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História Trégua Suspensa - What's gone is gone


Escrita por: caulaty

Capítulo 9 - What's gone is gone


-O quê, você fuma agora? Porra. Eu sabia que as coisas seriam diferentes, mas... Você ainda consegue me surpreender. – o loiro tentou dizer em um tom casual, escondendo seu nervosismo embaixo de uma risada agonizante. Pelo olhar no rosto de Kyle, aquilo seria mais difícil do que ele havia previsto.

Tateando seus bolsos em busca de um isqueiro, com o cigarro entre os lábios, Kenny limpou a garganta para preencher o vazio da falta de resposta. Pelo que ele podia se lembrar – e sua memória era muito boa para determinadas coisas, ao contrário do senso comum – Kyle não havia mudado tanto assim. É claro, eles já não tinham mais aquele espírito jovial esperançoso, nem a pele macia de recém saídos da infância, mas essencialmente Kyle continuava muito fácil de ler. O cigarro tão incaracterístico queimando entre seus dedos não destoava o suficiente aquela expressão rígida e incomodada que o deixava tão parecido com a mãe dele. Quando isso acontecia um bocado de anos atrás, Kenny podia resolver o problema com um cheiro gostoso no cangote e um beijinho no rosto. Mas pensando bem, se fosse a época em que eles namoravam, a simples presença de Kenny não seria o suficiente para deixá-lo com aquele semblante irritado.

-Me empresta o teu isqueiro. – O loiro disse com um sorriso sem graça, tentando forçar a própria sorte.

Desconfiadamente, Kyle deslizou a mão dentro do bolso e lhe arremessou o objeto de uma distância segura, continuando a fumar como se a presença dele não tivesse a menor importância. Apesar de não ser exatamente a favor dessa nova mudança (seria nova mesmo? Talvez Kyle já fumasse há anos), ele ficava muito bonito com um cigarro na boca e a fumaça dançando pertinho do rosto dele, sob a iluminação alaranjada acima das cabeças deles, dando um tom muito dramático àquela cena.

-O quê, você nem vai acender pra mim?

Enquanto Kenny esperava que ele rolasse os olhos dramaticamente, Kyle apenas o espiou de canto e encolheu os ombros, fazendo que não com a cabeça. O sorriso gradualmente foi deixando os lábios do loiro, um pouco desconcertado pela falta de reação. Ele se lembrava de Kyle tão incontrolavelmente passional que estava estranhando a falta de tapas àquela altura.

Acendeu seu cigarro em silêncio e devolveu o isqueiro educadamente, esfregando as mãos uma na outra para tentar aquecê-las.

Deu às costas para o cercado da varanda e se apoiou contra ele, dando uma tragada longa e deliciosa, soltando a fumaça com algo semelhante a um gemido de satisfação. Sempre precisava fumar quando bebia.

Então, algo curioso aconteceu. Kenny podia nunca ter sido um homem de muita fé, mas vários eventos em sua vida o levaram a acreditar que havia algum ser superior olhando por ele no céu. Ou no inferno, o que quer que fosse. Fato era: alguém se importava com ele. Isso se provou claro mais uma vez quando a voz suave de Jeff Buckley soava do outro lado da parede, por dentro da casa, abafada pela porta e janelas fechadas, mas se fazendo presente mesmo assim. O bastante para perturbá-los. Os olhos de Kyle não resistiram à tentação de observar Kenny de relance, com um franzimento sutil entre as sobrancelhas que entregava uma pergunta no tom “isso é coisa sua?”, por mais absurdo que parecesse.

I've heard there was a secret chord

that David played and it pleased the lord

but you don't really care for music do you?

Ele não ouvia àquela música há anos. Sua memória (muito perspicaz, como já foi dito) o levou diretamente aos lençóis brancos que eles dividiram há quase uma década, quando o cheiro de Kyle era o cheiro dele e a saliva de Kyle era a saliva dele. E mãos, pés, membros se enroscavam no meio da noite como se fossem um ser único. Agora, os olhos dos dois também compartilhavam a mesma visão, presos em um olhar doloroso de nostalgia e lamentação por tudo que deixaram acontecer. Kenny umedeceu os lábios, querendo se aproximar, mas não se atreveu.

Agora, as linhas suaves que formavam o desenho do rosto de Kyle haviam relaxado em uma expressão muito mais sutil. Não havia franzimento, não havia irritação. Ele se desfez entoado por aquela música que, muito tempo atrás, o fazia sorrir com tanta facilidade. Kenny chegou a parecer um fantasma diante de seus olhos, como se ele não estivesse realmente ali, em carne e osso. Ele vira Kenny tantas vezes, em tantos lugares ao longo dos anos, sempre para descobrir que era algum outro homem que muitas vezes nem era loiro, nem tinha olhos azuis. Kyle suspirou com a lembrança e quebrou o contato visual.

Kenny coçou atrás da orelha, lentamente abaixando o queixo também, deixando de lado as esperanças de prolongar aquele olhar singelo por mais alguns segundos.

And it's not a cry that you hear at night

it's not somebody who've seen the light

it's a cold and it's a broken hallelujah

-Eu achei que estivéssemos numa boa. – Kenny começou, enrijecendo os ombros em tensão por perceber que as palavras tinham acabado de sair da sua boca. – Então o que foi?

Parte dele esperava ser ignorado. Mas Kyle tinha um senso de educação acurado demais para deixar que isso acontecesse, outra cortesia da criação de Sheila Broflosvki. O ruivo cruzou os braços com o cigarro chegando ao final, batendo a cinza no pequeno cinzeiro que ele havia trazido de dentro da casa. Algumas coisas nunca mudam. Aquele mesmo garoto que insistia que todos usassem porta-copos aos vinte e poucos anos jamais jogaria cinzas no chão, mesmo no quintal do seu melhor amigo.

-Pra ser honesto, eu sinto um pouco de vergonha.

-Vergonha?

-Sim.

Esperando por uma explicação que não viria sozinha, Kenny estendeu uma mão em um gesto confuso, pedindo para que ele prosseguisse. Para o alívio deles, a música havia acabado e começava a tocar In my life, dos Beatles, suavizando consideravelmente o ambiente.

-Pelo Cartman? – Arriscou. – Eu não ligo, ele é assim mesmo. – Disse em um tom mentirosamente leve, tragando o cigarro. – Algumas pessoas nunca mudam.

-É, bem. Ele consegue ser bem difícil às vezes.

Kenny o observou por trás dos fios de cabelo que caíam em seu rosto, com um sorriso suave nos lábios que se desfez quando ele levou o cigarro à boca para mais uma tragada, dando a si mesmo algum tempo para considerar se gostaria realmente de ir adiante com aquela conversa. A resposta era muito óbvia.

-Eu não quero ser metido aqui, ok? Mas eu acabei de cair em um mundo em que você e o Cartman se suportam. Isso é paralelo e confuso demais pra mim. Então eu preciso perguntar... Como caralhos isso foi acontecer?

Pelo sorriso nos lábios de Kyle, ficou óbvia a inúmera quantidade de vezes que ele já havia escutado essa pergunta. Embora muito menos nos últimos dois anos, em que a cidade já havia se acostumado com a ideia. Kenny sentiu a parede impenetrável que o ruivo havia criado entre eles se dissolvendo um pouquinho junto com aquele sorriso.

Aquele sorriso...

Não era como o sorriso de vagabundo imprestável que Kenny tinha a oferecer naqueles dias. Era genuíno e caloroso como se só aquele ato simples de levantar os cantinhos da boca e mostrar os dentes fosse suficiente para fazê-lo se sentir abraçado. O sorriso que mostrava, por baixo daquelas roupas finas que ele vestia, por baixo do cabelo ruivo domado que já não era mais tão rebelde, por baixo do relacionamento perturbador que ele conservava com Eric Cartman, ele ainda era o mesmo garoto com os dentes levemente tortos pelo qual ele havia se apaixonado.

-O que você quer saber que Stan já não tenha te contado?

-Ah, você conhece o Stan, ele é um cavalheiro. Nunca dá os detalhes sórdidos.

Kyle riu.

-É, eu imagino.

Após alguns segundos em silêncio de expectativa, Kenny deu mais uma tragada em seu cigarro e encolheu os ombros, hesitando entre insistir no assunto ou deixar para lá. A fumaça fez com que Kyle tossisse, o que fez o loiro pensar que ele não era um fumante freqüente, mas que voltava ao hábito quando ficava nervoso ou coisa do gênero.

-É só que... – Enquanto as palavras saíam da boca de Kenny, ele podia sentir em sua garganta que era o álcool falando em seu lugar. Ele não deveria ter bebido tanto. – Sabe, o Butters tá lá dentro investindo pesado no teu homem e você tá aqui fora nessa tranqüilidade toda.

-E?

-E faz parecer que você confia muito nele.

O ruivo deu um suspiro pesado, amassando a bituca do cinzeiro, parecendo mais adulto do que nunca. A imagem foi um tanto quanto intimidadora.

-Olha, Kenny... Eu sei que você deve achar que eu fiquei louco. Que ele deve me trair, ou me bater, ou abusar verbalmente de mim...

-Ah, mas essa última não é questão de achar, eu vejo o abuso verbal desde criança. E eu vi hoje mesmo, quando vocês chegaram. – ele disse com um sorriso que tentava dar um tom de brincadeira à frase, embora ele falasse sério.

-Não é abuso. Ele não é como você imagina.

-Cara, eu não quis te ofender. Mas você deve entender porque eu acho meio... Esquisito.

-Direito seu. Você quer saber como isso durou entre a gente? Ele pode vir com os palavrões, os insultos, as grosserias, a atitude controladora na frente dos outros, mas se qualquer outra pessoa disser uma palavra ruim a meu respeito, ele esmurra até deixar no mínimo um traumatismo craniano. Ele me respeita. E acredite você ou não, ele me ama.

-Eu acho mais difícil é acreditar como alguém poderia não te amar, Kyle.

A frase foi suficiente para fazer com que as palavras engasgassem na garganta do ruivo, que estreitou os olhos em desconfiança e ficou ali parado com os lábios entreabertos, parecendo ligeiramente confuso. Kenny não conseguiu segurar o sorriso que insistia em aparecer na sua boca ao observar aquele rosto perturbado, irritadiço, e por alguns instantes ele teve certeza de que levaria pelo menos um tapa por não conseguir parar de sorrir.

Mas era inevitável.

A parte menos incompreensível daquela história toda era com certeza os sentimentos de Cartman com relação a Kyle, porque Kenny já tinha conhecimento disso há muitos anos. Muito antes que o próprio Kyle soubesse. Primeiro, parecia uma pequena obsessão infantil, uma implicância boba, mas conforme eles cresciam, tornava-se cada vez mais óbvio o que todos duvidaram uma hora ou outra: Eric Cartman era um ser humano com um coração batendo como o de qualquer outra pessoa. E ele tinha sentimentos como qualquer outra pessoa. Isso se manifestava no brilho sutil dos seus olhos castanhos toda vez que ele passava mais de cinco segundos encarando aquele ruivo zangado. Kenny não tinha dúvida de que ele deveria ser um bom namorado, apesar de ter defeitos. E só Deus sabia o quanto aquele homem tinha defeitos.

Kenny não podia culpá-lo por se apaixonar sem querer. Kyle era... Uma coisa de outro mundo, realmente. Tão temperamental, tão moralista, tão inteligente, passional, verdadeiro, educado, raivoso, impulsivo, impertinente, flertando entre uma doçura natural e um fogo agressivo que ardia o tempo inteiro dentro dele. Tão bocudo, sem medo de se posicionar, de lutar pelo que julgava certo, com um senso de ética devastador que fazia qualquer ser humano ordinário parecer um frouxo. Tão corajoso que chegava a ser inconseqüente. Tão decidido, tão certo do que queria, disposto a enfrentar um exército inteiro para conquistar o que quer que fosse fazê-lo feliz. Era um pouco intragável aceitar que sua escolha fora justamente Eric Cartman. Que essa era a pessoa que o fazia feliz agora.

Mas se fosse qualquer outro homem, talvez não mudasse muita coisa. Era mais fácil se deixar distrair pelo fato de que Cartman e Kyle - que cultivavam tanto ódio um pelo outro - estavam juntos do que enfrentar o fato muito simples de que ele sentiria dor ao ver Kyle com qualquer outro homem. Ele achou que isso estivesse sob controle agora, depois de tantos anos. Mas o mero pensamento lhe dava vontade de vomitar.

-Não venha com nenhum romancezinho barato para cima de mim, Kenny. Por favor.

Ele não pôde evitar rir baixinho.

-Você parece muito certo disso. De que quer ficar com ele. Eu não vou mentir, uma partezinha de mim esperava que você me dissesse que ele está te chantageando ou coisa do gênero.

-Que horror. – Kyle respondeu com uma risada que tentou conter, mas a expressão sedutora de Kenny não permitiu.

-Na verdade... Eu esperava voltar pra South Park e encontrar você e o Stan juntos. É outra coisa que eu não consigo entender, como é que isso não aconteceu.

O ruivo não parecia surpreso ao ouvir aquilo. Seus dedos magros alisavam seu queixo enquanto ele pensava, um gesto que ele fazia desde muito jovem, e era nostálgico observá-lo fazendo isso mais uma vez.

-Ele não me queria. Você só achava isso porque tinha ciúme.

-É lógico que eu tinha ciúme. O que você esperava? Nisso eu e o Cartman concordamos, pelo menos.

-Como assim? – ele perguntou em uma voz que já entregava a insatisfação com aquela história.

-Só é... Complicado estar com alguém que tem essa intimidade de irmãos siameses com outra pessoa. Foi um parto aceitar que vocês dois eram almas gêmeas, eu já estava meio conformado que vocês acabariam juntos. Eu aceitei isso. Aí eu volto e nada aconteceu como eu esperava.

-Sinto muito por te decepcionar, você deveria ter escrito as instruções em um papelzinho antes de desaparecer.

-Para com isso, Kyle. – ele disse em um tom gentil, desarmado. Apagou seu cigarro no cinzeiro que o ruivo havia trazido, querendo manter as mãos livres por algum motivo.

-Não, Kenny.

O tom do ruivo não era gentil. Era carregado de mágoa e impaciência, como quem acaba de ouvir uma série de desculpas vazias. Desculpas essas que Kenny nem chegou a dar, porque mesmo com todos os seus defeitos, ele não era um homem de desculpas. As coisas aconteceram como aconteceram e ele não se lamentava.

-Você desapareceu. – ele repetiu com a voz mais fraca, abaixando um pouco a guarda, e o loiro pôde enxergar um relance de tanta dor naqueles olhos imensamente verdes. Foi como um soco na boca do estômago. – Você simplesmente desapareceu.

-Não foi simples assim e você sabe. Você deixou bem claro que não queria ter mais nada a ver comigo.

-Mas é claro, eu tava magoado! O que você esperava?

-Então o que eu deveria fazer? Ficar aqui nessa cidade de bosta me arrastando pra vida toda, me culpando por ter estragado tudo enquanto você me superava com o Stan ou, pior ainda, com a porra do Eric Cartman?

Kyle apenas sacudiu a cabeça em reprovação, visivelmente perturbado. Suas mãos brancas cobriram seu rosto e ele deixou escapar um gemido baixo, abafado pelas palmas, esfregando os olhos enquanto se afastava um pouco do homem à sua frente.

-Você desistiu cedo demais. – Ele disse em voz baixa e resignada, suspirando fundo, deixando que as mãos caíssem nas laterais do seu corpo.

Enquanto os olhos azuis de Kenny continuavam fixos naquele amontoado de fios vermelhos que cheiravam tão deliciosamente familiar às narinas dele. Seus pulmões pareciam dilatados dentro das cavidades das costelas, seu peito latejava dolorosamente de uma forma que ele nunca tinha experimentado antes. Não era dor de nostalgia, não era devastador como quando os dois se perderam um do outro pela primeira vez, mas...

Era tristeza, Kenny reconheceu. Tristeza crua, bruta, do que havia restado. Era como andar entre escombros e se lembrar de uma tragédia tão distante que devastou algo de maravilhoso.

A respiração de Kyle era pesada e formava uma fumaça visível saindo de sua boca e nariz, colidindo com o vento gelado que o fazia se encolher com as mãos nos bolsos, tremendo de leve. Ele sempre sentiu tanto frio, Kenny se lembrava muito bem.

Antes que ele pudesse colocar em palavras, a porta se abriu atrás deles. Os dois homens se viraram para encontrar Eric Cartman com uma expressão insatisfeita, segurando a porta escancarada em sua mão grande, e os barulhos de risadas e conversas vinham de dentro da casa preencher o silêncio de fora. Tocava Mr. Tambourine Man, uma das músicas preferidas de Kenny, mas que naquele momento era completamente indiferente ao loiro.

-Kyle. – Foi tudo o que Cartman disse, sinalizando com a cabeça para que ele entrasse.

Kenny tentou encontrar naquele gesto simples algum tipo de emoção. Não soube dizer se ele estava furioso, enciumado, preocupado, bêbado, nada disso. As palavras anteriores de Kyle ecoaram em sua mente, aquelas que defendiam Cartman com tanta naturalidade: “Ele me respeita. E acredite você ou não, ele me ama.” Parte dele não compreendia porque Eric guardou para si as palavras odiosas que tão obviamente estavam na ponta da língua dele ao abrir a porta e encontrar seu namorado sozinho com o ex.

Mas a outra parte dele entendia muito bem que Eric, diante daqueles olhos de esmeralda tão grandes e magoados, não teve coragem de dizer nada ruim. Só quis tirá-lo dali o mais rápido possível. E tal compaixão vinda de uma pessoa como Eric era minimamente confuso em muitos níveis, mas Kenny entendia. Porque ele mesmo havia mudado.

Kyle tinha esse poder estranho de fazer você querer ser uma pessoa melhor.

Um olhar foi trocado entre ele e Kenny, muito brevemente, antes que o ruivo seguisse seu namorado para dentro da casa e os dois o deixassem sozinho embaixo da luz exageradamente alaranjada da varanda, no frio insuportável da madrugada de South Park. E Kenny não se sentia em casa.

Nunca havia se sentido tão inadequado na vida.



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