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História Um alguém especial - 4


Escrita por: FrancisClay

Notas do Autor


Olá meninas.. como prometido cá estou e por sugestão de vcs hoje vamos conhecer um pouco da Clarinha e mais um pouco da relação conturbada da duas. Boa leitura.

Capítulo 4 - 4


Dormi feito uma pedra.

Acordo com o despertador do celular aos berros. Desligo o troço no soco e arrasto-me para o banheiro. Ajeito as madeixas douradas atrás das orelhas e jogo montes de água no rosto. Meus olhos estão mais cinzentos que de costume, um tanto opacos até.

Dou um up no visual, visto uma roupa confortável e tomo o rumo do gazebo. Bolinhos de chuva e chá de camomila são tudo de que preciso para me sentir confortada nessa manhã preguiçosa.

Vejo que poucos hóspedes acordaram e meus olhos vagueiam, buscando uma mesa isolada. Arrasto a cadeira e me sento, jogando a cabeça para trás, contemplando as copas das árvores através da cobertura de policarbonato transparente.

Ainda não decidi o que fazer da vida. Ajudar meus avós na pousada é uma possibilidade interessante e meu pai ofereceu um trabalho temporário na área de propaganda lá no hospital.

Sua intenção é repaginar o visual dos materiais impressos, bem como a logomarca já ultrapassada. É o tipo de trabalho que faço com as mãos nas costas. Ainda não aceitei, mas o farei.

Preciso de alguns dias de descanso e também para dar um jeito no meu quarto zoado. As caixas de sapatos estão espalhadas pelo chão e socadas dentro do guarda-roupas de qualquer maneira. As roupas ainda estão nas malas e não encontrei minha escova de dentes até agora. Por sorte, sempre tenho uma de reserva dentro da bolsa.

Hoje tirarei o dia para dar um rolê pelas ruas da cidade. Já não odeio Paraty como antes, afinal, a cidade não teve nada a ver com a decisão tresloucada da minha mãe e a grande merda que fiz há dez anos.

Uma imagem toma conta da minha mente e tenho um sobressalto, com o coração aos pulos. A boca fica seca e mordo o lábio trêmulo. Tudo nesse lugar transpira o passado, ecoa as burradas e mágoas ainda encrustadas no meu espírito.

Estou entretida com a imagem, aquele rosto lindo transfigurado pelo ódio de ter sido traída. Meu avô senta-se à mesa e só me dou conta de sua presença quando pigarreia e eu finalmente aporto em terra firme.

— Dormiu bem? – ele pergunta, depositando uma cesta de bolinhos de chuva na minha frente.

— Como há muito tempo não acontecia. – afirmo. – A pousada está tranquila demais, não acha?

— Graças a Deus! – vovô ergue as mãos para os céus. – Não viu esse lugar dez dias atrás.

— O que houve?

— Em que mundo você vive, Nina? Sediamos a FLIP, está lembrada?

Que gafe a minha. A FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – é só um dos mais respeitados eventos literários do mundo. São cinco dias ultra culturais que incluem debates, shows, exposições, oficinas e conta com a presença de grandes nomes da literatura mundial.

— Putz, vô, me esqueci completamente. – bato com a mão na testa. – A cidade ficou muito lotada?

— Impossível de caminhar. Tinha gente saindo pelo ladrão. – vovô ajeita os óculos na ponta do nariz. – Ainda assim, valeu a pena. Era possível sentir o cheiro da cultura e dos livros no ar. Sabe o quanto amo o aroma dos livros, não sabe?

— Sua biblioteca que o diga. – meu avô mantém uma biblioteca invejável em um dos anexos da pousada. Os turistas mais intelectuais piram no número de volumes raros e nas primeiras publicações de obras que nem são mais editadas.

— Sua avó me deu uma folga e até consegui alguns autógrafos.

— Quantos livros comprou dessa vez? – mordo um bolinho de chuva e reviro os olhos, em êxtase.

— Não foram muitos. – vovô franze a testa e balança a cabeça.

— Cinquenta e oito. – vovó chega por trás e revela. – Seu avô é tarado por livros assim como você é por sapatos.

— Então essa FLIP foi como cinco dias no paraíso, é isso mesmo? – pergunto, aos risos.

— Paraíso para o seu avô, porque eu fiquei descadeirada! – vovó se inflama e completa minha cestinha com mais alguns bolinhos de chuva fresquinhos.

Os dois começam a discutir e me calo, só observando e beliscando as iguarias recheadas de celulite.

Minha avó é dessas senhoras cheias de energia, que deixa no chinelo muitas menininhas de vinte anos. Os cabelos batidos na nuca são sempre tingidos de dourado, sustentando uma camada de laquê que mantém os fios tão rígidos quanto uma cerca de arame farpado.

Ela é baixa, esguia e se orgulha de suas rugas, dizendo que as marcas do tempo serão muito úteis quando chegar ao Paraíso. Minha avó acredita que por lá exista uma fila especial para idosos enrugados. Não acho que a entrada para o céu esteja bombando desse jeito, mas enfim, melhor não discutir.

Meu avô é um gordinho gostoso, com os cabelos tão branquinhos quanto flocos de neve. Os óculos de aros vermelhos lhe conferem um ar cult e divertido. Ele adora calças de alfaiataria e dificilmente o vejo usando outra vestimenta. Bermuda? Nem pensar!

— Essa discussão entre vocês está divertidíssima, mas realmente preciso ir. – jogo um último bolinho de chuva na boca antes de me levantar.

— Onde vai? – vovô pergunta, ajeitando os óculos.

— Dar uma volta pela cidade. Estou precisando ficar a sós com minha pessoa maníaca-depressiva.

Meus avós se entreolham, incertos.

— Prometo voltar viva e com todos os órgãos no lugar, está bem?

— Fique longe de encrencas. – vovô sacode o indicador na altura do meu nariz.

---  Eu já disse, vô, são as encrencas que não me deixam em paz.

 

                                                             =================

 

 

Com o par de sapatilhas mais confortável que tenho, dou o primeiro passo a caminho do Centro Histórico.

O sol está a pino e os raios queimam meus braços como se eu fosse uma vampira prestes a virar cinzas. É exatamente como me sinto, só o pó.

Arrasto os pés a esmo, descortinando os mínimos detalhes de uma Paraty que parece ter estacado no tempo, suspensa sobre um mundo de tecnologias e entretenimentos baratos e sem sentido. As pessoas aqui são mais felizes, basta observar os sorrisos e o brilho no olhar. Estou com inveja dessa alegria, da aura colorida que os envolve.

Será que algum dia redescobrirei a felicidade?

Dizem que o tempo cura tudo, mas no meu caso o relógio está parado, aguardando uma peça sobressalente que nunca chega.

Eu sei, sou a rainha do drama.

— Ei, Marina! – ouço o chamado às minhas costas.

— Oi, Espírito. – lanço meu melhor sorriso matinal. – Ou deveria chamá-lo de Muchacho?

Sobre a cabeça de cabelos ralos e descoloridos, Espírito sustenta um chapelão, ao estilo sombrero mexicano. Para variar, seu corpo está todo coberto, inclusive as mãos se mantém enluvadas.

— Sua avó me descolou esse chapéu numa viagem que fez para o México, está lembrada?

— Se estou. Comi pirulitos de pimenta por quase um ano. – a boca está salivando, irritada com a lembrança. Meu estômago também se remexe como se gritasse “Não, pelo amor de Deus!”

— E olhe só isso. – ele puxa da aba do sombrero uma rede feita de crochê. – Sua avó tricotou esse troço, dizendo que protegeria o meu rosto também.

— Fala sério, isso parece um sombrero-burca! – satirizo. – Escute, não seria melhor o velho e simples protetor solar?

— O negócio vira uma meleca derretida quando encaro o fogão. Prefiro o sombrero-burca. – ele rebate, guardando a tela de crochê dentro da aba. – Para onde está indo?

— Caminhando, sem rumo definido.

— Isso é um pleonasmo! – Espírito desata a rir.

— Qual é, já tive alguns rumos definidos. – retruco, tentando parecer indignada.

— Quando? – ele une as sobrancelhas e me encara.

— Quando fui para São Paulo, por exemplo.

— Hum. Mas pelo visto o rumo definido estava equivocado, ou você não teria voltado para casa.

  – ele faz uma pausa enquanto meu ego dá uma de Chuck Norris e mete umas porradas nas minhas ideias.

  – O que aconteceu por lá?

— Quer mesmo saber? Está com tempo de sobra?

— Me acompanhe até o mercado? Preciso buscar uns pescados e tal.

— Beleza. Prepare seus ouvidos e deixe a descarga no jeito porque são muitas merdas. E quando eu digo muitas, é de entupir o encanamento.

— Ok, sou todo vaso sanitário, ops, ouvidos.

 

                                                                               ≈≈≈

 

Contei todas as minhas desventuras para Espírito que me ouviu atentamente, como sempre faz.

Vez ou outra ele murmurou algo ininteligível, pensando com seus botões.

— Pronto, satisfeito? – digo, torcendo o nariz na banca de peixes. O aroma aqui é de sair correndo e gritando, como aquele molequinho do filme Esqueceram de Mim ao aplicar o pós-barba no rosto.

— Caramba, Nina. Quando você disse que eram muitas merdas, não imaginei que fosse o esgoto inteiro. – ele ironiza, metendo o nariz em um dos peixes, inspirando-o como se fosse perfume francês.

— Eca! – faço careta e recuo. – Por que fez isso?

— Para me certificar de que é fresco, sua nojenta.

Suspiro alto e relaxo os ombros, vencida. Quanto mais conto a minha história para os outros, mais me sinto uma perdedora.

— Meu pai fez um convite para eu trabalhar no hospital. – revelo quando retomamos o caminho para a pousada. – O que acha?

— É uma boa. Sabe quem está trabalhando por lá, não sabe?

— Quem? – tomo a frente de Espírito e o encaro, bem no fundo daqueles olhos claríssimos.

— Droga, ninguém contou a você? – ele parece surpreso e a lombriga da curiosidade resolve me morder. – Talvez seja melhor descobrir sozinha.

— Faça isso e eu o prendo a uma árvore, completamente nu, ao meio-dia. – uso meu melhor tom de ameaça. – Quem está trabalhando no hospital? – faço cócegas em sua barriga, esse golpe sempre funciona.

— Pare. – ele se contorce e eu não dou trégua. – Está bem, está bem! É a Clara!

Petrifico, boquiaberta.

Clara? Aquela Clara? Não é possível, a última notícia que tive dela foi a de que estava em Londres e não havia qualquer possibilidade de voltar ao Brasil. Não, não deve ser a mesma pessoa.

— Quatro olhos, franzina, aparelho nos dentes, cabelos de Maria Chiquinha e por fim não menos importante cara de cão sem dono… está falando dessa Clara? – indago, prendendo a respiração para ouvir a resposta.

— Ela não usa mais óculos, está com o corpo malhado, tirou o aparelho e tem um cabelo de dar inveja a muita modelo esquelética por ai mas...ainda com um rosto angelical… é dessa Clara que estou falando. – ele faz uma pausa e degusta o meu momento pavor. – Ela mudou muito, Nina.

Perco a voz. Milhões de perguntas se formam em minha boca, mas nenhuma delas escapa pelos meus lábios tensos. Levo a mão ao peito quando sinto que terei um ataque a qualquer segundo.

— E tem mais uma coisa que precisa saber: ela está noiva. – Espírito lança a bomba e eu engasgo com o ar.

What????

Como assim noiva?

— Quem é o mal caráter? – meu lado sombra rouba a cena. – Alguém que eu conheça e deva matar, porque se tirar base pelos meus últimos relacionamentos a Clarinha deve estar em apuros por ser tão inocente.

- Vamos acertar alguns erros nessa sua colocação. Primeiro, ela não é mais tão inocente como era quando te conheceu monstrinho...

Faço a minha melhor cara indignada e ele sorri se divertindo as minhas custas.

- Tudo bem, talvez...só talvez eu tenha exagerado mas vamos combinar que você bagunçou a vida da coitada que te amava de uma forma que eu nunca vi antes e você brincou descaradamente com essa situação. E como eu dizia antes de ser interrompido por você, ela ta noiva de uma mulher que você conhece muito bem e sim ela é muito mal caráter. O nome Samantha Bragança lhe diz alguma coisa? – ele atira e eu explodo:

— Aquela patricinha mimada e metida a besta? Aquela enjoada, patética, chorona e…

— Linda. – Espírito complementa, tocando meus ombros.

— É, isso também. – minha cabeça pende para a frente, derrotada. – A linda, rica e inteligente Samantha Bragança. Há quanto tempo estão noivas?

— Alguns meses. A Clarinha voltou ao Brasil há dois anos e desde então, trabalha com o seu pai. Seu velho não disse nada a respeito? – o chapéu faz sombra no rosto de Espírito e não consigo acompanhar suas reações.

— Não, ele não disse. – minha voz é um sopro de pesar.

— O primeiro amor da sua vida e sua arqui-inimiga juntos… é muito para processar, Marina.

Sinto um gosto horrível no fundo da garganta. Estranhas emoções me abatem como se eu fosse uma presa ferida. Deve ser o meu tão conhecido sentimento de posse, não há outra explicação para as sensações conflitantes que estou vivenciando.

Estava tão ocupada me autodestruindo que nunca pensei em Clara com outra mulher. A ideia é tão absurda, tão sem sentido, que não consigo processar o fato.

— Não se faça de vítima, você a abandonou e não o contrário. Ela ficou arrasada quando foi para São Paulo, sem se despedir de ninguém. Por que acha que se mudou do Brasil na primeira oportunidade? – meneio a cabeça, apertando os olhos. – Ela estava tentando superar, reencontrar a sanidade. Aquele foi um golpe duro e eu acompanhei o desenrolar dessa trama bem de perto, Nina.

— Não faça eu me sentir pior do que já estou. – peço, com lágrimas nos olhos.

— Você a apagou da sua vida, como fez com a sua mãe. Abandonou uma garota incrível, que tinha tudo para fazê-la a mulher mais feliz desse mundo. – ele faz uma pausa e segura meus ombros, com firmeza. – Você quase a destruiu, espero que se lembre bem disso quando reencontrá-la.

De volta à pousada, deitada preguiçosamente em uma rede confortável, repasso mentalmente toda a minha vida como se a qualquer momento eu pudesse deixar de existir. Uma tristeza estranha me invadiu após a conversa com Espírito.

Sinto um ciúme ácido corroendo as entranhas, mordiscando meu coração estraçalhado. Não entendo. Achei que tivesse superado Clara. Como bem disse o meu amigo, eu a apaguei da minha vida assim como fiz com a louca da minha mãe.

Naquela época, eu não me senti um lixo fétido como acontece agora. De alguma forma eu sabia que Clara nunca deixaria de ser minha, tinha essa certeza doente de que ninguém tomaria o meu lugar.

Fui embora e vivi a minha vida, não fui nem capaz de deixar uma carta de despedida. Saí de Paraty naquela certeza absurda de que ela me amaria por todas as horas, todos os dias, até o fim de sua vida. E eu vibrava com essa certeza.

Como pude ser tão estúpida?

Uma brisa cálida traz um odor conhecido, que faz com que minhas papilas explodam em felicidade. Café fresco e pão de queijo. Remexo-me ligando o radar, deixando minhas narinas seguirem o rastro rumo ao paraíso.

Não preciso ir muito longe. Vejo Espírito, com uma bandeja em mãos, adornada por uma toalha de chita caindo pelas beiradas. Sento-me um tanto desconfortável e aguardo. Ele deposita calmamente a cesta com os pães quentinhos, duas xícaras e um bule de café sobre a mesa de apoio.

— Peguei pesado com você, deixe-me compensar o estrago. – ele serve o café e me estende uma das xícaras.

— Imagine. Você só me pregou numa cruz e depois ateou fogo, como a bruxa má que sou. – dou um sorriso triste, mas sincero. – Eu mereci cada palavra, não se preocupe.

Já é quase noite. Contemplo o céu, inspirando os inúmeros aromas que nos circundam. Há pouquíssimas nuvens e o sol dá um espetáculo especial para aqueles sortudos que possuem tempo e podem vislumbrar algo além de duas dimensões.

— Eu tinha que dizer alguma coisa, Nina. Mesmo que não aceite trabalhar no hospital, acabará trombando com a Clara em alguma esquina. Quero que esteja preparada.

— Por que acha que devo me preparar? – indago, aflita. – Continua com esse negócio de prever o futuro? Ainda brinca de oráculo?

— Faz parte de mim e não é uma brincadeira. – ele umedece os lábios e beberica da xícara fumegante. – Algo que diz que você vai se machucar e eu não quero que isso aconteça.

Eu o encaro, estreitando os olhos. Espírito sempre teve o dom de prever acontecimentos futuros, sem muita precisão, é verdade. Mas muito do que ele me revelou acabou acontecendo, de uma maneira ou outra. Talvez eu deva dar ouvidos ao que ele está profetizando.

— Acha que posso me apaixonar por ela novamente, é isso? – deixo minha melhor risada incrédula escapar. – Não vai acontecer, eu prometo. – e selo essa afirmativa beijando os dedos em formato de cruz. – Não quero me envolver com ninguém agora, muito menos uma pessoa do meu passado. E sério, a Clarinha não pode ter mudado tanto assim… ela nunca fez o meu tipo!

— Ainda assim, foi o primeiro e grande amor da sua vida. – ele relembra e eu estremeço. – E que eu saiba, o amor não é guiado por tipos físicos, Nina. É algo muito maior do que isso, muito além do corpo… é espiritual.

— Falou o mestre zen. – tento parecer descontraída, mas a verdade é que todos os músculos do meu corpo estão retesados. Até o café encontra barreiras para descer redondo pela garganta. O pão de queijo me chama, mas tenho medo de comer e engasgar.

Espírito suspira ruidosamente, sem tirar os olhos dos meus. Não desvio, afinal, ele é uma das poucas pessoas que consigo encarar dessa forma por tempo indeterminado. Não tenho medo do que ele possa ver na minha alma e vice-versa. Não temo pelo seu julgamento.

— Quando reencontrar a Clarinha, tente não ferrar com tudo, está bem? Prometa isso. – há uma sombra nos olhos do meu amigo.

— Prometo.

Ele me fita com um semblante cético e cerra as pálpebras, balançando a cabeça para os lados, antevendo o meu futuro novamente:

— Droga, você vai ferrar com tudo.

Meu pai, meus avós e o computador com a Van do outro lado da tela me encaram sobre a mesa rústica, farta de comidinhas que cheiram muito bem. Mas não sinto fome e mal toquei no meu prato.

Baixo a cabeça e faço nós com o guardanapo de tecido. Os quatro aguardam que eu diga alguma coisa, qualquer besteira. Penso, penso e penso. Preciso fazer algo da minha vida. Faz uma semana que cheguei à Paraty e uma preguiça mortal não me deixa sair da zona de conforto.

— Tudo bem, eu aceito trabalhar no hospital. – resolvo de sopetão. – Acho que um mês é o suficiente para colocar a casa em ordem. E depois disso, começo a trabalhar aqui na pousada.

— Finalmente uma sábia decisão. – Van bate palmas.

— E quando você começa? – meu pai ajeita o topete grisalho e sinto uma leve pressão no seu tom.

— Segunda-feira? – é amanhã.

— Perfeito. – ele sorri, satisfeito. – Já arrumei uma sala para você. Mas leve o seu notebook, não temos nada tão potente no hospital.

— Certo. – seguro o computador bem firme e me levanto. – Posso ir agora?

— Mas você não comeu nada! – vovó ergue as sobrancelhas. – Nina, você está muito magra.

— Vó, fique tranquila. – pesco uma maçã na fruteira. – Boa noite.

Equilibro Van e a maçã entre as mãos, dirigindo-me ao meu quarto ainda bagunçado. Coloco o computador sobre a cama e me jogo no colchão. Dou uma mordida na fruta proibida e retomamos o papo.

— Me mostre logo aquela lista do homem perfeito. Sabe que fiquei curiosa? Uma pena eu ter jogado a minha fora… deveria ser cômica.

— Ok, veja isso. – puxo a lista do bolso da calça, desdobro o papel um tanto amassado e mostro para a câmera.

— Leia esse negócio em voz alta, você está tremendo.

— Certo. – começo a leitura. – Universo, obrigada por conspirar a meu favor. Agradeço por me enviar o homem perfeito, aquele com quem serei feliz por toda a eternidade, minha alma gêmea.

— Realmente isso é hilário. – ela me corta, mas devido ao meu olhar fuzilante, cala-se para escutar.

— Continuando – rosno, entredentes - , eis o homem da minha vida:

“Universo, esse homem precisa ser lindo. Cabelos dourados, olhos claros, atlético, mãos grandes, pernas firmes, rosto angelical. Ah, barba por fazer é mega sensual, esse item é indiscutível. Também necessita exalar sexy appeal por todos os poros, ok? E tem mais: deve gostar de sexo todos os dias, em qualquer lugar. Isso não é negociável.

“Ser bem sucedido é imprescindível. Inteligente, divertido, carismático, generoso e romântico ao extremo. Deve me amar com todas as suas células, me venerar como uma princesa, me cobrir de beijos todas as manhãs.

“Ele não se importará com o passar do tempo, com a idade chegando. Me achará linda de qualquer maneira e não se sentirá ameaçado na TPM. Ele só pensará em mim e não terá olhos para qualquer outra baranga. Serei somente eu, eu e eu.

“A vida a dois será incrível e a felicidade plena. Não haverá traição, nunca faltaremos com a verdade nessa relação. O amor incondicional regerá nossas vidas, nossos destinos.

“O sexo será muito, muito bom! Na verdade, será incrível, transcendental. Eu me sentirei a mulher mais amada desse mundo e farei dele o homem mais feliz do universo.

“Juntos, seremos um só, para sempre.”

Van está muda do outro lado da tela. Vasculho seus olhos, buscando entender sua expressão congelada. Ela alisa os cabelos ruivos para trás e seu olhar perdido no nada finalmente se encontra com o meu.

— Diga alguma coisa. – peço, suplicante.

— Isso não existe, Nina. Você está viajando.

— Por que acha isso? – sobressalto-me. – É claro que existe, em algum lugar deve haver um homem assim, feito só para mim.

— Esse cara é perfeito e na boa, vivemos no planeta Terra. Se você realmente topar com um homem desses, no mínimo será gay. Espere – ela faz aquela cara de quem vai dizer uma grande bobagem – , já sei: seu homem é uma mulher! – e então cai na gargalhada.

— Cale a boca. – dobro minha lista do homem perfeito e coloco de lado. – Van, nada é impossível quando se acredita. – adoro uma frase pronta. Minha mente viaja no tempo nesse momento e novamente me pego pensando na Clarinha... ai céus, o que esta acontecendo comigo. Sou tirada de meus devaneios por uma insistente amiga do outro lado da tela.

— Bom, não custa tentar. Coloque essa lista debaixo do colchão e faça uma oração para o Universo. É óbvio que ele vai rir da sua cara de trouxa, mas como você disse, nada é impossível.

Fico calada, encarando a lista. Van pigarreia e pergunta o que está havendo. Demoro algum tempo para responder, sem saber como começar e qual será o seu julgamento perante a situação escabrosa que narrarei a seguir. Mas neste momento preciso de toda a ajuda possível e ninguém melhor que a maluca da minha amiga. A Van é mente aberta. Tenho certeza que não vai me recriminar ou será que vai. Na verdade me pergunto ate hoje o porque de não ter contado antes. Talvez não tivesse sido tão importante meu rolo com a Clarinha. Mas afinal caramba, por que estou tão incomodada com isso tudo.

— Preciso contar uma coisa. – digo enfim, receosa.

— Sou toda ouvidos.

— Lembra da minha amiga Clara? – faço a pergunta, sem olhar nos olhos castanhos dela.

— Aquele garota esquisita que era sua amiga de infância?

— É! Essa mesmo. – bufo alto. Então....é.....assim... – me enrolo com as palavras tentando achar uma forma de contar pra ela. A Van com sua paciência britânica explode.

- Fala logo garota. O que tem a esquisita.

– Eu achei que ela estava em Londres, pelo menos foi a última notícia que tive. Agora descubro que ela esta aqui em Parati. Não entendo porque ninguém me contou nada, nem meu pai falou sobre o assunto.

— Pare de enrolar e desembucha logo. Qual o problema da esquisita estar de volta.

— Para de chamar ela de esquisita – não sei porque mas a Van se referir a Clara dessa forma agora me incomodava e muito. Continuei tomada de uma coragem que nem eu mesma sei de onde tirei.

— Então... a Clara... a Clarinha...

— Fala Nina...tá me deixando aflita.

— A Clara é o carinha do meu primeiro beijo? Aquele da minha primeira…sabe...entendeu??? continuei antes que ela processasse todo o meu dilema. - Ela está aqui, em Paraty. Trabalha no hospital, é traumatologista.

— Brincou? – Van está boquiaberta. Ficou um tempão só me fitando sem dizer uma única palavra. Aquilo tava me matando e do nada voltou a falar – Caramba, Nina. Porque nunca me contou isso sua maluca? Gente eu to besta com tudo isso. E aí, já se encontrou com ela? Quanto tempo faz que não se veem?

— Calma Van – ela falava tudo ao mesmo tempo o que me deixou zonza de momento. – Então fazem Dez anos. – afirmo. – E não, ainda não topei com ela. Quando o Espírito me disse que ela estava de volta, senti um troço estranho, um aperto no coração.

— Também pudera! – ela explode numa gargalhada. – Você aprontou demais com esse cara quero dizer com essa garota. Ai meu Deus, me perdi toda agora.

— Nem me lembre, eu morro de vergonha só de pensar. – lamento. – Mas essa não é a pior parte.

— Tem coisa pior? Conte tudinho.

— Ela está noiva daquela sem graça. – finco os dentes no lábio, com raiva. – Nunca pensei que isso pudesse acontecer.

— De qual sem graça estamos falando? Não vá dizer que é daquela que você saiu na porrada? – Vanessa fricciona as duas mãos, doidinha com o babado. – Ain, essa história está ficando cada vez melhor.

— Van! Caraca, está de sacanagem comigo?

— Desculpe, Nina. Mas vamos combinar que essa história está boa demais. E então, é ou não é aquela baranga que você mandou para a cirurgia plástica?

— É ela mesma. – confirmo, num fio de voz.

Silêncio novamente. Van finalmente guarda o sorriso e me encara, franzindo os lábios. Sei que ela lançará a pergunta em breve e me preparo para dar uma resposta condizente.

— O que sentiu ao saber disso? – Aff!! depois eu é que sou óbvia.

— Não sei explicar. Traída, talvez.

— Traída? Ah, fala sério! – ela contesta, dando um tapa no monitor. – Nina, você chifrou a garota com o melhor amigo dela! Pirou?

— Tá, eu sei. Mas foi assim que me senti.

— O que pensou? Que ela ficaria chorando por você pela eternidade? Cara, a fila anda, pô.

— Não quero encontrar com elas, foi por isso que demorei tanto para me decidir pelo trabalho no hospital. – choramingo. – O que eu fiz com a Clara foi imperdoável e a briga que tive com a Samantha, a gota d’água. Ela foi uma cachorra contando para ela sobre a traição. Quebrar aquele nariz empinado foi muito pouco. E agora elas estão juntos? Noivas? Ah, que filha da puta! Eu deveria ter sacado, ela só estava esperando uma oportunidade para cravar a estaca no meu peito.

— Isso já era. Como você mesma disse, dez anos se passaram. – Van tomba a cabeça de lado e sei que a pergunta mor sairá em alguns segundos. – O que sentiu ao ouvir o nome dela?

Estava demorando! Infelizmente, não sei como responder a essa questão. Clara foi muito importante para mim, aliás, a mais importante de todas. O primeiro beijo, a primeira transa, enfim…ela foi demais. Só agora me toco realmente disso. Sim, ela realmente é muito importante pra mim o que não impede que eu fique ainda mais perdida. Céus...que confusão é essa minha cabeça.

— Não sei dizer. Senti que estava caindo num buraco sem fundo, algo assim.

— Hum. – ela pensa um pouco e solta a pérola: – Desculpe, espero estar errada, mas é raro eu me enganar: prepare-se porque acho que você está ferrada. Mas voltando a questão inicial que ainda não engoli direito, você não me respondeu a minha pergunta.

— Porque nunca me contou que tinha sido uma menina sua primeira vez. Por que escondeu isso de mim?

Achei que ela porventura poderia esquecer mas não a Van, imagina. Mas como responder a isso também. Por fim digo .

-   Também não tenho uma resposta pra isso Van.  Sinceramente, nem eu sei porque não te contei. Sei lá, na hora não vi a relevância disso. Foi há tanto tempo.

Mas a Van não iria facilitar minha vida e solta.

— Por acaso achou que eu iria te julgar? Diz ela por fim com uma certa mágoa na voz

Corro pra desfazer o equívoco.

— Não Van, desculpe, sei lá nem eu mesma sei o porque não disse.

— Ta bom, vamos esquecer esse episódio. Não quero colocar ainda mais pressão sobre você. Tudo bem.  Vamos focar no que vai fazer e como vai se portar quando a ver de novo, por que vamos combinar, essa história não está tão enterrada no passado como imaginávamos, concorda?

Ela disse  isso e eu não respondi nada, mesmo porque pra variar também não tinha uma  resposta pra isso também. Me limitei a dizer por fim.

- Ai meu Deus, o que eu faço.

— Acordou antes do meio-dia, que baita progresso! – Espírito me lasca um beijo na bochecha, tomando assento à minha frente na mesa de café-da-manhã. – E então, preparada para a labuta?

— Quer saber? Estou com um frio esquisito na barriga. – revelo.

 

Espírito leva os cotovelos sobre a mesa e entrelaça os dedos. Fita-me por algum tempo e quando sua boca se movimenta, ajeita uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.

— No final, tudo dará certo.

— Você mesmo disse que vou ferrar com tudo, lembra-se? É melhor se decidir. – rebato, cruzando os braços.

— Eu estou falando do trabalho.

— Ah. – nesse momento, levanto-me num salto quando meu pai chama do outro lado do gazebo. – Preciso ir. Estou bonita?

— Está um arraso. – ele declara, solenemente.

Visto uma combinação de saia jeans comportada, um palmo acima dos joelhos, blusinha branca canelada e uma camisa social aberta. Nos pés, uma sapatilha bem confortável.

— Está com um ar cult, sabe? – ele continua. – A quem quer impressionar?

— Ninguém. – defendo-me. – Só quero parecer profissional, madura e…

— Bem resolvida? – Espírito sorri. – Vai passar a impressão correta, fique tranquila. Tenha um bom primeiro dia de trabalho. – ele me abraça e sussurra: – Só mais uma coisa: Samantha Bragança é a dermatologista do hospital.

— O quê???????????

Ele não diz mais nada. Dá um beijo estalado na minha testa e com um sorriso irritante, me deixa sozinha nesse momento surto ao quadrado.


Notas Finais


Bom por hoje é isso e como perceberam o encontro agora é inevitável. Bom fim de semana a vcs e bjos
Fuiiiiii


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