Óbito: 14 de Outubro de 1962
As portas de vidro do Hotel La Place abriram-se à insistente chuva, as geladas gotas escureciam o grosso casaco da mulher que viria a ser uma jornalista de ponta.
May Colleman, jovem promissora, curiosa e de natureza agressiva, traía as próprias curvas para proteger, com um quente casaco de couro, a delicada pele marfim do temporal que se formava.
Com os sapatos chapinhando as poças vinha o jovem Bruce Sarbon, raríssimo companheiro de histórias, que encantado pela graça de May via-se hipnotizado com as guerras de palavras que esta travava com corruptos e ladrões, em prol de um furo jornalístico.
- Mal dia eu diria senhorita May, apenas seu sorriso salva a beleza de uma rua encharcada.
- Encantador como sempre Bruce.
Um velho gordo desceu as escadarias internas do Hotel, de pés descalços e camisa de seda desabotoada, constrangendo as madames que ali fofocavam, berros e insultos eram apontados para a jornalista em ira tempestuosa, os olhos de Bruce se arregalaram ao reconhecer o banqueiro da cidade.
- Parece que o tempo está pior dentro do que fora do hotel, vamos depressa!
Os dois desataram a correr pelas ruas tumultuosas e lamacentas, May equilibrava-se agilmente entre os blocos da calçada, acostumada a correr de salto, parou só quando já não ouviam mais os berros do obeso corrupto.
Rindo de adrenalina, o casal de corredores entrou na Sadley Caffe de forma ruidosa, aquietando-se aos poucos conforme os olhares repreensivos dos demais clientes, esperaram o garçom colocar na mesa duas fumegantes xícaras de café.
- Como você consegue esses achados May? Possui algum poder divino para detectar infidelidade?
O delicado sorriso intensificava-se na presença das bobas piadas de Bruce, sumindo apenas um instante ao provar o café amargo demais para o seu paladar, enquanto misturava açúcar ao líquido escuro começou a tagarelar-lhe as suas mais recentes descobertas.
- Os ratos que se escondem da chuva tendem a procriar, Bruce. Mas confesso ter sido inusitada a chance que tive de tirar uma foto quando vi que uma nova camareira esqueçeu-se de trancar a porta.
- Ele deve estar furioso, logo ele mandará uma conta impossível no escritório do chefe do jornal.
O som melodioso do riso da jovem apresentou-se após um prazeroso gole de café.
- Não se for demitido antes, te digo que amanhã mesmo o artigo estará pronto para impressão, Banqueiro infiel passa a mão na "poupança" de senhoritas.
Bruce engasgou-se com a bebida, sempre surpreendido com os vulgares títulos que, para May, eram tão naturais.
- Se não fosse um ex-militar viúvo, creio que o editor chefe já a teria demitido meses atrás! És única senhorita May, surpreendente!
Trocaram histórias de mais outros casos, embregados de risonha felicidade no companheirismo que tinham um pelo outro. Chegando-se a noite, May despediu-se do amigo e correu para o apartamento, redigir mais um de seus polêmicos artigos.
...
Do escritório do jornal Curious Fox ouviram-se gargalhadas fortes de um autêntico português.
- Vive me surpreendendo garota! A foto que você tirou está perfeita!
Na última tarde, o barulho da chuva se fez cúmplice do banqueiro John Rarbor, que em visita ao Hotel La Place, foi visto "debaixo dos panos" acertando à base de "pauladas" as contas de jovens endividadas.
O corpulento chefe do jornal era um estrangeiro português, versado em direito, apaixonou-se pelo jornal, vindo a fundar o seu próprio com os poucos fundos que tinha.
O largo sorriso coberto por um grosso bigode deu espaço para um olhar que denunciava preocupação, May era jovem no ramo e na vida, possuía um raro humor sagaz e um talento na escrita supreendente, mas isso a tornava imprudente.
- Divirto-me com cada palavra sua May, mas diga-me, você escondeu seu rosto enquanto fugia certo?
A quietude da jovem deu-lhe a resposta, um suspiro mais de preocupação do que de decepção foi o último barulho na sala antes de May sair do tenso escritório de Ulisses Vasco, um dos grandes nomes do jornal local, e o primeiro homem a aceitar seus artigos.
...
Atormentada pela culpa de deixar preocupado o bom homem que a empregara, May caminhava pelas vazias ruas de fim de tarde, as poucas pessoas que andavam ali eram mendigos ou trabalhadores.
Os sentidos da garota a alertaram da presença de uma figura encapuzada seguindo-a a poucos metros de distância, a pouca luz do sol que ainda sobrava por cima das casas não era suficiente para revelar o rosto do seu perseguidor.
Arriscou olhar rapidamente ao virar uma esquina, o sobre-tudo e um largo chapéu ocultavam-lhe as feições, os ombros largos e altura média revelavam que era um homem, insatisfeita com o pouco que pôde ver, May correu entre os poucos pedestres, preocupada apenas se o perseguidor estaria com uma arma nos bolsos.
Reconheceu o velho prédio onde morava seu amigo Bruce, era uma construço simples de tijolos gastos com o tempo, antes de subir as escadarias acenou para o velho porteiro Hanso Belgrado, um dos poucos homens que ela respeitava pelo caráter e honra exemplares.
Saltando os andares com pressa ela já não via mais seu perseguidor, ouviu ao longe o som de vidro quebrando, movida apenas por um certo medo ela foi apressadamente na porta do amigo, batendo sem ritmo na porta.
De dentro, o som dos sapatos no frágil piso de madeira ecoaram em direção à porta, até que Bruce a abriu, surpreso com a visita quase noturna.
- May? O que aconteceu para vir até aqui uma hora dessas?
Ele olhou nervosamente por cima dos ombros da jovem, como se esperasse que o gordo banqueiro surgisse nas escadas com dois policiais armados.
- Eu estava indo para a minha casa mas acho que estou sendo seguida, Bruce!
Preocupado, o rapaz tirou de um gancho o casaco azul que usava para o frio daqueles dias e o vestiu ás pressas, pegou as chaves e de dentro da gaveta da escrivaninha puxou um objeto metálico com um cabo de madeira, prendendo-o no cinto por baixo do casaco antes que May pude-se ver.
- Vamos, eu te acompanho até a sua casa.
A jornalista enlaçou-lhe o braço esquerdo e juntos desceram até a rua que agora era iluminada apenas pelos poucos postes, a ausência de movimentos era tão terrível quanto qualquer vulto.
Bruce a acompanhou por ruas e mais ruas, ofereceu-se para passar a noite na casa de May, que recusou e brincando chamou-o de tarado.
Apesar de saber estar segura agora dentro do prédio em que morava, May tinha a inquietante sensação de uma presença, atormentando-a por horas, até que finalmente conseguiu dormir.
*Cling*
Ela abriu os olhos rapidamente, o sono dissipou-se e seus sentidos despertaram com o pânico, lutou contra os próprios instintos para ficar imóvel e olhar ao redor.
Seria imaginação? Podia jurar que ouvira o som de metal batendo, sua visão se acostumou ao breu, olhou com calma cada canto do quarto, decidindo se deveria levantar ou não para investigar o resto da casa.
Levantou-se lentamente e em silêncio, os olhos observando em todas as direções enquanto andava até a sala, um calafrio lhe subiu a espinha quando viu a porta de entrada aberta, e paralisada pelo medo, não soltou um único ruído quando uma lâmina cortou-lhe a nuca, morrendo instantâneamente.
...
Dois dias depois, o corpo foi visto por um dos moradores do mesmo prédio, e no dia seguinte, seguiu-se um funeral com o caixão fechado para ocultar o corte que desfigurava o belo rosto de May Colleman. Lá se faziam presentes bons amigos, um jovem choroso e um alto português, no jornal daquela tarde seria posto no rodapé da página uma tristonha mensagem de pêsames.
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