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História Túmulo de Sangue - As primeiras notas


Escrita por: Caus

Notas do Autor


Hora de conhecermos um pouco mais sobre Alice, seu passado, seus laços e cicatrizes. E um novo elemento surge na história.

Capítulo 4 - As primeiras notas


Era uma casa de classe média, no Andaraí, RJ. Dois andares, verde musgo, com uma cerca de metal meio enferrujada e grama malcuidada no quintal. Na sala, entre móveis antigos e um aparelho de rádio tocando música pop, suas duas jovens moradoras conversam: Alice, largada no sofá, de toalha no corpo e cabelo, com os pés estendidos sobre as pernas de sua amiga e pedicure particular.

 — Isso é muito injusto, Alice. Muito injusto mesmo! — resmungou Tatiane, pintando delicadamente os dedos do pé esquerdo dela. — Você sabe que no fim isso é só desculpinha pra me fazer de empregada.

— Se eu fosse você ficava bem quietinha, se não quiser que seus dois meses como minha serva virem três. — ameaçou Alice, com um sorriso sádico na face. — Vamos ver se assim a senhorita aprende a nunca mais esfregar essa bunda no pretende da amiguinha.

— Ah, Alice! Você sabe que eu tava meio alta aquela noite. Além disso, era meu aniversário, e você sabe o que dizem “o que se faz no niver, fica no niver”.

— ...você quer mesmo virar uma sem-teto, não é? — pergunta puramente retórica.

— Não tá mais aqui quem falou. E já, já, eu acabo, minha sinhazinha.

Elas riram, como sempre acontecia quando estavam juntas. E isso já havia vários anos.

...

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, seis anos atrás.

Às 8h30 da manhã, os cerca de trinta alunos presentes se dividiam entre aqueles que prestavam atenção na aula, os que conversavam discretamente e os que dormiam.

— Para a Psicanálise, a verdadeira questão da Psicologia não é nem a consciência do homem, nem seu comportamento. — disse o magistrado ao lado do projetor, de roupas sociais, pele negra, grossos dreads e um meio sorriso no rosto. — Mas sim, o “inconsciente”.

— Diz aí, o que acha do professor? — perguntou uma garota morena, de olhos amendoados e voz melodiosa, para a amiga da carteira ao lado.

— Sei lá, Tati, ele explica bem, gosto da aula dele. — respondeu uma Alice sonolenta.

— Freud entendia que somos movidos por desejos inconscientes. — continuou o professor. — Que nossas escolhas não são resultado de decisões puramente racionais, e sim de algo mais profundo, algo que...

— Tá de brincadeira, né? — questionou Tatiane, olhando para a amiga como se visse uma Alienígena. — Um homem gostoso desses e você vem me falar de aula? Tava pensando em pedir pra ele umas aulas particulares, isso sim.

— Ei, você não tem vergonha, né? O cara é casado, vejo a aliança daqui.

— Mas aposto que ele tá com o casamento em crise, tadinho. Ou talvez use só pra atiçar o tipo de mulher que gosta de homem casado — brincou ela, enquanto olhava maliciosamente para o professor. — Um cara assim fortão e cheio de energia, com certeza tá frustrado ao se ver preso a uma mulherzinha ruim de cama. Acho que ele tá precisando conhecer uma mulher de verdade...cheia de energia e criatividade, até para render mais nas aulas.

— Credo! E imagino que essa seria você, não é? — Alice perguntou, encarando a amiga despudorada.

— Eu posso fazer esse sacrifício. — e as duas começaram a rir, enquanto a loira dava cadernadas na morena.

...

Elas se conheceram no segundo ano do curso, apresentaram alguns trabalhos juntas e acabaram criando uma amizade verdadeira que transcendeu a graduação. O que surpreendeu a ambas, dadas suas diferenças.

Alice sempre foi uma jovem de princípios morais mais sólidos, ainda que empática e flexível. Era fruto de uma união problemática, um caso extraconjugal do pai. Criada pela mãe, a figura paterna foi sempre pouco presente em sua vida, dando as caras inicialmente uma vez por semana, depois por mês, então por ano...até se ausentar de vez. Ela se deu conta de que o pai não se importava realmente com ela ou com a mãe por volta dos sete anos, e desde ali começou a nutrir uma mágoa silenciosa pelo homem que tanto fazia sua mãe sofrer. Aquela mulher boba, passiva e triste.

Alice se cansou de tanto repetir para a mãe tomar uma atitude quanto aquele homem imprestável, que sequer pagava pensão, raramente enviando algum dinheiro ou presente, mas não adiantava. A mulher preferia se matar de trabalhar para sustentar as duas, do que confrontá-lo. Pior, sempre que ele aparecia — o que até quando ela tinha por volta dos quinze ocorria uma vez a cada dois ou três meses — a mãe se deitava com ele no quarto. Se submetia a ser usada e descartada, para revolta completa de uma filha inconformada. A mulher era cega por aquele sentimento, e não abria mão dele, independentemente do quão degradante fosse.

O pai passou a aparecer cada vez menos, até desaparecer de vez de suas vidas quando ela tinha seus dezoito anos completos. Talvez ele achasse que agora ela era uma mulher, e já não precisava mais dele. Fosse como fosse, Alice se esforçou para provar para si mesma e para a mãe que não precisaria depender de homem algum para chegar onde desejasse. Desde os dezesseis ela pegava empregos temporários, de meio-período. Aos dezessete entrou em um cursinho e se matou de estudar, até garantir uma vaga na universidade pública. A mãe chorou de alegria ao ver a filha no ensino superior, a primeira da família a chegar lá. Mas vitória ou não, a vida não ficou mais fácil a partir daí.

      Os horários puxados da pública a fizeram ter que pegar serviços com horários flexíveis, trabalhando muito e recebendo pouco, e conciliar as duas coisas exigiu toda a força de vontade que ela acumulara durante a vida. Bonita do jeito que era, não teria sido nem um pouco difícil viver à custa de algum homem com dinheiro e poder estudar tranquila enquanto ainda sustentava a mãe...mas ela jamais aceitaria isso. E não foram poucas as oportunidades que teve de fazê-lo. Mesmo nos relacionamentos que cultivou, nunca gostou de ser dependente, fazendo questão de dividir os gastos. Um princípio de lei, para ela. Às vezes a garota pensava que talvez ela não passasse de uma boba, com medo de ter o mesmo destino da mãe...mas para ela, isso era algo inegociável.

Aos vinte e um anos, Alice já estagiava em um local que pagava bem, e pôde oferecer uma vida mais estável a mãe. Aos vinte e dois se formou, dividindo com aquela mulher já cansada e doente sua maior conquista e felicidade! Infelizmente, sua mãe não viveria muito mais tempo além daquilo, como se tivesse se mantido de pé apenas para que a filha não desmoronasse. A mulher veio a falecer menos de um ano após a formatura, o que foi o maior golpe que aquela menina já havia experimentado. Em seus momentos finais, abriu o coração para aquele anjinho de olhos chorosos e fios dourados, como nunca havia aberto antes:

— Essa é a verdade, é sim. — disse ela, mão frágil segurando na da filha. — Enquanto eu era útil para ele, era bonita e caia na sua conversa, ele “me amava”. Agora, depois de tantos anos sendo fiel, esperando e confiando nele, fazendo tudo por ele...

A voz foi interrompida pelo choro, a garota segurando com as duas mãos a delicada mão da mãe, seu olhar demonstrando empatia e atenção para uma mulher solitária.

— Estou morrendo, Alice, eu sei. E o homem que amo, o único que sempre amei, nem mesmo vem me dizer adeus.

Alice olhou nos olhos dela, sentindo a intensidade da dor que carregava, beijando aquela face abatida. Chorando junto, como tantas vezes antes fizeram. A psicóloga jamais perdoou aquele homem por aquilo. Uma coisa era abandoná-la, já havia se conformado com isso. Agora, sabendo que a mãe estava no leito de morte, inventar desculpas ao telefone para não visitá-la, aquilo fora imperdoável! Quando tudo acabou, Alice ligou novamente para o homem a quem diziam ser seu pai. Deu vazão a toda sua raiva, toda sua dor. Disse por fim, tudo aquilo que estava preso na sua garganta há tantos anos, e que jorrava como um oceano de dor e mágoa. Cortou qualquer laço que ainda existisse entre os dois.

— ... Alice, eu....eu lamento mesmo, mas... — foram as últimas palavras que ouviu dele, antes de bater o telefone e cortá-lo de uma vez por todas da sua vida.

Agora, sem a mãe, e definitivamente sem o pai, ela estava sozinha, triste e sozinha naquela velha casa. Foi uma grande surpresa quando sua amiga bateu a porta, após dias sem que ela atendesse ao telefone ou respondesse mensagens. Dias sem ir ao trabalho ou ver a luz do sol.

— O que faz aqui? — ela perguntou, voz embargada e olhos inchados de choro.

— Vou morar aqui agora. — a garota disse, jogando uma mochila pesada na sala e impondo sua presença. — Chega de ficar sozinha, cachinhos dourados.

A partir daquele dia, Tatiane passou a morar de favor na casa de Alice, as duas dividindo as contas e a vida. No fim de semana, muitas vezes a morena a arrastava para passar o dia com sua família, numerosa e farrista, numa comunidade mais pobre da cidade. E, claro, para festas na noite, dançando, bebendo ou curtindo um relacionamento sem muito compromisso. Tati, aquela garota irresponsável e cheia de erros, foi sua tábua de salvação quando tudo o mais falhou. Era por isso que ela estava disposta a perdoar pequenos erros, era por isso que suas diferenças se tornavam pequenas diante da necessidade que tinham uma da outra.

E por isso, narrou para ela à noite incrível que experimentou com Arthur, a melhor da sua vida. Ainda que apenas após mais de um mês do ocorrido.

— Nossa, miga...tô impressionada com você. — exclamou, enquanto fazia as sobrancelhas de uma Alice que esperava as unhas das mãos e pés secarem. — Trepando na cozinha...parabéns! E eu que achava que com você era só papai-e-mamãe, num quarto escuro e toda coberta.

Alice gargalhou, ficando corada ao lembrar daquilo.

— Mas, e quanto a você, senhorita Tatiane, algo interessante para me contar? Alguma travessura nova?

— Você me conhece...sempre tem. Conheci um cara bacana, Isaque, bem diferente do meu padrão. — Alice a encarou com ar de deboche, fazendo ambas rirem. — E sim, sua loira burra, eu tenho um padrão, por mais que não pareça.

— E o que esse tal Isaque tem de especial, minha serva?

— É judeu! Usa aquele treco na cabeça e tudo...sorte que não tem a nariga grande. Bem charmosão. Falar nisso, ele passa aqui hoje a noite pra me buscar.

— Caramba...um judeu, parabéns.

— E não é? Tô doida pra saber como é fazer com um cara circuncidado.

Quando a noite enfim chegou, a campainha tocou repetidamente enquanto Tatiane se enrolava para ficar pronta.

— Atende pra mim, miga! O safado é pontual. — gritou a morena. — Só não faz muito charme, toda produzida assim, pra ele não pensar em me trocar por você. E a gente sabe que você já tem o seu.

— Darei uma olhada, e então decido se fico com ele ou não.

Alice, que estava assistindo a um noticiário sangrento na tv enquanto aguardava o horário de sair com Arthur, abriu a porta e se deparou com um velho conhecido. Na frente do portão, estava um homem de cerca de trinta e cinco anos, branco, cabelo negro e encaracolado, com barba por fazer, para além de uma quipá na cabeça. Vestia um conjunto social escuro, e tinha uma postura relaxada.

— Boa noite, e há quanto tempo. — cumprimentou um homem que pareceu surpreso ao vê-la ali. — Não imaginei que a tal amiga dela fosse você.

— Boa noite, Issac, um bom tempo mesmo. — respondeu Alice para seu ex-paciente. — E nem eu que o tal judeu fosse você.

Eles apertaram as mãos e entraram.

— Sobre nossas antigas consultas... — ele iniciou, aguardando a reação dela.

— Pode ficar tranquilo, é tudo confidencial. Questão de ética profissional. — ela respondeu, o levando até a sala.

— Vou pedir que você aguarde aqui no sofá enquanto ela se apronta, pode mudar de canal se quiser. — A garota falou, depois indo até o quarto ver a amiga.

Quando entrou e fechou a porta atrás de si, encontrou Tatiane terminando a maquiagem, de roupa de baixo e sem muita pressa.  

— Então, gostou dele? — a garota de lingerie provocante perguntou, sem tirar os olhos do espelho. — Acha que devo usar o vestido lilás ou o vinho?

— Olha, tem uma coisa que você tem que saber sobre ele. — Alice começou. — E a propósito: o vinho.

— Ah, meu Deus! Vai me dizer que vocês já se pegaram? — perguntou ela.

— Não, nada disso. É só que ele foi meu paciente, mas isso já tem alguns anos.

— Bipolar? Psicótico? Sociopata? — Tatiane questionava, enquanto provava o vestido.

— Não devia te falar isso... — a loira sussurrou, pesando no quanto era difícil resolver esses dilemas éticos que não se aprendem na faculdade. — Só tinha um sério problema em esquecer a ex-mulher, usava aliança e tudo. Mas você não ouviu isso de mim, por favor.

Tati sorriu enquanto o ajustou ao corpo, constatando o quão atraente ficou nele.

— Então não é nada demais. — a garota disse, confiante. — Depois do que vou fazer com ele na cama, não vai ter assombração de ex que não suma.

Alice sorriu da postura da amiga, enquanto refletia sobre como agiria na mesma situação. Provavelmente fugiria na hora...ela jamais aceitaria disputar o amor de alguém com um fantasma do passado. Por sorte, não era ela a passar por isso, pensou consigo.

...

Enquanto aguardava no sofá, com mãos sobre os joelhos, o homem refletia sobre os próximos passos que devia dar. Ele andava em terreno escorregadio, sabendo que qualquer passo em falso o colocaria em risco direto, e que uma queda seria fatal. Mas ao mesmo tempo em que isso o assustava, também excitava, afinal, não era todo dia que tinha a oportunidade de se aproximar de um deles. Perigoso, sem dúvidas, porém, um risco necessário. Issac Levi faria qualquer coisa para conseguir o que queria. Qualquer coisa.

Fionna se esfregava carinhosamente em sua perna. Ele afagava o pescoço da criaturinha, que ronronava como símbolo de sua satisfação. Gatos, cerca de nove mil anos de domesticação, e ainda assim mantinham grande parte de seus instintos. Aos olhos daquele sujeito, comparada a uma gata de rua, sempre alerta e que caça para sobreviver, aquela bola de pelo e preguiça era um espécime lastimável! Com prazer Issac a pegaria nas mãos e jogaria na rua, apenas para testar seus instintos de sobrevivência, sua capacidade de recuperar algo de sua ferocidade natural. Uma criatura que deveria ser um exemplo de predador, e hoje não passava de uma presa medíocre.

Mas ao contrário do pobre animal, o homem que perseguia não perdeu seus instintos. Se escondia no alto de um prédio, de onde podia observar sua cidade: seu território. A qualquer sinal de perigo, mudava de toca e de máscara. Abatia suas presas, quase sempre do mesmo tipo: drogados, ladrões, assassinos. Um predador astuto e experiente, um monstro antigo e traiçoeiro.

Fique em guarda, Arthur Castro, pensava ele, limpando a lente dos óculos. Logo, logo nós estaremos frente a frente, e então descobriremos quem de nós é o maior dos predadores. Quem de nós é o pior dos monstros.


Notas Finais


Issac...o que esse sujeito quer com o vampiro Arthur, afinal? Quais seus segredos, e o que ele pode representar para o nosso casal preferido? Prepare-se para muitas memórias sangrentas no próximo capítulo, assim como o início de algo maior.


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