Os raios de sol atingiram o rosto dela como um farol no meio da escuridão. Mesmo em seu estado meio acordada, Tsukiko estremeceu, puxou os cobertores e se virou. Mas já era tarde demais; despertara. Ela poderia tentar voltar a dormir, embora lá no fundo soubesse que seria inútil. Uma vez acordada, não importa o quão cansada estivesse, o sono não voltava.
Esfregando o rosto com uma mão, ela pegou o telefone no criado-mudo com a outra para ver a hora. As pesadas pálpebras não impediram Tsukiko de piscar várias vezes. Sete da manhã… Sete da manhã num domingo! gritou em sua mente. É cedo demais pra qualquer coisa!
Ela ficou deitada, encarando o teto, por alguns segundos… e então suspirou o mais alto que podia, como se pudesse se livrar de sua sonolência. Não adiantou; ainda estava cansada, sua visão embaçada e a mente raciocinava lento demais. Ainda assim, Tsukiko se enrolou nos cobertores, saiu da confortável cama, caminhou para fora do quarto gelado e arrastou-se até a cozinha.
A geladeira não estava vazia. Nunca estivera, já que a secretária do pai dela se certificava que o chefe sempre tivesse comida a disposição, ainda que mal comesse em casa. Mas nem Tsukiko, muito menos seu estômago, tinha qualquer desejo por comida pré-pronta ou instantânea de manhã. E comida saudável precisava ser cozinhada, uma tarefa além das capacidades dela.
Eu realmente deveria me esforçar mais nas aulas de Economia Doméstica, Tsukiko pensou por um instante antes de pegar uma caixa de leite. Ela foi até a varanda, arrastando o cobertor como uma cauda atrás de si. Estremeceu novamente e cobriu os olhos. O sol brilhava forte e alto no céu, sem nuvens bloqueando-o, todavia, o ar estava gelado e a garota enrolou-se mais nos cobertores.
Ainda que fosse muito cedo, muitas pessoas andavam pela rua. Ela os observou por um momento, sua mente não dando tanta atenção. Por que eles estão com tanta pressa num domingo? Havia uma mulher falando no celular, movendo as mãos como se explicasse algo para a pessoa do outro lado da linha. Um homem arrastava o filho, que se recusava a sair de onde estava. Outra mulher estava com a maquiagem toda bagunçada, caminhando de cabeça baixa… e muitos mais. Eles deviam estar dormindo… que nem eu, pensou ela, suspirando.
Tsukiko observou a rua e bebeu o leite direto da caixa, tentando acordar a mente. A garota não tinha ideia de quanto tempo se passara até escutar um pequeno espirro. Era baixo e contido, como se não quisesse incomodar ninguém.
Com as duas mãos, ela agarrou o parapeito, se inclinando o máximo que podia, e estendeu o pescoço até conseguir ver a varanda do apartamento vizinho. Quando viu o garoto de cabeleira castanha desarrumada com a cabeça baixa e assoando o nariz com um lenço, Tsukiko sorriu.
— Taiyou-kun! — Ela tirou uma das mãos do parapeito e acenou, toda a sonolência embora.
O garoto levantou a cabeça devagar e olhou para ela com os olhos inocentes, a ponta de seu nariz levemente vermelha. Ele é tão fofo que quero apertar suas bochechas!
— Bom dia. — Ele fechou os olhos e a cumprimentou com um pequeno aceno de cabeça.
— Bom dia! — Tsukiko loco trocou seu sorriso por um aceno simpático. — Pelo visto você também está acordado nesta hora inglória. Que pena para nós dois.
— Hora inglória? — perguntou ele em voz baixa, inclinando a cabeça. — Geralmente já estou acordado a esta hora nos finais de semana.
Tsukiko parou de acenar com a cabeça. Ainda que o menino não tivesse dito aquilo com qualquer outro sentido, ela sentiu como se estivesse perdendo para ele.
— É mesmo? Então você é um desses madrugadores que tantos escuto, é? — Ela disfarçou com uma risada aguda.
— Com licença — disse Taiyou-kun, tocando a parte superior dos lábios discretamente.
Ela inclinou a cabeça. O que ele está fazendo? Está se coçando? Um segundo depois, Tsukiko estava imitando o menino sem perceber. Por algum motivo, o lábio superior dela estava úmido. Ela olhou para o dedo; estava branco. Ela saiu da varanda e rapidamente limpou a boca com as costas da mão. Que droga! Bigode de leite? Sério isso? Não consigo uma bola dentro perto dele não?
Tsukiko não tinha irmãos ou primos da sua idade, e apesar de dizer que tinha sorte por isso, ela invejava alguns amigos quando reclamavam dos irmãos. Desde que conhecera Taiyou-kun, ela queria dar uma de irmã mais velha. Mas o menino não era só mais educado e calmo que ela, como Tsukiko vivia mostrando apenas o seu lado desajeitado.
É minha punição por tentar ser diferente do que sou? pensou, pequenas lágrimas formando no canto dos olhos. Quase ao mesmo tempo, sua barriga roncou alto. Por que a sorte nunca está do meu lado? Ela abraçou o estômago. Será que ele ouviu? Não foi tão alto…
— Se estiver com fome… — Ele destroçou suas esperanças na mesma hora. — Digo, caso não se importe… — disse com seu tom baixo e super educado de sempre.
Apesar de falar no mesmo tom, por algum motivo, a imagem das maçãs do rosto de Taiyou-kun ficando um pouquinho vermelhas veio à a mente de Tsukiko. Mas provavelmente não estão tanto quanto as minhas. Ela deixou os ombros caírem, a ideia não a confortou nem um pouco.
— Gostaria de convidá-la para tomar café da manhã…
A boca dela se abriu por um momento… para depois os lábios se curvarem em um sorriso.
— Claro! Estarei aí em um segundo! — Tsukiko rapidamente jogou os cobertores para o lado e correu até o vizinho.
Taiyou-kun abriu a porta antes que ela batesse pela terceira vez. Ele fica tão fofo de pijama, pensou ela, sorrindo. Mas seu sorriso logo diminuiu quando percebeu que também estava de pijama. Droga! Eu devia ter trocado de roupa! Por que não fiz isso? Sentindo-se derrotada de novo, seus ombros caíram. Não tem nada que eu possa fazer agora. Acho que eu nunca fui feita pra bancar a irmã mais velha dele.
O apartamento dele era tão grande quanto o dela, e tão organizado quanto. Mas existia uma grande diferença entre os lares: a decoração. O pai dela nunca se importou muito com isso. Fora o básico, boa parte dos quartos parecia como se tivessem acabado de se mudar. Só o quarto e sala de estudos, que tinha esse nome sem razão, pois ela nunca a utilizava para seu propósito, dela foram totalmente decorados.
O apartamento do Taiyou-kun era um lar de verdade. Tsukiko sabia que cinco mulheres moravam ali com a tia do rapaz, mas já que todas se mudaram recentemente, ela esperava que o apartamento estivesse vazio. Mas estivera errada. Não importa para onde olhasse, podia ver algo mostrando que uma família feliz morava ali. O belo papel de parede, o armário de troféus, os DVDs e BDs bem organizados, o tapete. As paredes e as mesas estavam cheias de imagens da tia de Taiyou-kun com outra mulher segurando um bebê, da mãe do rapaz, dele e sua mãe, dois senhores de idade abraçando o menino, da tia com o casal de senhores, e várias outras, cada uma delas com vários sorrisos.
Então ele consegue sorrir assim, pensou Tsukiko, pegando uma foto emoldurada, um sorriso apareceu em seus lábios. Eu quero ver… Havia fotos dela e de seu pai no apartamento deles, mas não era nada como aquilo. Toda esse amor familiar a envolveu, e ela não conseguiu deixar de sentir um calor dentro dela.
Taiyou-kun foi para a cozinha. Tsukiko colocou a moldura de volta e foi atrás dele. Ainda que não estivesse no clima para comida pré-pronta, ela não se importaria se fosse na companhia dele. Mas quando o garoto pegou um avental, abriu a geladeira e colocou uma caixa de ovos no balcão, Tsukiko arregalou os olhos.
— Você vai cozinhar? — As palavras saíram de seus lábios antes que ela pudesse pará-las.
Ele inclinou a cabeça, os olhos se estreitaram um pouco.
— Sim — disse em voz baixa antes de pegar os outros ingredientes e fechar a geladeira.
De repente, Tsukiko teve problemas em controlar sua língua. Sua verdadeira pergunta agora era se o menino sabia cozinhar. Ela tentou o melhor que pode para ficar quieta. Perguntar aquilo só mostraria outra parte dela, aquela que não conseguia fazer algo que uma criança dois, três anos mais nova que ela podia. Sou tão inútil, pensou, suspirando mentalmente.
A sensação de derrota cresceu dentro dela outra vez. Ela precisava fazer algo, apenas não sabia o quê.
— Me deixe ajudar —Tsukiko disse por impulso. Mas ela se arrependeu no instante que as palavras deixaram sua boca e rezou que o menino recusasse. Dada sua educação infinita, tem uma boa chance de ele recusar… Sou tão patética que estou dependendo da educação de uma criança, pensou ela, uma risada vazia ecoando em sua mente.
O garoto olhou para ela por um momento, como se visse que a oferta era nada além de um gesto vazio. Ele acabou aceitando a ajuda dela, embora só a desse tarefas simples, como cortar vegetais.
Ao menos eu posso fazer isso, pensou ela, enrolando as mangas do pijama. Taiyou-kun presta atenção até nesses detalhes… Em vez de ficar triste por outra coisa em que o rapaz era melhor do que ela, Tsukiko sorriu. Ele é muito atencioso.
Eles terminaram antes que ela percebesse e o cheiro do omelete com arroz encheu a cozinha. Taiyou-kun passou o ketchup para ela e Tsukiko desenhou uma cara sorridente no seu omurice, combinando com aquele em seus lábios. Um segundo depois, ela notou o garoto olhando para a comida dela. Ele tinha a mesma expressão inocente, mas Tsukiko jurava que havia uma luz fraca em seus olhos. Por impulso, ela puxou o prato dele e fez a mesma cara sorridente na sua comida antes de devolver.
Taiyou-kun olhou para ela. A expressão continuava a mesma, mas, por um segundo, ela pensou que tinha ido longe demais. Por que fiz isso? Só nos conhecemos faz poucos dias. Não posso sair agindo desse jeito com ele.
Tsukiko prendeu a respiração, os segundos se alongando… e então ele sorriu. Embora não chegasse perto dos sorrisos das fotos, Tsukiko não conteve seu próprio pequeno sorriso e fez um cafuné no cabelo dele. Ah, droga. Acabei de me mandar tomar cuidado com esses impulsos… Mas desta vez a reação do garoto foi pegar duas colheres e entregar uma a ela.
— Delicioso! — gritou Tsukiko, arregalando os olhos. O omurice não apenas parecia bom, também era quente e macio, e derretia na boca dela. Chegou a pensar por um piscar de olhos que era um pouco triste uma criança conseguir criar algo tão bom quanto a comida de um restaurante, enquanto ela mal conseguia cozinhar, mas assim que deu a segunda mordida, a ideia se foi, e ela apenas apreciou a refeição. Vou me esforçar mais nas aulas de economia doméstica e fazer alguma coisa gostosa pra ele… um dia.
Quando terminaram, Tsukiko agradeceu pela comida em voz alta, enquanto ele mal murmurou as palavras. Ela se inclinou contra a cadeira e alongou os braços enquanto Taiyou-kun levantou e caminhou até ela. Tsukiko notou o que ele queria e tirou o prato de seu alcance.
— Eu lavo a louça. — Posso fazer isso ao menos. E poderia servir para salvar um pouco sua imagem já destruída de irmã mais velha.
— Mas você é uma visita — respondeu ele com seu tom quieto, olhando-a direto nos olhos.
— Eu quero fazer isso. — Ela ia agarrar o prato dele também, mas ele segurou com força. — Já que você cozinhou, eu deveria ao menos limpar. — Ela puxou o prato, mas o garoto não se mexeu.
— Você ajudou a cozinhar.
Embora seu tom fosse o mesmo, a garota podia jurar que tinha um toque de impaciência. Ele é surpreendentemente teimoso. Enquanto ainda tentava puxar o prato, Tsukiko considerou a melhor forma de lidar com aquilo.
— Seria um incômodo para mim se eu não ajudasse de verdade — disse ela, lembrando-se da primeira conversa deles.
O prato tremeu por um breve instante e depois ele soltou, suas bochechas com um leve tom cor-de-rosa. Ainda que tenha funcionado, Tsukiko sentiu uma pequena culpa… mas, vendo o rosto envergonhado dele a fez esquecer quase imediatamente.
Embora raramente lavasse a louça na própria casa, Tsukiko se foi bem e não teve qualquer problema, ainda mais com Taiyou-kun ao seu lado o tempo todo. Não esperava que ele fosse bom em conversa fiada, pensou ela, sorrindo. Era outra coisa que descobrira sobre o menino. Ele acha que é rude deixar uma visita sozinha a qualquer instante? Ela riu e fez um cafuné na cabeça dele após secar as mãos.
Tsukiko bocejou e pegou o celular, conferindo a hora. Mal passou das nove… ainda faltam duas horas… pensou ela, deixando os ombros caírem um pouco. Ela virou a cabeça para o garoto a seu lado, guardando o aparelho.
— O que você vai fazer agora?
Ele olhou para ela com uma expressão inocente.
— Nada em especial — ele respondeu, dando de ombros. Ela estreitou os olhos e olhou para ele. Ele ficou um pouco vermelho com a pressão do olhar dela. — Minha… minha tia e mãe estão ocupadas hoje, então pensei em correr um pouco ou quem sabe ler… — Sua voz foi sumindo.
— Que tal passar o dia comigo? — Ele ficou mais vermelho e olhou para baixo, mas, após um segundo, assentiu. — Perfeito! — Tsukiko sorriu.
Taiyou-kun foi para seu quarto e voltou alguns instantes depois usando um short curto e uma camisa folgada. As roupas casuais dele combinam com sua aura, pensou ela enquanto observava ele colocar o celular no bolso e pegar as chaves da casa.
— Espere aqui — disse ela, vermelha. Só depois já estarem no apartamento dela que Tsukiko lembrou. Droga, como eu esqueci? Embora o resto do apartamento estivesse limpo e apresentável, seu quarto era uma exceção.
Educado como sempre, o garoto nada comentou, mas Tsukiko teve certeza que os cantos dos seus lábios tremeram num sorriso.
Correndo até o quarto, Tsukiko rapidamente fechou a porta. Ela olhou em volta, ficando vermelha e xingando a si mesma pela bagunça do lugar. Por que não sou mais organizada? Ela se perguntou enquanto enfiava uma pilha de roupas e calcinhas em uma gaveta e jogava um pacote vazio de salgadinhos no lixo.
Ao menos não está tão ruim agora, pensou, vendo seu próprio serviço. A cama ainda não havia sido feita e tinha alguns mangás espalhados, junto de uns jogos. Normalmente, ela deixaria assim, nem muito organizado, nem uma bagunça desmedida. Suas amigas já estavam acostumadas e também ajudava Tsukiko a manter a imagem de boa moça longe de si.
Respirando fundo, ela chamou Taiyou-kun. Ele entrou e olhou em volta. Tsukiko respirou fundo e de repente se arrependeu de deixar os mangás e jogos espalhados. Ela notou que prendia a respiração. Espera, porque estou tão nervosa? Ele é só uma criança, pensou.
Tsukiko tentou se acalmar, mas não funcionou. Apenas quando viu os olhos dele brilhando enquanto encarava a grande TV dela que soltou o ar, aliviada. Vendo uma nova expressão dele compensou toda a vergonha.
— Agora, Taiyou-kun — disse, pegando os jogos no chão e levando ele até a estante, meio cheia de mangás e jogos, — faça sua escolha. Aceito qualquer desafio! — anunciou com um sorriso convencido.
Embora Tsukiko não se chamasse de gamer, ela passava várias horas jogando e tinha confiança. Ela observou enquanto os olhos dele iam de um lado para o outro da estante, junto a um pequeno sorriso nos lábios. Ele vai escolher um jogo de esporte ou um RPG? Para a surpresa dela, Taiyou-kun acabou escolhendo um jogo de luta, Street Combat. Tsukiko não conteve sua risada; ela ficara acordada até tarde da noite jogando justo aquele jogo.
Taiyou-kun não era ruim. Sabia a maior parte dos movimentos especiais e seu timing até era bom. Mas ele não teve chance contra ela.
— Nada mal, Taiyou-kun — disse, assentindo a cabeça em aprovação. — Faz tempo que joguei contra alguém na vida real que me fizesse suar um pouco assim. — Ela bagunçou o cabelo dele.
— Mais uma — disse ele.
Foi no mesmo tom baixo, mas havia algo de diferente na voz dele. Era algo pequeno, porém Tsukiko notou a diferença. Quando ela olhou para seu rosto, a expressão permanecia a mesma, mas os olhos estavam um pouco apertados. Ele está… bravo? Ela não sabia se ria ou o abraçava. Que fofo! Então ele é só um menino normal que odeia perder. No final ela riu.
— Pode vir que vou aceitar todos os seus desafios!
Não tem como ele me vencer, pensou ela com o sorriso convencido no rosto. Mas a cada derrota e nova partida, Taiyou-kun ficava melhor. As vitórias dela foram ficando com uma margem cada vez menor, até que…
— Você venceu! — A TV anunciou e a tela apareceu com as palavras enquanto o personagem de Tsukiko caía morto no chão e o personagem de Taiyou-kun balançava a espinha dorsal do adversário no ar.
O garoto não se gabou nem nada. Ele apenas virou para ela, olhando-a com um estranho brilho nos olhos e um venci estampado no rosto todo, apesar de continuar com a mesma expressão calma.
— Mais uma! — Dessa vez foi Tsukiko quem pediu por uma revanche. Ela cruzou as pernas e se inclinou para mais perto da TV. Era a pose vou levar pra valer dela.
— Não — disse ele em voz baixa, mas parecia um tanto determinado e forte.
Ela quase deixou o controle cair, toda sua tensão indo embora.
— Por que não?
Ele olhou para a TV, evitando encará-la.
— Cansei desse jogo. — Foi o que ele disse.
— Ora, seu pirralho… — Tsukiko derrubou o controle e apertou a bochecha dele. — Você vai “se aposentar” só porque venceu uma vez? — Ela apertou com mais força. — Vai parar enquanto está por cima, hein?
— Não. — Ele desviou o olhar. Ela apertou com mais força, tentando tirar as palavras dele. — É que…
— Hã? — Tsukiko soltou o rapaz e ele esfregou a bochecha vermelha na mesma hora.
Taiyou-kun virou sua cabeça e Tsukiko fez o mesmo. O garoto olhava para o relógio digital na escrivaninha dela. Eram quase onze horas. Nós jogamos tanto… ela pensou. Um segundo depois ela arregalou os olhos. O anime!
Tsukiko olhou para o garoto ao seu lado, quem coçava as bochechas. O que eu faço…? Ela estava se divertindo muito com ele. Só se divertia tanto assim em um domingo quando suas amigas passavam a noite lá. Mas até nesses dias, ela nunca perdia seu show favorito.
— Tem um… — Ele evitou o olhar dela, brincando um pouco com os dedos.
Esse rosto é muito fofo, ela pensou, rindo. Eu não me importaria em perder o anime uma vez para ver mais disso. Programei pra gravar, de qualquer jeito.
O garoto respirou fundo.
— Tem um anime que eu quero ver — disse, olhos fixos no chão, sua voz mal acima de um sussurro.
Por reflexo, ela cutucou seu rosto.
— Só por isso? Não precisa ter vergonha. Pode dizer para maninha aqui o que você quer ver — disse ela com um sorriso presunçoso. Quem sabe essa seja minha única chance de ser a madura aqui. Ainda que ele queira ver um show de criança, verei com ele.
Ele brincou com os dedos de novo, suas maçãs do rosto levemente rosadas, e não era porque ela as beliscara.
— É… My Guardian Persona… — Taiyou-kun finalmente dissera.
A mente dela estava percorrendo todos os shows que passavam naquela hora, mas quando o garoto disse o nome, Tsukiko parou de cutucá-lo e olhou bem para seu rosto. No instante seguinte, ela riu e o abraçou.
— Você também assiste? — Ela tentou esconder a surpresa, mas sua voz não cooperou.
Agora era a vez dele ficar mudo. Quando Taiyou-kun entendeu o que ela quis dizer, seu rosto amoleceu um pouco e um sorriso surgiu nos lábios.
— Sim. Mesmo sendo para crianças, eu gosto bastante já que é sobre descobrir a si mesmo — disse, olhando para ela com aqueles olhos inocentes, que agora cintilavam.
Tsukiko engoliu em seco. Ela gostava pelo mesmo motivo. Embora os personagens parecessem ter de tudo, eles se preocupavam com muitas coisas que Tsukiko conseguia simpatizar. Mas o melhor do anime era que os personagens tentavam corrigir seus defeitos e ajudar quem precisava, sempre se certificando que ninguém desistiria de seus sonhos.
Tsukiko virou fã desde o primeiro episódio e comprou tudo relacionado ao show e o mangá. Escutar alguém mais novo que ela chamando seu anime favorito de infantil a deixou vermelha.
— Você também é criança — disse ela, rindo e bagunçando o cabelo dele para esconder sua vergonha.
De repente, algo veio a sua mente e ela engoliu em seco de novo. Devo mostrar para ele? Ela considerou por um tempo. Nem sua melhor amiga sabia. Na verdade, nem a senpai dela, a quem ela contava muitos segredos, tinha a menor ideia que Tsukiko fazia aquele tipo de coisa. Mas eu posso mostrar pra ele, certo? Se for o Taiyou-kun, ele não vai rir, nem tirar sarro de mim… Ele nem me julgaria…
— Taiyou-kun… você poderia… — Ela hesitou, segurando o próprio braço. Ele olhou para ela com a expressão inocente de sempre e foi o bastante para Tsukiko. — Poderia… esperar aqui por um momento?
Ele ficou confuso, mas assentiu sem perguntar. Ela saiu do quarto e, após ter certeza de que a porta estava trancada, Tsukiko foi para seu outro quarto, a sala de estudo, onde mantinha a parte secreta de sua vida.
A porta parecia que nem a outras, com nada indicando que era o quarto dela. Era principalmente para parecer que pertencia a seu pai. Graças a isso, as amigas de Tsukiko nunca perguntaram o que havia lá. Ela abriu e rapidamente passou pelas estantes contendo sua verdadeira coleção de mangás e jogos, indo para um armário na parede de trás. A saia, o top e acessórios que queria estavam enterrados embaixo de uma pilha de roupas velhas que ela mal usava.
Sabia que era um mico, pensou Tsukiko após se trocar, mas mesmo assim, quero mostrar isso pra ele. Ela pegou uma de suas mexas de cabelo cor-de-rosa e amarrou em um rabo de cavalo lateral com um acessório de coração. A personagem principal tinha cabelo rosa, já Tsukiko era loira, mas como a cor já estava sumindo, as três mechas rosas eram o bastante para deixá-la parecida com a principal.
Se fosse uma competição, eu perderia na mesma hora, pensou, lembrando-se da última vez que usou essas roupas. Ela tinha uma peruca rosa, mas ainda ficou em terceiro. Yuuno, uma incrível cosplayer que Tsukiko passou a admirar, ganhou com seu cosplay perfeito.
Tsukiko respirou devagar, reunindo sua coragem. Finalmente, ela caminhou para fora do quarto e parou perante a porta do outro quarto. Quase bateu na sua própria porta.
— Taiyou-kun… Eu… Eu vou entrar — disse com a voz baixa.
Além da competição, ela usara o cosplay na frente de outras pessoas outra vez. Foi em um evento do maid café. Fora o pessoal do café e os regulares que ela conhecia pelo rosto, todos os outros eram estranhos que a observaram intensamente e tiraram várias fotos dela. Mas, de alguma forma, vestir-se assim na frente de um conhecido parecia mais embaraçoso.
Os olhos de Taiyou-kun se arregalaram, e no instante seguinte ele mostrou o maior sorriso que ela viu dele. Pela primeira vez, ele realmente parecia um garoto de sua idade. Mas aquilo não a impediu de ficar vermelha por causa dos olhos brilhantes dele. Por que você está me olhando assim? Ela queria perguntar, mas se conteve.
— Você podia… — Ele brincou com os dedos e olhou para o chão. — Fazer a pose…? — pediu, com o rosto quase tão vermelho quanto o dela.
Tsukiko sabia o que ele queria na mesma hora. Ela praticou para a competição, mas até lá e no maid café, fora demais para ela, então só fez poses normais. Ela ganhou o evento do maid café sem precisar fazer a pose.
— Por favor? — disse, levantando a cabeça, seus olhos inocentes brilhando ainda mais.
Droga! É muita fofura! Ela pressionou a cabeça dele para baixo, fazendo-o encarar o chão.
— Você vai destruir muitos corações com esse rosto!
Quando ela tirou a mão, ele olhou para ela de novo com os mesmos olhos. Ela engoliu em seco. Que droga! Tsukiko deu alguns passos para trás, levantou a cabeça e formou um coração com as mãos.
— Ne… negative heart… lock on… — Ela tentou dizer como praticou várias vezes, mas não chegava nem perto daquilo. É embaraçoso demais.
Mas para o Taiyou-kun. Ainda que fosse horrível, os olhos dele brilharam ainda mais e ele bateu palmas, fazendo o rosto dela ficar um tom alarmante de vermelho.
— Pare com isso. — Ele fez assim que ela disse, mas continuou olhando para ela com olhos inocentes. Para fazê-lo parar de encará-la, ela agarrou os ombros dele e o virou, fazendo-o encarar a TV. — O anime já vai começar!
— Sim — disse ele na mesma voz baixa, mas ela podia sentir a felicidade nele.
E pela primeira vez, Tsukiko dividiu seu segredo e assistiu seu anime favorito com um amigo.
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