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História Um é melhor que dois - Início e Fim


Escrita por: Bellalm

Capítulo 2 - Início e Fim


Soube mais tarde que o acidente havia sido feio e as pessoas próximas socorreram rapidamente os feridos, incluindo eu, que agora estava no hospital local. O hospital rapidamente contatou meus pais, que abandonaram tudo em casa e vieram me ver. Pouco depois de ter despertado, meu pai entrou pela porta com uma garrafinha de água na mão e o rosto mais cansado do mundo inteiro. Tirou os óculos para me abraçar, logo depois de ter me olhado de maneira tão feliz que encheu meus olhos de lágrimas. Não via aquele olhar e a expressão em seu rosto desde o dia em que nos conhecemos.

Minha mãe surgiu em seguida e os dois me encheram de perguntas, abraços, beijos e palavras de conforto. Eu não sentia mais do que algumas dores no corpo e tinha alguns arranhões. Estava ali há poucas horas e nada de grave me acontecera. Se estivesse mesmo tão bem quanto aparentava, seria liberada no dia seguinte.

Meus pais dormiram de mãos dadas no sofá. Apreciei a união deles e tentei pensar só naquilo: suas mãos juntas, entrelaçadas, e cheguei a pensar que o acidente havia os unido ainda mais. Mas não, não era o acidente; era a alegria de eu sobreviver a ele. Ainda assim, não dormi naquela noite pensando no homem que vi segundos antes de tudo desaparecer. O homem que olhava na minha direção, mas na verdade não me via. Gostaria de entender o motivo pelo qual não conseguia me lembrar de seus olhos.

De fato, fui liberada no dia seguinte, mas não quis partir de imediato. Meus pais não me deram informações mais detalhadas: eu havia me desviado de um carro na contramão, dirigido por um irresponsável sem habilitação, e chovia muito. O carro perdeu o controle e atingiu um pedestre, um homem, que não havia falecido. Essa foi a minha primeira pergunta.

Soube pelo hospital que ele também estava internado ali. Descobri seu nome: Mike. Fiquei feliz: já não podia mais dizer que não sabia nada sobre ele. Pois bem, sabia o seu nome, e naquele momento aquilo significava muito para mim.

Soube que estava em coma, e essa notícia já não me deixou tão feliz assim. Quis saber mais, mas não puderam fornecer outras informações. Não fiquei chateada; prometi às funcionárias que voltaria amanhã, e no dia seguinte, e no outro dia.

Eu nunca voltei àquele hospital. Quando saímos de lá, não importa o quanto estivéssemos exaustos, tivemos de prestar depoimentos e tivemos dores de cabeça por muito tempo com aquelas mesmas questões. Mesmo que eu não me sentisse culpada, eu havia atropelado um homem e o levado ao coma, e tinha de responder por isso. Já em casa, todos me deram extremo apoio na situação difícil pela qual eu passava. Não foi difícil sofrer um acidente, ou despertar num hospital. Não foi difícil saber que tinha atropelado um inocente e que ele estava em coma, e estaria por Deus sabe mais quanto tempo. O mais difícil foi saber que eu estava bem, e ele não. E eu jamais fui capaz de admitir isso.

Fingi que estava tudo bem. Aliás, fingir talvez não seja a palavra certa, porque eu mesma acreditei naquilo. Eu sorria, dizia que estava ótima, que acidentes aconteciam e que a culpa não era minha. Era mesmo muita infelicidade que o destino nos tivesse colocado juntos no mesmo lugar, na mesma hora, e a cadeia de eventos resultasse em algo tão trágico. Mas Mike iria melhorar, e eu tinha certeza disso. Falava essas coisas com todos, com tamanha segurança que eles acreditavam em mim também. Falava de Mike como se o conhecesse. Mais: como se fossemos velhos amigos. As pessoas diziam à minha mãe:

- Você tem uma filha tão madura! Está lidando tão bem com a situação!

Estava lidando do meu jeito. Mesmo que não tivesse retornado ao hospital, eu não fui capaz de fingir que nada tinha acontecido. Pelo contrário, toda a minha vida desde então pareceu girar em torno do acidente. Eu tentava a todo custo reconstruir a cena e me lembrar de todos os detalhes possíveis, mesmo que para a maior parte das pessoas aquilo fosse um pesadelo. Talvez aquele fosse meu jeito de lidar com o trauma. Liguei para o hospital mais vezes do que poderia imaginar. Soube, dia por dia, a situação de Mike e enviei flores a ele, junto com cartões cheios de palavras de apoio. É claro que nunca me identifiquei como a motorista, aquela responsável por ele estar naquela cama de hospital, culpada ou não. Queria que as coisas entre nós começassem do melhor jeito possível. Queria, a todo custo, me aproximar dele. Mantive em segredo todas aquelas coisas da minha família. Já estávamos tendo dores de cabeça demais com todo aquele acidente.

Não conhecemos nenhum parente da vítima. Descobrimos que quem se responsabilizava por tudo era um tio mais velho, e distante de Mike. Durante todo esse tempo, evitava ao máximo pensar no sofrimento de sua família. Mas gostava de imaginar que ele tinha muitos irmãos como eu, que o receberiam com a mesma quantidade de abraços que eu recebi quando entrei pela porta de casa a primeira vez depois do acidente. Bruno me abraçou pela primeira vez em anos. Ele não era mesmo tão rebelde e amargurado quanto queria parecer e pensar que eu poderia nunca mais ter sentido aquele abraço foi aterrorizante.

Eu era como uma mãe para aqueles meninos. Não que a minha mãe não fosse presente ou boa o suficiente, mas ela era um tipo de mãe diferente da que eu representava para eles. Ela era a mãe linda, elegante, que sempre conversava como se fossemos todos adultos, nos arrumava como se fossemos príncipes e princesa e, quando nos entristecíamos, colocava a mão sobre nossas cabeças de modo protetor, e nos acalmávamos tanto que chegávamos a dormir. Já eu... Eu estava sempre por ali, e não era tão ocupada quanto a minha mãe. Cuidava das crianças na maior parte do dia: os colocava para acordar e dormir, ajudava com os deveres de casa, fazia comida para cada um, puxava suas orelhas quando faziam algo de errado. Por isso foi tão difícil dizer a todos que eu havia de fato decidido ir para aquela universidade, há pouco mais de uma hora dali, e os veria com muito menos frequência.

Os gêmeos não entendiam essas coisas ainda, mas eu sabia que seriam aqueles a mais sentirem falta de mim. Meu pai jurou que não os atrapalharia em nada minha partida e que ele cuidaria das crianças ainda melhor do que eu. Queria que eu seguisse meu caminho e jamais permitiria que eles me segurassem para trás. Renato fez com que eu prometesse que o ligaria todos os dias e que quando viesse vê-los, teria que brincar com eles o dia inteirinho. Bruno resmungou, disse que não fazia diferença, mas eu me certificaria de mandar mensagens para ele todos os dias também, para que não se esquecesse de que, mesmo com aquela casca azeda que ele insistia em construir ao redor de si, eu o amava muito.

Eu estava insegura se deveria mesmo ir para aquela universidade, ou se deveria simplesmente me matricular na faculdade da cidade, onde ficaria perto da minha família e não teria maiores dificuldades. Aquela era, de fato, a escolha a qual eu mais estava inclinada, antes que recebesse aquela notícia.

Era final de dezembro quando decidi começar a mandar cartas, além dos bilhetes, para Mike. Descobri, pelos meus telefonemas, que durante todo esse tempo ele não recebera uma única visita. Pensei nele ali, sozinho, abandonado, como se ninguém mais no mundo se importasse com ele. Eu me importava. E eu queria que ele soubesse daquilo.

Queria que, quando ele acordasse, fosse recebido com amor e carinho. Não teria ao seu redor familiares e amigos, o que era provavelmente a coisa mais triste em toda aquela história. Também não me teria ali, segurando sua mão e rezando para que acordasse logo e eu pudesse descobrir de que cor eram seus olhos, mas encontraria uma carta endereçada a ele, ao lado de um buquê de flores, que eu enviava de dois em dois dias.

O estado de Mike era estável e não havia nenhum sinal de piora, mas também nenhum de melhora. Os médicos estavam preocupados, mas soube que seus ferimentos mais graves já começavam a se curar. Talvez, quando acordasse do coma, houvesse complicações, como uma perda de memória. Se isso acontecesse, eu não seria capaz de conhecer a pessoa que ele um dia foi, mas o ajudaria a constituir a pessoa que seria a partir de então.

A ligação que eu sentia com Mike era forte. Sentia-me responsável por ele, por ter causado o acidente, é claro, mas era mais do que isso. Algo que me motivava a mandar todas as flores que conhecia, porque não sabia de qual delas ele gostava, e queria arriscar. Que fazia com que eu não conseguisse seguir meu dia normalmente enquanto não soubesse notícias dele e de seu estado, mesmo que soubesse que era sempre o mesmo. Algo que me motivou a pesquisar seu nome na internet e descobrir que, assim como meu pai, ele era um pesquisador e intelectual. Li cada um de seus artigos, assisti aos vídeos de palestras e aulas, descobri que ele era professor de geografia e que tinha apenas trinta e dois anos. Mas os vídeos tinham qualidade ruim e não pude achar nenhuma foto. E a única lembrança que eu tinha dele era um borrão de terno, pele pálida e olhos invisíveis.

Foi exatamente no dia do Natal que escrevi a primeira carta. Enquanto minha mãe gritava porque achava que o peru queimara, os gêmeos derrubavam os enfeites da árvore, meu pai gritava Bruno para que saísse do quarto e Renato demorava pra sair do banho, o último a entrar, eu me refugiei na varanda e escrevi rapidamente o que deveria ser um rascunho, mas acabou sendo o resultado final.

 

Caro Mike

Todas essas flores foram enviadas por mim. Eu não sei o que fazem com elas depois de um tempo. Será que se acumulam? Acho que você ficaria feliz em acordar e estar rodeado de flores. E eu espero que elas não te façam se sentir tão sozinho.

Você não me conhece. Meu nome é Teresa, mas todo mundo me chama de Tess. Foram meus irmãozinhos mais novos que inventaram esse apelido. O que mais você quer saber sobre mim? Eu nunca sei o que dizer. Nunca falei assim sobre mim mesma. Aliás, não tenho certeza se sei quem eu sou. E talvez seja por isso que eu te mando essas cartas, na esperança de que você possa me ajudar a desvendar.

O destino me fez conhecer você. E eu sinto que existe em você muito mais do que posso imaginar, e que pertence a mim. Ainda não o conheço muito e esse mistério fascina. Mas a cada dia que passa me sinto mais descontente em não ter nenhuma recordação sua, nem mesmo do seu rosto.

Quero visitá-lo, e de preferência o mais breve possível. Quero descobrir qual é essa estranha conexão que nos liga, e por que é que eu não consigo tirar essas maluquices da minha cabeça. E gostaria de estar aí quando você despertasse, e explicar quem eu sou, se eu tiver coragem.

Melhore logo.

Tess.

 

O natal foi uma bagunça, como em todos os outros anos. Muita gritaria, correria, um peru queimado e copos quebrados. Mas minha mãe devia ser a mulher mais linda do mundo naquele vestido amarelo; meu pai, o homem mais fofo do mundo enquanto nos fotografava nos piores momentos, e meus irmãos, os mais felizes do mundo quando abriam seus presentes, a maior parte deles ainda acreditando em Papai Noel.

A existência de Mike me pesou pouco mais da meia noite, enquanto todos ainda estavam de pé. Quis me deitar e evitar qualquer pensamento com o sono, mas temi sonhar com todas aquelas coisas. Me distrai rapidamente.

Novas datas comemorativas surgiram, como o ano novo, e Mike ainda estava no hospital. Foi quando decidi visitá-lo e inventei uma desculpa qualquer para sair de casa. Nunca havia mentido para os meus pais, mas algo me fazia querer esconder aquilo. Como se, sendo o nosso segredo, nós dois estivéssemos mais próximos. Pelo menos tínhamos alguma coisa que fosse nossa, e só nossa.

Se as visitas estavam sendo permitidas, a condição de Mike melhorava. Aquele pensamento me guiou todo o caminho e eu não estava nervosa quando cheguei ao hospital e me apresentei na recepção. Todos ali pareciam já me conhecer.

Entrei no quarto muito tranquila e permaneci mesmo quando meus olhos caíram naquela figura que, na minha mente, era tão familiar, mas na realidade não passava de um desconhecido. Ele tinha mesmo uma pele branca e cabelos pretos. Seus cabelos deviam ter crescido durante esse tempo no hospital, e caíam um pouco nos olhos. Eu não sei se ele de fato parecia mais jovem do que era, ou se eu tinha aquela sensação simplesmente por encontrá-lo ali, tão vulnerável e minúsculo naquela cama de hospital. Como nas minhas fantasias, segurei sua mão com força e gostei do jeito como ela se encaixou na minha. Rezei para que ele abrisse os olhos e esperei até não poder mais, mas nada aconteceu. O horário de visitas acabou, e eu tive que ir embora.

Ainda assim, estava otimista. Ele ainda tinha muitos machucados, mas eu apostava que as suas cicatrizes por dentro eram maiores. Que tipo de história ele tinha, para ser alguém tão solitário assim? Algum dia iria se recuperar de tudo aquilo, e se tornaria mais forte. As minhas cicatrizes, por dentro e por fora, já haviam se curado. E eu estava bem. Mas queria que ele estivesse também.

Antes de sair, fui parada por uma enfermeira que me observou de um jeito engraçado e sorriu para mim.

- Você é forte. – ela disse, me olhando direto nos olhos.

Provavelmente porque eu não derramara uma só lágrima, e nem tinha um semblante abatido. Aliás, ver Mike foi como tirar um peso do meu coração. Eu estava grata, e feliz. Ver seu rosto de perto me ajudou a reconstruir aquela memória, e foi responsável por me dar uma segunda, mesmo que as duas fossem essencialmente trágicas. Ainda diziam a respeito somente a ele, e pertenciam somente a mim. Segurar sua mão foi reconfortante, e me deu forças para continuar e não sentir culpa alguma. Eu estava bem por algum motivo, e ele não estava por outro. Não que merecêssemos o que cada um passava, mas devia haver planos maiores para cada um de nós.

Mesmo que ele estivesse naquela situação, era tão bonito! Eu pude ver a beleza dele, independente de tudo. E minhas esperanças nunca estiveram tão fortes quanto naquele momento. Eu soube que ele iria ficar bem, que nós iriamos ficar bem, e eu não devia me preocupar com nada.

- Eu tenho esperanças. – respondi apenas, retribuindo o sorriso. Ela pareceu ainda mais comovida.

- É mesmo muito lindo de se ver. Ele tem sorte de ter uma namorada como você. Eu nunca vi um amor assim tão forte.

Fiquei surpresa, mas logo sorri. Sorri não; ri. Como uma boba apaixonada. Ela ficou surpresa também, mas riu junto comigo. Rir aliviou o restinho do peso que eu trazia comigo, assim como o peso daquelas palavras.

Amor. Ah, antes fosse só amor! Talvez fosse mesmo. As coisas sempre me pareceram muito simples e diretas.

Voltei a visitá-lo outras quatro vezes. Assumi o papel de sua namorada, e nunca tentei desmentir aquilo às moças que me olhavam suspirando cada vez que eu saía de lá com um sorriso bobo no rosto. Como se simplesmente vê-lo já fizesse bem à minha alma. Como se o pouquinho de vida que ele ainda tinha, alimentasse a minha própria. E como se, segurando a mão dele com tanta vontade, olhos fechados, desejando com toda força que ele estivesse bem, eu pudesse passar um pouquinho da minha vida para ele.

Descobri mais coisas sobre Mike. Eu nunca entendi absolutamente nada das coisas que lia de sua autoria na internet, mas continuava lendo mesmo assim. Sentia-me mais próxima dele, como se fossemos cúmplices. Meu pai achava que fossem livros de ficção, porque eles me mantinham concentrada no computador por horas. Mike... O que eu não faria por uma única foto sua!

Eu pensei em escrever mais cartas, mas não tive tempo nem disposição. Viajamos em família para a praia e voltamos todos bronzeados e cheios de lembranças; eu mesma tinha o braço coberto de pulseirinhas.

 

Não cheguei a escrever muitas cartas; aliás, apenas duas. Início e fim. Nossa história não tinha meio. 



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