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História Um é melhor que dois - O acidente


Escrita por: Bellalm

Capítulo 1 - O acidente


O amor e a morte são os assuntos mais poéticos do mundo inteiro. Dizem que o amor é a única coisa capaz de atravessar a morte. É também o responsável por ligá-la à vida. E esse é provavelmente o assunto que tem mais interessado a humanidade desde que os conceitos “amor”, “vida” e “morte” passaram a existir.

Mas o que acontece quando a ordem natural dos fatos é invertida? Esse amor não seria tão genuíno assim? Ou seria ainda mais trágico que os outros? É possível se apaixonar por alguém que já está morto?

Ele não estava feliz por ir embora. Eu também não. Sua partida não foi natural, mas forçada e súbita. Eu vi de perto a destruição que deixou. Mas também vi os belos frutos de sua simples existência. Existência essa, tão deslumbrante e única, que acabou encantando meu coração e me tocando para sempre.

Algumas pessoas diriam que eu destruí sua vida. Mas nunca me senti culpada porque percebi que ele havia transformado a minha completamente. E me apaixonei. Me apaixonei por tudo o que ele foi, e por tudo o que poderia ter sido. Me apaixonei pelo que me tornei por sua causa. E a nossa diferença era vida: eu, pela presença; ele, pela ausência. Amor, que era a única coisa que ainda nos unia.

 

Um é melhor que dois. 

Em cada esquina

Cada rua deserta

Cada rosto desconhecido

Eu procurava por quem estive esperando desde o dia em que descobri que um era muito pouco para mim. 

"Ninguém vive sozinho", dizia meu sábio pai. 

E um dia 

Dentre tantas esquinas

Tantas ruas desertas

Tantos rostos desconhecidos

Eu encontrei você. 

Agora éramos dois

Mas dois ainda era pouco para mim.

Toda aquela espera passou 

A vida prosseguiu e você se tornou parte dela. 

Eu e você… Nos tornamos um só

E aquilo era o suficiente para mim. 

Porque dois não era próximo o bastante

Porque o que eu procurava era a parte que faltava em mim mesma

E porque um é melhor do que dois. 

 

A vida é a mesma para todos: nascemos, crescemos, morremos. Sofremos, sorrimos, amamos, deixamos um legado, seja ele bom ou ruim, direcionado ao mundo inteiro, ou a um único ser no mundo. Pensamos ser tão diferentes uns dos outros, e de fato somos, mas acabamos todos passando por provações que não possuem graus de importância ou tamanho; todo sofrimento é único e só pode compreendido por quem o possui. Cada um conhece muito bem a dor que sente.

O mesmo é com a morte: é a mesma para todos. Assim como na vida, existem formas diferentes de morrer. Mas nenhum de nós tem o privilégio de escapar dela. Na maior parte das culturas, a morte é vista como algo terrível e que não deve ser mencionado. Eu sempre acreditei que a morte fosse tão natural quanto a vida e, embora a saudade doesse, fosse melhor pensar nas pessoas queridas com carinho e amor, e não com tristeza e ressentimento. Não devemos guardar suas fotos no fundo das gavetas, ou queimar suas roupas que costumávamos ver no armário. Pelo contrário, devíamos olhar para uma dessas coisas e lembrar, e sentir... E chorar. Não de tristeza, mas de felicidade. Felicidade por ter conhecido uma pessoa tão especial e saber que, na sua memória, ela será eterna.

E foi através da morte que eu conheci o amor.

 

Era um sábado de manhã. Acordei atrasada e, enquanto minha mãe me apressava pelos cantos, eu comia um pedaço de pão lentamente. Mastigar bem é o segredo para uma vida longa, dizia meu pai. Meu pai é um estudioso e tem doutorado em história. Dá aula em universidades, é pesquisador e vive viajando para congressos, palestras e bancas, todas relacionadas ao tema. Mas seu maior sonho mesmo era se aposentar. Ele finalmente pôde fazê-lo pouco depois que eu completei dezesseis anos, e passou a cuidar da casa no lugar da minha mãe, que pelo contrário teria horror a largar o emprego e virar dona de casa. Minha mãe é arquiteta e ama sua profissão, assim como meu pai, mas ao contrário dele sente a necessidade de viver na correria. É absurdamente vaidosa e parece ter pouco mais de trinta anos, com seus cabelos loiros e compridos e sempre de salto alto. Meu pai, pelo contrário, é um grisalho, de óculos, quieto, tranquilo, tímido, que gosta de ficar em casa lendo livros na sua biblioteca gigantesca e cuidando da família.

A biblioteca do meu pai é maior que o meu quarto, e eu me acostumei com isso há algum tempo atrás. Somos no total cinco irmãos e eu sou a mais velha, e única menina. Os mais novos são os gêmeos, com cinco anos, dois pestinhas ruivos como o meu pai, antes que seus cabelos se tornassem grisalhos. Depois vem o Renato, que tem dez anos e é intelectual como o papai, e muito maduro para sua idade. Por fim, o Bruno, que tem quinze e está passando por uma adolescência difícil e rebelde. Nos natais, por exemplo, retira-se da mesa assim que come e vai se enfurnar em seu quarto, que é quase uma caverna. Ele gosta de dizer que nos odeia, mas a primeira vez que Renato foi parar no hospital, ele chorou com todos nós.

Renato tem alergia a quase tudo; até mesmo a leite. As mais exóticas descobrimos através de sua primeira crise, que foi mais grave que todos nós gostamos de admitir. É estranho como meu irmãozinho quase morreu por causa de uma coisa que comeu, e que lhe parecia tão gostosa, quando tinha apenas oito anos. Nem tudo que causa a morte é terrível; algumas coisas são justamente as mais prazerosas, e por isso são também tão perigosas. Matam sem a gente se dar conta. Algumas pessoas chegam até mesmo a assumir: são tão boas, que vale a pena morrer por elas.

Eu passei a entender isso um pouco tempo depois daquele mesmo sábado, quando eu me preparava para visitar pela primeira vez a faculdade em que eu iria estudar. Eu escolhi o curso de jornalismo, porque todos sempre disseram que eu escrevia e me comunicava muito bem. Comecei a gostar da ideia de transmitir informações e ideologias a outras pessoas. Despedi-me dos meus pais e peguei o carro emprestado, porque eu nunca tive o prazer de ganhar o meu próprio. Meus pais tinham bons salários, mas uma família grande pra sustentar. Fui sozinha; sempre gostei de estar só, mesmo que vivesse rodeada de pessoas, gritos e sorrisos. Naquela época eu me achava autossuficiente.

Cheguei cedo. O campus era na cidade vizinha, há pouco mais de uma hora. Cidade universitária. O calor era grande e por isso eu não vestia mais que um vestidinho leve e sandálias de dedo. Ah, era dezembro! Devia ser por isso que o dia estava tão quente e abafado e eu mal conseguia manusear o volante sem suar. Ainda assim, o trajeto foi agradável e não me incomodou nem um pouco o vento forte vindo das janelas abertas, abafando minha música no som e bagunçando meus cabelos ondulados, e divinamente refrescando cada centímetro da minha pele que transpirava. Nunca gostei muito de dirigir; se pudesse, ia até lá de bicicleta. Estacionei e ajeitei a bolsa de couro nos ombros. O local estava lotado de jovens alegres e barulhentos, com seus estilos bem marcados e extravagantes. Não só na universidade, mas em todo o restante da cidade, que parecia ser só deles. Era bem diferente da minha cidadezinha pequena, onde só podíamos ver famílias, crianças e pessoas mais velhas.

Eu tinha só dezenove anos, mas já me sentia uma idosa. Bem, pelo menos perto daqueles jovens tão animados, tirando fotos e mexendo no celular a cada segundo. Eu nunca tive um celular. Passei pelos portões, descontraída, e vi um grupo de rapazes assoviar pra uma garota loira. Não prestei atenção neles, só me lembro que um, especificamente, tinha os cabelos bem parecidos com o da mulher que tinham acabado de assediar.

Visitei, sozinha, vários prédios e assisti a palestras. Lanchei na lanchonete. O que eram aqueles salgadinhos divinos? Era pouco mais de quatros horas da tarde quando começou a chover, e me preparava para ir para casa. Corri até o meu carro e no caminho ouvi o comentário maldoso de um daqueles mesmos rapazes que assediavam a mulher mais cedo.

- Por que você está correndo? Está com medo de estragar a chapinha? – debochou.

Ele tinha os cabelos ruivos, como os dos meus irmãozinhos. A comparação me fez sorrir e, talvez por isso, não tenha levado a provocação tão a sério. Ou talvez porque sempre foi muito difícil me tirar do sério. Os outros amigos riram da piada, que era no mínimo infantil e racista, considerando que sou negra. Nunca tive os cabelos crespos, mas cheios e ondulados. Ele devia imaginar que eram fruto de algum procedimento estético, mas eram naturais.

- Então eu acho que você devia correr também. – respondi sorrindo de volta, e voltei a correr em direção ao carro.

Ouvi atrás de mim risos e provocações. Eu podia jurar que aquele detestável rapazinho estava me olhando como se, com apenas o olhar, pudesse me estrangular ali mesmo. Eu não olhei para trás para conferir.

Havia acabado de sair da universidade e, bem pertinho, vi pela janela uma loja de discos. Voltei meu olhar para as ruas molhadas, porque a chuva já havia engrossado consideravelmente e eu devia ser cuidadosa. Mas nem sequer tive tempo de pensar nisso. Quando olhei para frente, um carro na contramão se encontrava há poucos metros de mim. Soube mais tarde que se tratava de um grupo de jovens e o motorista sequer tinha habilitação. Desviei e pensei ter ouvido gritos, mas talvez eles só estivessem dentro da minha própria cabeça. Só percebi a presença dele quando já estava prestes a se chocar contra o carro. Estava usando terno, muito elegante, e tinha os cabelos escuros molhados e olhos que não soube de qual cor. Na verdade, só me lembro do terno e dos cabelos porque, mais tarde, pude reconstruir aquela memória na minha mente e fazer com que ela fizesse mais sentido, ou fosse um pouco mais bela. Afinal, era a primeira memória que eu tinha dele.

A nossa história começou pelo fim, e hoje percebo isso. Naquele momento, ele parecia branco como papel. E olhou fixamente na direção do carro, com olhos arregalados, mas não eram assustados. Pareciam simplesmente... Surpresos. Assim como os meus. Talvez nós dois tivéssemos muito mais em comum do que qualquer um admitiria: não percebemos a gravidade do momento, ou o que ele viria significar em nossas vidas. Eu só fui me dar conta do acidente quando acordei no que poderia ser uma eternidade depois numa cama de hospital, completamente sozinha. 



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