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História Túmulo de Sangue - Memórias de um réquiem


Escrita por: Caus

Notas do Autor


Se quiserem favoritar, comentar e divulgar essa história, prometo que não fico magoado. XD

Capítulo 2 - Memórias de um réquiem


No décimo andar de um belo apartamento em Copacabana —  uma das áreas mais nobres da cidade — habita um monstro. Ele não tem chifres, pelos ou asas, e por isso consegue andar livremente por entre as pessoas comuns. Um monstro que não se esconde atrás dos portões de um castelo assombrado, ou nas profundezas de um covil subterrâneo, mas sim sob a máscara de um homem. Um homem chamado Arthur Castro.

Confortavelmente acomodado em um quarto de grandes dimensões, com decoração sóbria e pouca mobília, ele encarava o próprio reflexo no espelho enquanto se vestia. Arthur tinha trinta e três anos...sempre teria. Oficialmente, trinta, pois sempre reduzia a idade quando era obrigado a assumir uma identidade nova. Naquele momento, se sentia mais vivo, forte e astuto. Sempre se sentia assim após tirar uma vida. Naquela noite completaria dois anos residindo nessa cidade e apartamento alugados.

Em uma grande metrópole como essa, seus hábitos noturnos passavam despercebidos, vistos como excentricidades plenamente aceitáveis. Talvez o resultado de uma rotina de trabalho noturno, ou simplesmente coisa de jovens que trocam o dia pela noite, por conta de internet, bebida ou mulheres. Desde que pagasse em dia, ninguém questionava nada. Outra vantagem era não ter que se preocupar com vizinhos enxeridos, só falando o mínimo com o porteiro e a proprietária. Ele gostava disso.

Os homens da última noite... eles ainda não saíram da sua mente, por mais que qualquer evidência dos tiros já tenha desaparecido do seu corpo. Fazia tempo desde que ele bebera de dois de uma vez. Em sua defesa, valia lembrar que esses não eram nenhum exemplo, muito pelo contrário. O tipo de gente a quem grande parte dos cidadãos de bem desejaria a morte. Pois bem, ela chegou para eles.

O assassino sorriu. Um sorriso cínico. Há quem queria enganar? Aqueles homens não morreram por serem maus, morreram apenas por entrarem no caminho de alguém pior do que eles. O que são estupradores, diante de assassinos? Ele não era um justiceiro, vigilante ou santo. Era um monstro que vivia de sangue humano, que sugava vidas para continuar vivo. Não havia lugar para aplausos no que ele fazia.

Uma vez arrumado, se deixou relaxar na sacada do apartamento, contemplando a imensidão do céu. O negro manto da noite, imutável, e que a todos encerrava na escuridão. O que seria sua vida, afinal, se não densas trevas, vagamente iluminadas pelo brilho efêmero de estrelas moribundas? Foi com esse pensamento que ele pegou o celular, parando no nome da única pessoa que importava para ele. Sua nova estrela. Seu sol. Alice.        

...

Foi com o coração acelerado que Alice atendeu a ligação pela qual esperou por toda uma manhã e tarde. Não que sua voz traísse alguma parte desse sentimento.

— Arthur? Oi, tudo bem sim. É, apesar de tudo nós chegamos bem em casa, não tivemos mais problemas com aqueles dois não.

A jovem estava no quarto, com tudo que se esperava de um. Um guarda-roupas grande, criado-mudo, mesa de computador e uma cama. Na parede, prateleiras abarrotadas de livros de todos os tipos. Sentada na cama, cercada de papéis e livros abertos, ela segurava o celular com uma mão enquanto acariciava sua gorda gata com a outra.

— Hoje a noite? Desculpa, estou meio atolada entre questões de trabalho e curso, hoje não tem como. Deixa eu dar uma olhada aqui em que noite eu estou livre. Vejamos...

Ela sabia perfeitamente a data, assim como poderia fazer um esforço para sair com ele ainda naquela noite. Mas obviamente, ela não faria nada disso.

Passei o dia esperando pela boa vontade dele, preciso manter um mínimo de amor próprio. Se quer me ver, que espere, pensou ela.

— ...então, livre, livre eu só fico na sexta mesmo. Maaas se você quiser, a gente pode se ver antes. Terça agora é aniversário da Tatiane, aquela minha amiga, e vai rolar uma comemoração em um salão de festas. Você pode ir comigo se quiser, o que me diz?

Um instante de hesitação do outro lado da linha, até a confirmação.

— Ótimo. Então anota ai o endereço onde a gente pode se encontrar para irmos juntos.

Ao fim da ligação, ela era “só alegria”. A verdade é que desde que se despediram, ela não conseguiu parar de pensar naquele homem. Sua voz, suas palavras, seus lábios... Alice ficou envergonhada ao se lembrar do toque dos lábios, algo tão simples, mas que ainda a deixava toda arrepiada. Suspirando, ela agarra o bichano.

— É, Fionna, a vida dos gatos é tão simples, porque será que a gente fica complicando as coisas, hein? — a resposta do felino é um miado, seguido de tentativas de se soltar do abraço que se segue. — Gata malvada...

...

As 20h00 da noite marcada, um veículo esportivo do ano estacionou em frente a pracinha em que foi combinado. Um carro prata de vidros fume. O local estava bem movimentado e iluminado, com um punhado de crianças nos brinquedos, uma partida de futebol em andamento numa quadra próxima e grupos de jovens namorando. Em um dos bancos de madeira, a jovem ouvia música no celular, sem notar a aproximação do seu gentil predador.

— Boa noite. — Arthur disse, seu rosto próximo ao dela.

Ela se atrapalhou e quase deixou o celular cair. Depois sorriu sem graça para aquele belo homem a sua frente, guardando o aparelho e ficando de pé. Era uma noite quente, embora bem menos que aquela em que se conheceram.

— Não faz isso, quase me fez ter um treco aqui. — disse, ainda sem graça. — Pensei logo que fosse um assalto.

O homem vestia um conjunto casual, de calça jeans escura combinando com os sapatos, e uma camisa branca semi-abotoada. Uma tentação, pensou ela. Alice usava uma saia de couro preta, com botas da mesma cor e uma blusa clara, que valoriza seu busto. Acima dos seios, um cordão dourado que combinava com o par de brincos. Os cabelos presos em um penteado mais elaborado, que deixava apenas algumas mechas caídas sobre o rosto. Uma visão, ele pensou. 

— Me deixe me redimir, declarando o quanto você está linda essa noite. Eu poderia passar a noite inteira só olhando, e garanto que não me cansaria.  

— Obrigada, você também está ótimo. — respondeu, sorridente. — Mas, por mais que eu gostaria de pôr a prova essa sua persistência obsessiva em me admirar, temos um lugar para ir.

Alice já estava acostumada a lidar com homens que passavam horas falando sobre o próprio carro, e sabia que algumas mulheres “se apaixonariam perdidamente” por seja lá quem tivesse as chaves de um carro do ano. Mas por sorte, nem ele e nem ela se enquadravam nesses estereótipos.

O transito estava milagrosamente bom naquela região, o que fez com que chegassem mais rápido do que esperavam. De certa forma uma pena, pensaram os dois. A casa de festas é em Botafogo, com muro florido e uma placa com os dizeres “Big Fest Night”. Música alta e os carros e motos em volta foram um chamariz melhor que qualquer aplicativo de trânsito ou busca no Google Maps. Meia-dúzia de jovens conversavam do lado de fora, tomando cerveja e rindo, mas pararam para observar o belo casal. Uma vez lá dentro, a música era onipresente, assim como o álcool. A casa parecia cheia, com facilmente umas duzentas pessoas lá dentro. O casal atraia olhares, incluindo comentários e cantadas, para ambos. Após algum tempo transitando por aquele mar de gente, eles a encontraram. Tatiane usava um vestido roxo, com abertura entre os seios e costas, para além de deixar a maior parte das suas belas pernas de fora. Ela estava com um grupo de outras quatro mulheres, bebendo, rindo e cochichando.

Assim que as amigas se viram, se abraçaram longamente. Entre juras de amizade eterna e parada para fotos com celular, ficava visível que eram amigas há bastante tempo. Após esses primeiros minutos de euforia, uma das jovens perguntou:

— O gostosão tá com você?

Alice fez sinal para que ele se aproximasse, pedindo desculpas pela demora, enquanto aquelas mulheres analisavam cada mínimo detalhe do convidado inesperado. Algumas se cutucaram para ficarem sérias, e a jovem o apresentou:

— Meninas, digam oi para o Arthur.

Enquanto duas delas se limitaram a falar um oi tímido, e outras duas fizeram questão do beijo no rosto de apresentação, Tatiane perguntava ao ouvido da amiga:

— Miga, esse é o cara de quem você falou?

— Ele mesmo, então olha lá o que você fala, hein. — respondeu ela.

— Desculpe entrar de penetra, e parabéns para você. — disse ele, próximo a jovem.

— Você trouxe o melhor presente da noite, Alice. — disse ela, com um sorriso sacana, enquanto agarrava o sujeito pelo braço o puxando para dentro do salão de dança.

— Mas que safada... — resmungou Alice, que ficou para trás com as amigas que a enchiam de perguntas.

— Nunca te vi antes, é de onde? — a morena perguntou, enquanto o arrastava até o centro da casa. Também pegou uma bebida no caminho e pediu para o DJ mudar a música, de pop internacional, para Funk.

— ...Copacabana. — respondeu ele, o mais alto que pôde.

O som alto incomodava os sentidos dele, isso fora as letras, que preferia ignorar. Aquele tipo de música era algo recente, uma novidade carioca extremamente popular entre os jovens, principalmente nos das camadas sociais mais baixas. Assim como a já conhecida música eletrônica, não se valia de instrumentos, sequer de representantes com grande talento vocal. Um ritmo conhecido pela vulgaridade das letras, cada vez mais apelativas. Uma música feita apenas para dançar Uma perfeita dança do acasalamento para crianças no cio, concluiu.

 Os corpos suados dos jovens se esfregando ao seu redor, assim como o calor do corpo da garota contra o seu próprio, começaram a mexer com seus instintos de predador. Então se deu conta da sede, do desejo... o que não fazia sentido. Ele matara dois homens há apenas quatro noites, era muito cedo para sentir a sede de sangue novamente.

Seria ela? Poderia a presença de Alice afetar seu equilíbrio dessa forma, a ponto de deixá-lo instável, sem controle? Ele se esforçava para manter a boca fechada, pois sentia que as presas já teimavam em aparecer.

— Tive um ex que morava em Copa, a gente se divertia pra valer naquela praia, na madruga. — ela falava ao ouvido, sorriso malicioso, cheiro de álcool e seios pressionados contra o seu corpo.

Arthur apenas sorriu sem graça, fingindo ignorar qualquer possível insinuação por trás do comentário. Fosse um deslize, um teste ou convite. A dança continuava, com o corpo daquela mulher voluptuosa mexendo com os instintos dele. O cheiro de suor e bebida pareciam afetá-lo ainda mais, tudo ao som infernal da batida que lembrava tambores... ou um coração pulsando. O monstro sentiu que estava perdendo o controle, com a voz da garota perdendo aos poucos o sentido, apenas o som do coração acelerado e suas veias expostas importando. Apenas o fluir do sangue precioso e irresistível, se tornando uma tentação poderosa! Ele começou a se afastar, porém ela não deixou, o puxando para mais perto de si. Corpos colados, ao ritmo da dança daqueles que os rodeavam. Uma dança mortal.

— Não tão rápido, gatinho. — Tatiane falava, seus grandes olhos o encarando com interesse. — Sei que tá afim da Alice, mas hoje é meu niver e você tá de penetra. Deixa tirar mais uma casquinha, deixa?

O corpo atraente e convidativo dela encostando no seu, o suor, a música, tudo parecia uma armadilha diabólica para revelar o monstro. Ele afastava o rosto dela, tentando esconder as presas já visíveis, tentando se focar em algo que pudesse impedi-lo de pôr tudo a perder. Foi tão difícil encontrá-la, ele não poderia perdê-la! Não novamente... não como naquela noite.

...

Brasil, ano de 1630.

 

Em uma noite fria e chuvosa, ele caminhou por dezenas de cadáveres. Corpos de soldados, corpos de escravos, corpos de crianças. Seus longos cabelos escuros encharcados, seu uniforme ensanguentado, sua espada, pronta para ser usada ainda outra vez. Exausto ele chegou aos portões da sua propriedade: antes, um lugar seguro, agora, um território tomado pela morte.

— Porco, maldito! — o grito veio acompanhado de um golpe de machado. Com a pólvora das armas molhada e após o caos da batalha, qualquer ferramenta serviria como arma. O soldado que o atacou era mais robusto que ele, de barba e cabelos escuros e desgrenhados, e todo sujo de lama. O golpe com força o suficiente para partir seu tronco em dois.

A lâmina fez um corte superficial no peito do homem que, desviando da morte certa, encravou a espada no tronco do seu agressor. Depois, chutou o corpo sem vida para fora do portão de entrada.

— Saia...da minha…casa. — disse ele com dificuldade, subindo uma escada banhada em chuva e sangue. O lugar que foi seu lar pelos últimos dez anos.

Após o que pareceu uma eternidade, ele a encontrou: seu motivo para matar, seu motivo para existir.

— Aurora. — Lágrimas brotaram dos seus olhos, a espada caindo das mãos. Ele foi ao encontro da mulher que amava, deitada na cama, com um ferimento letal na altura do ventre.

Os belos cachos loiros conferiam beleza a uma cena fúnebre, os olhos verdes cheios de medo, o sorriso triste de quem se agarrava com dificuldade a esse mundo. No quarto do casal, o cadáver de um dos homens que falharam em matar a esposa do capitão. Sua esposa.

— ... você chegou, estava cansada de esperar. — disse ela, olhando para o homem que amava.

Encharcado, ferido e com medo, ele ajoelhou-se ao lado dela. Segurando delicadamente em suas mãos, acariciava os cabelos da única mulher que já amou, forçando um sorriso carregado de tristeza.

— Peço seu perdão, não quis fazê-la esperar. — ele parou um momento para reprimir um soluço de choro, desviando o olhar. Após respirar fundo, beijou as mãos frias da amada, uma mulher à beira da morte. — Mas apesar de tudo, cheguei a tempo.

Ele encheu uma vasilha com água da chuva, e com o pano mais limpo que encontrou, tentava limpar a ferida.

— Vou precisar que você seja forte agora. Seja forte, e continue comigo. — ela tentava reprimir os gemidos de dor, enquanto ele fazia o possível para ser delicado...e parecer confiante. — Houve um motim e meus homens me traíram. Ao menos a maioria. Se aliaram as tribos inimigas e passaram a faca nos nossos, fossem índios, mestiços ou brancos. Logo chegarão mais deles até os nossos portões... a única chance é chegar nos vilarejos ao Leste.

Ela cospiu sangue. Suada e trêmula, segurava o rosto dele com ambas as mãos enquanto respondia:

— Não sou seu soldado, meu amor, não sou boa em cumprir ordens. Matei os que tentaram pôr as mãos em mim... apenas para ver você de novo, e nisso tive sucesso. Mas não me peça para morrer sobre o lombo de um cavalo em uma jornada perdida. — ela o beijou suavemente nos lábios. — Me deixe morrer com um pouco de dignidade, meu querido.

Ele chorava amargamente, pois sabia que aquela mulher teimosa não voltaria atrás.

— ...você é cruel me dizendo isso.

— Continue... lutando. Siga lutando, até... nos encontrarmos de novo no outro mundo. — com as faces coladas uma na outra, os dois tentavam tornar esse breve momento final em eterno. — Um dia chamarei por você, meu capitão. Verei seu sorriso, e ai então...

A chuva caia forte do lado de fora daquele casarão. Dentro dele, os olhos de Aurora se fechavam para sempre. O homem permaneceu um longo tempo contemplando o corpo estático de sua esposa, como quem esperasse por um milagre. Um milagre que não aconteceu. Ele dava voltas pelo quarto, sem saber ao certo o que fazer com o sentimento que lhe subia pela garganta. O som da chuva sobre o telhado era uma música triste a lhe preencher os ouvidos, um som de fundo a melodia dos próprios passos sobre o piso de madeira velha. Uma vez que não suportou mais esses ruídos enlouquecedores, sentou-se ao lado dela.

— Garota egoísta... e mimada. Sempre fazendo as próprias vontades! — ele apertava as próprias mãos com força, todo o corpo tremendo. — Como pode me deixar sozinho? E ainda tem o atrevimento de me mandar continuar!?

Ele pegou a faca e a apontou para o peito, olhando para aquela que não podia mais responder.

— Eu devia enfiar essa coisa no coração, e bem na sua frente! Então você veria que eu faço o que quero.

O capitão permaneceu com a arma em mãos por um tempo, até enfim se deixar largá-la. Com as costas na parede e caído ele chorou. Chorou como nunca havia chorado antes, dando vazão a toda aquela dor que lhe dilacerava o peito. Até as lágrimas secarem e a chuva cessar.

Foi um homem sem rumo ou esperança que deixou aquele quarto. Toda a propriedade estava em chamas enquanto ele seguia a cavalo, chamas capazes de transformar seus mortos em cinzas. Ele não deixaria o corpo de sua esposa para ser profanado por homens perversos. Seus homens e servos fiéis também não mereciam esse destino. Se não havia tempo para um enterro cristão, que suas cinzas subissem a Deus em um último ato de respeito.

— Que encontrem a paz que nunca encontrarei. —  disse ele para si mesmo. —  E assistam do céu, com olhos piedosos, minha sina e miséria.

— Não posso tirar minha própria vida, Aurora. Não se quiser vê-la de novo, e isso é o que mais quero. Eu continuarei lutando, pelos próximos dias, anos, décadas! Até o fim dos tempos se preciso for! Então durma meu amor, até que meu pesadelo acabe. Até que eu possa ouvi-la me chamar de novo.

Seja nesse mundo ou no outro.

 

...

A lembrança da perda foi o suficiente para fazê-lo recuperar o controle. Quando conseguiu enfim afastar-se da garota, ele a encontrou: Alice, chegando diante deles.

— Olá... Tati. — disse ela, encarando a amiga.

Tatiane sorriu, devolvendo o acompanhante a amiga.

— Tava só aquecendo o gato pra você, miga. — sorriso zombeteiro. — Acho que agora ele já tá no ponto.

Tanto Arthur quanto Alice pareciam sem graça com a situação, mas ele ao menos pôde suspirar aliviado. Não pôs tudo a perder... não de novo. Eles saem do meio do salão, a procura de um espaço mais calmo.

— Sua amiga é um pouco...animada demais. — disse, enquanto virava um copo de vodka sem pestanejar.

— Desculpe por isso. Ela é atrevida, desequilibrada, alcoólatra, aproveitadora... mas apesar de tudo isso, tem lá suas qualidades. — Alice respondeu, enquanto fazia o mesmo com sua bebida.

As horas passam em um piscar de olhos, com o casal conversando sobre tudo, e nada. Qualquer assunto parecia ser interessante para eles, a própria companhia um do outro era mais importante que qualquer palavra que viessem a trocar. Eles transitaram entre rodas de conhecidos da garota, mas nunca por muito tempo. No fim, queriam ficar sozinhos, e assim ficaram pela maior parte do tempo.

— Sou psicóloga clínica. — ela disse, entregando seu cartão a ele. — Psicoterapeuta, para ser exata.

— Então você lê a alma humana e tenta ajudá-la a se aperfeiçoar, é isso? — questionou ele. — Esclareça a um leigo, o que exatamente um psicólogo estuda?

— Nossa, ai está uma definição que nunca ouvi! Como posso dizer: a resposta a essa pergunta varia, dependendo de quem responder. Um psicanalista provavelmente dirá que o objeto de estudo da psicologia é o inconsciente. Um behaviorista, que é o comportamento. Um cognitivista, que é a aprendizagem. Acho que a definição mais abrangente, seria: subjetividade. Nós estudamos a subjetividade humana, esse universo de ideias, comportamentos e questões que envolvem o ser humano.

Arthur colocou a mão no rosto dela, deslizando suavemente os dedos até o queixo.

— Tenho um problema, Alice, e preciso de uma psicoterapeuta experiente para me ajudar. — ela apenas sorriu, apoiando a mão no ombro dele. — Desde aquela noite, não consigo parar de lembrar do seu beijo. Existe uma cura para isso?

— Hoje é sua noite de sorte, acho que tenho seu remédio bem aqui...

Dito isso, eles aproximam os lábios lentamente, saboreando o momento. E então, quando a vontade se torna irresistível, se beijam com vontade! Se entregando a um desejo reprimido por demasiado tempo. Ele trazia o corpo dela mais para si, sentindo o calor, o palpitar acelerado de um coração que parece a ponto de explodir. Ela respondia puxando seu cabelo com força, e mordendo seu lábio. A dança de línguas prosseguiu, até os deixar sem fôlego.

— Até que você beija bem, sabia? — disse ela, ofegante.

— A dança se torna fácil, quando a parceira é melhor do que eu. — o vampiro respondeu, sem pensar na sede, no passado ou no futuro. Naquele momento, apenas o sorriso à sua frente tinha significado.

— Mas... quem sabe não dê para melhorar ainda mais com a prática. — agora é a garota quem tomava a iniciativa, o puxando contra si, o desejando como nunca desejou ninguém antes.

Eles dão prosseguimento ao ponto alto da festa, até perceberem que pouco a pouco é a festa que vai ficando cada vez mais vazia. Por fim, se forçam a lembrar que tem seus compromissos no dia seguinte, e decidem ir embora, não antes de se despedirem da aniversariante.

— Seus amigos são divertidos, mas eu prefiro bem mais a sua companhia. — Arthur dizia, enquanto parava o carro na praça, próxima a casa dela.

Alice exibia um sorriso sapeca, e um último beijo, como uma promessa de mais.

— Até sexta... Arthur. — sussurrou essas palavras ao pé do ouvido, o fazendo desejar sequer deixá-la ir.

...

O vampiro caminhou em direção ao carro que passou a última hora a sua espera na beira da estrada, bem depois de ter deixado a festa. Numa área mal iluminada e cercada pela vegetação nativa, ele deu partida naquele motor potente, capaz de comer a distância em poucos segundos. O carro voltou então ao seu destino, deixando para traz o cadáver de uma garota drogada, uma viciada de rua que lhe ofereceu o corpo....mas não a vida.

O monstro de face humana olhou para a estrada a frente, tentando tirar o sorriso de Alice da sua mente. Tentando esquecer o que acabara de fazer. Ele era um monstro, um demônio que se alimentava de almas humanas. Ele sabia que sua Aurora o amou como a ninguém mais, mas seria Alice capaz disso? Não apenas a máscara, poderia de fato amar a ele, amar ao monstro?

Não havia resposta para sua pergunta, apenas o silêncio de um coração que não batia.


Notas Finais


Nesse capítulo começaram as lembranças do passado, elas serão presentes em boa parte dos capítulos a frente.


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