Carlos acordou com o sol incidindo em seu rosto. O calor lhe fatigava. Que horas eram? Levantou às pressas procurando o celular. Atordoado, pisou em alguns papéis espalhados que acabaram grudando momentaneamente em seu pé. O aparelho estava jogado no sofá, vibrava vez ou outra anunciando a falta de carga. Em seu visor, exibia um notório “15:33” que fez o coração do acadêmico acelerar, mas o “sábado” escrito logo abaixo lhe acalmou.
Tomou um banho, colocou a comida congelada no microondas, juntou as garrafas próximo a lixeira, outro dia as levaria para fora. Juntou os rascunhos de seus textos, tentou pô-los em algum tipo de ordem, mas a alguns faltavam partes, outros haviam perdido as folhas das capas; prometera várias vezes transcrevê-los para o computador, mas a correria do dia a dia aliada a uma procrastinação sutil lhe impediam. Vária vezes prometera jogá-los fora, mas tinha uma certa dificuldade em se desapegar dos papéis. No final, apenas os devolvia a uma caixa, onde ficariam guardados até a próxima crise.
A lasanha estava sem gosto, sabia que tinha comprado a marca errada. Jogou um pano molhado sobre uma poça de bebida seca no chão. Ligou para a diarista e marcou a faxina para o domingo. Sentou no sofá e começou a ler os trabalhos de seus alunos. Estes pareciam pertencer a um universo alheio ao apartamento. Organizados, diversos sacos transparentes tinham etiquetadas informações das turmas; nos trabalhos especificamente, haviam clipes com informações adicionais sobre cada um dos alunos, suas dificuldades, vícios de escrita, ou qualquer coisa que a mente do professor considerasse relevante.
A caneta vermelha riscava os trabalhos sem hesitação enquanto ao lado, o diário era preenchido com notas. Uma a uma.
A barriga reclamava novamente fome quando o professor fez sua pausa, amaldiçoou a hora, e o fato de não ter um supermercado 24h próximo. Ligou para um delivery, pediu comida chinesa. Voltou à correção dos trabalhos. A campainha tocou, a comida havia chegado estranhamente rápido. Mas, bem, estava com fome.
Na porta uma figura feminina lhe aguardava
Carlos congelou.
Era ela. A figura que tornou seus últimos dias num tormento de agonia e ansiedade. A figura que havia lhe dado a caixa de veludo que ele passara o dia ignorando. Era ela, ali, na sua frente. Não como um espírito ou uma alucinação. Ela estava presente fisicamente na sua porta.
- Bo.. Boa noite… - Carlos gaguejou meio sem Jeito. - Quer entrar?
A jovem sorriu satisfeita.
- Agradeço o convite, Senhor Monteiro, contudo, o tempo desfere contra nós um golpe cruel, então... não nos prendamos entre paredes mortas, sim?!
Houve um pequeno hiato onde nada foi dito, onde o tempo parecia ter parado numa eternidade na qual Carlos mergulhara nos olhos de um azul cintilante da garota.
- Vamos sair? - Perguntou de uma forma quase retórica quando enfim processara as palavras ditas.
- Acaso não é o vibrar das cordas adormecidas que compõem a melodia? - Respondeu com um ar de astúcia. Havia algo no olhar, algo no tom de voz, algo que escapava à percepção direta de Carlos tornava a figura a sua frente hipnótica. Como luz aos insetos.
Ela virou-se e começou a desfilar pelo corredor. Carlos apressou-se em trancar a porta e segui-la. Se ele havia pensado nisso, certamente não, se tivesse pensado teria dito que esperava comida chegar, que tinha alguns trabalhos ainda para corrigir. Se tivesse pensado teria questionado o percurso, a segurança do local. Mas ele não pensou, apenas girou a chave na fechadura e saiu seguindo a figura da qual sequer conhecia o nome. Mas estava feito, ele havia deixado sua casa… Agora a estrada era dona de seus passos.
- Então… posso saber aonde vamos?
- Ah - ela arquejou de modo gracioso - Vamos ressoar como notas ao ar.
A noite escorre pelo firmamento num manto estrelado, meu belo poeta,
A lua hoje oculta parte de sua face em mistério e escuridão.
Então vamos ouvir a música ecoando no vento.
Vamos quebrar a luz num prisma de mil cores.
Vamos acender a chama de Prometheus.
Assistir o voo de Icarus e colher suas penas.
Teu tinteiro ainda está cheio e tua mão ainda não tem os calos estimados da escrita.
Ainda tendes muitas folhas para preencher.
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