negativo ao Kyle desde que eles eram crianças, na verdade vinha com o intuito de encobrir algo muito maior. Algo sobre o qual Cartman nunca teve controle, que ele nunca quis sentir. E em algum nível muito diferente, Kyle sempre retribuiu. Não era tão estranho assim imaginar porque os dois ficaram juntos, mas Kenny ainda não conseguia absorver a informação de que eles encontraram uma forma de permanecer juntos, em um relacionamento real. Três anos era muito mais tempo do que ele e Kyle tinham namorado. Era difícil absorver isso.

Então ele nem tentou mais. As coisas eram como eram, tudo o que ele podia fazer era continuar sua conversa e pegar mais uma cerveja.

* * *

A noite recorreu normalmente e as pessoas estavam ficando embriagadas. Stan colocou alguma seleção de músicas que fizeram parte da adolescência de cada um deles, o que foi nostálgico e trouxe todos os tipos de memórias que, até então, estavam enterradas. As pessoas riam alto. Ninguém chegou a sentar a mesa para jantar, cada um fez seu prato quando teve vontade – Sally havia preparado macarrão ao pesto, e quando todos estavam comendo, ela finalmente se livrou da obrigação de servir e sentou no sofá da sala -, divididos em pequenos grupos que se alternavam conforme a noite passava, trocando histórias antigas.

Kenny tinha uma resistência muito forte ao álcool, mas também bebia muito mais rápido do que qualquer um. Fazia muito tempo que ele não podia beber à vontade sem precisar pagar nada, então aproveitou devidamente. Estava um pouco tonto, já, mas a característica mais forte que entregava sua embriaguez sempre foi a risada. Kenny ria muito quando bebia. Puxou Wendy para dançar com ele quando começou a tocar “American Pie”, na voz de Don McLean, embora a dança só tenha durado cerca de dez segundos. Wendy ria alto de como ele precisava se apoiar nela para se mover direito. Não foi gracioso, tampouco bonito, mas eles se divertiram.

Kyle gostava daquela música. E ao se lembrar do ruivo, Kenny olhou em volta, procurando aquela cabecinha cheia de cachos vermelhos, franzindo a testa. Viu Cartman de longe, que estava, para a sua surpresa, ajudando Stan a servir quem queria beber uísque. Conversava com Butters, que estava aproveitando a ausência de Kyle para jogar um charme. A cena foi perturbadora. Kenny voltou a conversar com Wendy e Heidi, que havia acabado de colocar as crianças para dormir na cama de Stan e finalmente começava a beber alguma coisa.

Quando começou a tocar “Leaving home ain’t easy”, do Queen, o loiro pediu licença às duas mulheres, beijando a mão de Wendy e agradecendo pela honra da dança. Colocou a mão no bolso para já tirar o maço de cigarros, puxando-o do bolso da calça enquanto se encaminhava para a porta. Não chegava a cambalear ainda, mas também não andou exatamente em linha reta para chegar até a porta.

Cartman tinha razão de entrar reclamando do frio. Àquela hora da madrugada, deveria estar ainda pior. Kenny sentiu o frio congelar seu rosto assim que colocou o pé para fora da casa, mas não poderia fumar lá dentro, especialmente porque Stan era a pessoa mais naturalista que ele já conhecera e sua casa era um santuário de pureza do corpo ou qualquer porra desse gênero.

Antes mesmo de fechar a porta atrás de si, Kenny abaixou a cabeça para puxar um cigarro entre os dedos de dentro do maço, umedecendo os lábios. Assim que levantou a cabeça novamente, deparou-se com um par de olhos verdes o encarando. A luz da varanda já estava acesa e era alaranjada, brilhando naqueles fios ruivos de forma tão exagerada que fez Kenny sorrir, embora passasse pela sua cabeça voltar para dentro como se nada tivesse acontecido.

Mas ele queria fumar. E não era nenhum rato assustado pela presença de Kyle.

Bom, ele era, mas não gostaria que Kyle soubesse disso. Então fechou a porta e sorriu timidamente. O ruivo não retribuiu o sorriso.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...