tinha uma mancha na parede.
Faz dois meses que me mudei pra esse apartamento – ou seriam cinco? Não me lembro ao certo. Não carrego comigo nem a certeza de que a mancha sempre esteve lá, nem se ela apareceu por minha causa – por qualquer razão que fosse. A realização de que ela crescia a cada passo de ponteiro, entretanto, não demorou a me atingir. De antemão, logo que atravessei pela primeira vez a porta de madeira, não a percebi.
tenho certeza que não.
Foi no segundo dia – ou seria semana? – que a vi, ali, parada, do tamanho de uma moeda de cinquenta centavos. Acinzentada, estranha, deformada. Ali, maculando a cor azulada da parede da cozinha. Sobre a pia suja, vivia um ponto de escuridão que se espreguiçava como se despertado de um sono profundo. Não me importei com sua presença intrusa a primeira vista, não até perceber a rapidez com que se alastrava pela textura rugosa da parede; se alimentando vagarosa de qualquer cor que pintasse o ambiente. Sim, ela se arrastava como erva daninha, transformando tudo em morbidez.
criminosa
Eu sou escritora – ou seria advogada? pois percebo os papéis cobrindo o chão, parece até que toda manhã o número aumenta e eu sinto que mais cedo ou mais tarde eles me soterrarão viva. Todos os dias eu as varro para o canto da parede, pois a mancha se apossara da lixeira. Como uma duna, enterrando o que via pela frente; sem pena nem remorso. Eu pensei, uma ideia relampejando na mente cansada, se não seria possível esfregá-la - agressiva - até o último fio de escuridão, mas a mancha já tinha alcançado também o lavabo.
sem solução
Oito horas da manhã, o vizinho ao lado martela na parede. Tu tu tu – faz o som. Eu posso ver que a mancha repudia-o, pois chia pelos poros fétidos. Uma risada atrevida escapa por entre meus lábios rachados em desafio, e, sentada a mesa da saleta, o aroma que vinha da xícara de café me atrai como um canto de sereia. Hmm, a pego nas mãos, e, por alguns segundos, a sensação quente do café fresquinho me acalma; ainda que meus pés congelem. Suspiro, assim que os segundos se passam, pois a xícara já está fria sob meus dedos novamente.
Eu não sei que dia é hoje, eu noto, subitamente, ao olhar para o mar de folhas brancas que aparecem do nada como se brotadas do próprio carpete. Juro de pé junto - de dedo mindinho, como preferir – que deixei o calendário em cima da cômoda do quarto, mas não está lá. Acho estranho, contudo, não me profundo no devaneio. Levanto, já com a ideia automática de buscar a vassoura a postos junto a entrada. A mancha conquistara mais do que a parede da cozinha, agora se esguiava como uma cobra até o quarto.
Talvez eu devesse ter ligado para alguém, reflito, e não sei explicar porque não o fiz - é possível que seja pelo senso de letargia me consumindo a cada segundo de quietude neste lugar. De qualquer forma, não importa mais, pois a mancha já alcançou o telefone sobre a escrivaninha. .
a mancha, a mancha era a culpada.
Depois de um tempo, ela já tomara a casa inteira – apartamento – certo, certo. Eu não sou capaz de ir à cozinha, pois o chão está escuro pela presença da famigerada. Escuro, tão escuro quanto o próprio vazio seria. Eu não posso alcançar a geladeira, e ouço o som quase amplificado dos ratos atrás das paredes articulando com os focinhos sujos e as patas infestadas de fungos e poeira. Passo a comprar comida pronta na lanchonete em frente ao prédio.
Certa noite chego em casa e a mancha está em cima da mesa de jantar, logo decido comer ao lado da janela. Por ela consigo enxergar a lua, a qual há muito tempo não via, e sinto na ponta dos dedos uma coceira familiar - as noites andam frias. A mancha cobrira a lixeira, então deixo a embalagem rente à vidraça. Com o tempo, ela também chega lá.
era lasanha ou macarrão?
Hoje – ou foi ontem? eu dormi no chão do banheiro, pois a mancha avançara até o quarto, apossando-se de minha cama e meu armário, gargalhando por entres as fechaduras dos móveis que conquistava. Por agora, só me sobrou as roupas do corpo – as únicas que a mancha não roubou, com sua malícia. Tão egocêntrica que precisa afirmar sua presença.
Mal consigo enxergar pela fresta da porta, pois o apartamento se reduz a um breu onipotente, e eu nem me lembro mais de seu aspecto antes disso. Os ratos cochicham pelos cantos, por vezes até posso sentir na base do tornozelo um rabo longo de roedor acariciando-me a pele. Os papéis param de se multiplicar, mas o cinzeiro - que eu percebi há pouco tempo, em cima da mesinha - fica cada dia mais cheio. E eu sinto como se a fumaça do cigarro nunca aceso escapasse pelos poros da minha pele suja.
Tinha uma mancha na parede. Mas agora estava por todo lugar, na cozinha, no quarto e na sala de jantar. Um dia, a mancha alcança também a porta da frente, pintando-a de fosco. Nesse instante, no milésimo de segundo que leva para a mancha roubar-me de toda a luz, eu simplesmente olho, e meus olhos refletem suas gargalhadas silenciosas; sepulcrais.
eu fico ali, bem no centro do abismo, esperando que a mancha engula também minha existência.
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