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História Um é melhor que dois - O surgimento do documentário


Escrita por: Bellalm

Capítulo 4 - O surgimento do documentário


No primeiro dia de aula o campus era um verdadeiro caos de estudantes que riam, corriam, gritavam, todos animadamente. Nunca tive nenhum amigo próximo, apesar de me socializar com facilidade. Ajeitei a bolsa de couro no ombro, olhando atentamente aquelas interações que, de uma forma boba, me deixavam mais feliz. Encontrei Mila e ela me apresentou a alguns amigos. No primeiro dia só aconteciam palestras de recepção aos alunos e todos concordavam que eram entediantes e não iriam. Prometi encontrá-los mais tarde; estava determinada a comparecer.

Ouvi um assovio. Me virei para o grupo de rapazes e reconheci pelo menos dois deles: o ruivo grosseiro que havia feito uma piada sobre o meu cabelo, e o rapaz loiro de cabelos compridos. Mas o que havia assoviado era outro, que devia estar com o mesmo grupo da outra vez, mas que acabei não reparando. Tinha os cabelos pretos, curtos e lisos. Era branco, de olhos muito escuros e corpo atlético. Seria bonito, se não fosse um idiota.

- Cara, como eu adoro o início de período e todas essas calouras... Está perdida? Eu posso te mostrar o campus... – ele começou, olhando diretamente para mim.

Eu devia ter continuado andando, mas não estava acostumada a ignorar as pessoas. Antes que pudesse pensar no que responder, outro deles interferiu, com uma expressão entediada e revirando os olhos.

- O seu nível tem caído, Will. – debochou. Era o rapaz loiro. – Ela se veste como uma criança de dez anos.

Eu usava um macacão jeans, curto e larguinho, com uma blusa branca e tênis estampados. Renato adorava aqueles tênis, porque tinham diversas formiguinhas desenhadas, e ele sempre dizia que pareciam reais. Minha roupa não era exatamente a mais madura de todas, mas não achava que merecia um comentário tão maldoso. Olhei diretamente para o garoto, tentando prender meu olhar no dele.

- Você foi muito rude. – respondi, sorrindo como de costume. – De qualquer forma, não é como se todas as garotas se vestissem para agradar idiotas como você.

Ele fez uma careta e eu ri. Era ele quem parecia uma criança de dez anos. Continuei meu caminho em direção ao auditório, mas ouvi o rapaz musculoso, que agora eu sabia que se chamava Will.

- Ei, espere aí! Você é a menina daquele dia, não é? Eu adoro mulheres bravas!

Não esperei, nem dei atenção. Eu não gostava de homens que assediavam mulheres.

Durante a palestra, não conseguia parar de pensar como seria no dia seguinte, sabendo que eu estaria no mesmo prédio em que Mike um dia foi professor. Podia imaginá-lo caminhando pelos corredores, de terno, muito sério e elegante. Eu definitivamente me sentiria mais próxima dele, mas seria o bastante?

Eu achava que sim. Mas se realmente era, por que é que eu não conseguia parar de pensar sobre aquilo? Eu precisava encontrar uma maneira de nos aproximar ainda mais. De fazer com que nós dois fossemos um só.

Aquele lugar estava cheio de pessoas que o conheciam. Que trabalhavam com ele, que o viam diariamente, que deviam ter todos os tipos de objetos e lembranças ligadas a ele. Tive certeza de que os perseguiria, um a um, mas precisava de um pretexto. Afinal de contas, quem eu era? Nós nunca chegamos sequer a nos conhecer pessoalmente. Começava a me incomodar a ideia de ter que mentir sobre quem eu realmente era. E eu não era ninguém.

Eu era só uma menina obcecada. A ideia me veio à mente como um estalo. Talvez eu realmente tivesse talento e criatividade, e devesse estar cursando jornalismo. Decidi montar um documentário biográfico sobre Mike, que funcionaria também como um memorial. Aquela era a desculpa perfeita para fuçar cada detalhe de sua vida sem parecer completamente louca. As pessoas me dariam credibilidade e me passariam qualquer informação. Eu poderia até mesmo fazer entrevistas. No momento, não havia imaginado como faria ao final de tudo, pois as pessoas me questionariam se aquele documentário nunca ficasse pronto. Eu não estava preocupada com o futuro; me preocuparia quando ele fosse o presente. Minha ideia brilhante me deixou muito empolgada e decidi que começaria o quanto antes.

Os primeiros dias de aula foram tranquilos, na medida do possível. Eu me sentia perdida naquela sala de aula, mas prometi a mim mesma que, se era aquilo que eu tinha me proposto a fazer, faria bem feito. Pensar que em breve eu e Mike estaríamos compartilhando os mesmos tipos de conhecimento me deixou mais estimulada a prestar atenção em todas as aulas e anotar qualquer coisa que achasse ser útil, ou seja, tudo. Durante os intervalos, enquanto explorava o prédio, aproveitava para caçar rastros dele. Passeando pelos gabinetes dos professores, percebi que ainda não haviam tirado o seu nome numa das portas, embora já devessem ter encontrado um substituto. Vê-lo escrito ali me encheu de alegria. Era quase como se, caso eu batesse à porta, ele pudesse me atender.

Cada centímetro daquele lugar transpirava sua vida. Busquei na biblioteca livros e teses em que ele estivesse envolvido, e peguei meia dúzia deles. A bibliotecária me observou com um sorriso no rosto, como se estivesse orgulhosa de uma caloura estar estudando duro logo no início do semestre. Embora os textos fossem extremamente técnicos, me esforcei para lê-los, mesmo que tenha me levado pelo menos uma semana para cada. Buscava termos e explicações em outros livros, ou na internet. Cheguei a buscar ajuda de alguns colegas de sala, que eram certamente muito mais estudiosos que eu, e eles se prontificaram a me ajudar. Estudar agora parecia ter um significado a mais.

Mila quase não passou a primeira semana em casa. Ela dormia fora, assim como passava todo o dia, e voltava apenas para pegar roupas ou tomar um banho. O campus estava repleto de festas de recepção, e talvez por isso as aulas estivessem sempre tão vazias, ou cheias de alunos zumbis, que deitavam em suas carteiras no fundo da sala e dormiam a maior parte das aulas.

Na primeira noite de festas, Mila insistiu para que eu a acompanhasse, mas recusei firmemente. Não gostava de festas universitárias. Ao mesmo tempo, era um desperdício ficar trancada num quarto a noite inteira, especialmente porque as noites eram tão quentes no mês de fevereiro. A janela do nosso quarto era grande e possuía um parapeito grande, que permitia que eu me sentasse e ficasse observando o lado de fora. Nosso quarto ficava no segundo andar dos dormitórios femininos.

Caminhei tranquilamente pelos caminhos próximos ao dormitório e aqueles que eu conhecia. Ouvia de longe os barulhos de música e vozes, sabendo pertencer a uma das inúmeras festas. Quando cansei de andar, me sentei num banquinho de madeira e olhei para o céu. Estava lindo.

Acabei me deitando para olhar as estrelas. Estava quase cochilando quando ouvi gritos e percebi que vinham do outro lado da rua. Um casal discutia, mas eu não conseguia entender suas palavras. Reconheci imediatamente os cabelos loiros e compridos, e aquelas roupas de garoto mimado que tentava parecer punk: calças jeans rasgadas no joelho e camiseta preta com estampa surrealista. Me levantei num salto, colocando atrás da orelha as mechas de cabelo que caíam no meu rosto. Os dois continuavam gritando, muito exaltados, e ela tentava se soltar. Foi então que algo terrível aconteceu e meu coração quase saltou da boca: o rapaz deu um tapa no rosto da mulher, que cambaleou para trás com o choque, ainda segurando o rosto com as duas mãos.

Das duas opções, uma: ou eu era muito idiota, ou muito corajosa. Sequer pensei a respeito quando corri em direção a eles, sentindo como se eu fosse a única pessoa capaz de salvar aquela garota que eu nunca havia visto antes, uma completa desconhecida. Não considerei os perigos daquele meu ato imprudente; fui guiada pela raiva e indignação que me tomaram, e pelo poderoso instinto de defender aquele que era mais frágil e precisava ser protegido. Mas era mais do que isso: aquele que era, além de tudo, igual a mim.

- Saia de perto dela! – gritei. Os dois olharam para mim assustados, sem entender muito bem.

Eu não daria tempo a ele para reagir. Tirei o celular do bolso e o ergui, de maneira extremamente dramática, como se tivesse em mãos uma poderosa arma.

- Saia de perto dela ou eu chamarei a polícia. – repeti agora sem gritar, mas num tom ameaçador.

A garota parecia um animal acuado. Seu olhar ia de seu agressor a mim, sem parar, como se tentasse entender a situação. Estando tão próxima a eles, agora, eu percebia o estado em que se encontravam: completamente bêbados. Era notável pelo cheiro forte de bebida em suas roupas, mas também seus olhares desfocados e confusos. A julgar pelas mesmas roupas, especialmente a dela, que usava um vestido colado vermelho, eles deviam ter acabado de sair de uma daquelas festas. Ele olhava para mim como se eu fosse o próprio Diabo. Ainda assim, não senti medo. Ele era só um pirralho.

- Vamos. Anda! – apressei-o, sacudindo o celular em frente ao seu rosto. – Se não quer ser denunciado, deixe a menina ir embora.

Ele soltou um suspiro pesado e largou a garota, que cambaleou, quase caindo no chão.

- Vá embora. Eu dou um jeito nele. – sussurrei para ela.

Ela não ousou me questionar. Assentiu com a cabeça e saiu correndo, com os saltos altos na mão, e desapareceu na noite. Agora restávamos só eu e um garoto que, além de mimado e rude, era um agressor.

- Você é como um pesadelo. Parece me perseguir e sempre se intromete no que não é da sua conta! – ele grunhiu. Fiz questão de manter uma distância considerável entre nós.

- Eu não estava te perseguindo. Foi uma coincidência. Não queria me envolver, mas não poderia fingir não ter visto nada... – me expliquei. – Você é pior do que eu imaginava. Ficarei contente de não encontrá-lo mais daqui para frente.

- Eu estou bêbado!

- Isso não justifica nada. De qualquer maneira, não é a mim que você deve se explicar, mas à polícia.

- Você disse que não denunciaria se eu a deixasse ir.

- Eu menti. – sorri, mas era difícil manter o sorriso quando agora ele avançava na minha direção, com uma expressão no mínimo lunática. – Eu odeio homens que batem em mulheres. E se você ousar encostar um dedo em mim, terei mais material para acusá-lo na delegacia.

Ele fez uma careta. Parecia, de fato, uma criança contrariada. Talvez pelo nervosismo, ou pelo deboche que crescia em mim em relação àquela comparação, comecei a rir. Ele me olhava como se eu fosse completamente maluca, ou uma sádica. Talvez um pouco de cada.

- Cresça, pirralho.

Andei tranquilamente na direção do dormitório, controlando minha vontade de sair correndo. Temi que estivesse muito vulnerável ao dar as costas a ele, mas não deixei que transparecesse. De qualquer forma, ele permaneceu ali, plantado, com uma expressão estúpida no rosto e me observando desaparecer.

 

Acabei descobrindo que uma das professoras que haviam escrito em conjunto um artigo com Mike dava aulas naquela universidade, no meu prédio. Procurei-a durante os intervalos e expus minha brilhante mentira, que agora já era quase uma verdade. Quando repetimos muito algo, passamos a acreditar naquilo. Talvez todas as coisas no mundo sejam mentiras que, de tantas vezes ditas, tornaram-se verdades em nossas mentes.

Ela pareceu tocada com minhas intenções. Prontificou-se a me ajudar e me passou seus contatos. Na semana seguinte marcamos um encontro numa cafeteria próxima a universidade. Havia poucas coisas no mundo que eu gostava mais do que café.

- Nós éramos próximos. Não só colegas de trabalho, mas também amigos. Quando o conheci, ele já trabalhava aqui há dois anos. Nossas áreas de pesquisa se entrecruzavam, e não demorou muito para que as conversas casuais que tínhamos na sala de professores se tornassem mais profundas. Começamos a nos encontrar em seu gabinete também. Já tiraram todos os seus pertences de lá, ou eu a mostraria. O gabinete era muito importante, porque refletia bem a sua personalidade. Era tudo tão organizado! Ele deixava os livros empilhados no canto da mesa de acordo com seus tamanhos, para que não causassem nenhum desconforto visual. Os maiores por baixo, até os menores, no topo. As folhas com anotações ficavam todas numa pasta e eram divididas por datas. Ele era extremamente organizado. Parecia sentir prazer em arrumar as coisas e isso se refletia em tudo que ele fazia.

Já tínhamos muito em comum. Eu a ouvia com completo fascínio. Queria me concentrar em suas palavras agora e, mais tarde, anotaria tudo, para não me esquecer de nenhum detalhe.

- Se refletia em sua aparência. Ele era um homem muito elegante. Nunca cheguei a vê-lo sem roupas sociais. E toda vez que eu chegava em seu gabinete e ele estava escrevendo algo, à mão, porque ele detestava digitar, havia uma xícara de café ao seu lado. Ele gostava de café preto, sem nenhum açúcar. Consegue imaginar? – ela riu. Parecia pelo menos cinco anos mais jovem quando o fazia. – De qualquer forma, nossa relação era, em geral, restrita ao trabalho. Ele nunca me falou da família, ou dos outros amigos... Todos estranhávamos que ele não fosse casado ou não tivesse uma namorada. Era um homem bonito, as alunas imediatamente se apaixonavam por ele. Mas ele era um lobo solitário... Que dedicava sua vida ao trabalho e aos estudos.

Passamos horas falando sobre suas principais conquistas na universidade. Ela chegou a me dar referências e fornecer algumas anotações dele que apenas ela tinha acesso. Ao final de nossa conversa, ela me recomendou procurar alguém que poderia falar mais de sua vida pessoal.

- Você não sabia? Ele tem um irmão mais novo. Frederico Oris. Sei que seus pais eram ingleses, por isso o sobrenome. Ele é estudante de engenharia mecânica, do quarto período. Tenho certeza de que ele poderá dizer muito mais do que eu.

Saber que Mike tinha um irmão não era só surpreendente, mas intrigante. Aquela informação não conseguia sair da minha cabeça e, embora eu tentasse ver as coisas objetivamente, não conseguia me esquecer da imagem do quarto de hospital vazio e silencioso. Ninguém nunca havia o visitado e, no entanto, ele tinha um irmão mais novo. Eu tinha a certeza de que ele não tinha família, nem ninguém. Saber que sim era extremamente solitário, mas prometi que não faria julgamentos sobre isso.

Olhei o céu alaranjado do entardecer pela minha janela. Não sabia o que estava fazendo, mas pelo menos não estava parada.



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