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História Uma Flor no Deserto - A criança


Escrita por: LaraOrlow

Capítulo 5 - A criança


Fanfic / Fanfiction Uma Flor no Deserto - A criança

O velho posto de gasolina parecia-se com qualquer outro lugar abandonado após a devastação da epidemia. Nada de diferente. Galhos secos, folhas de árvores em grandes montes que eram arrastados pelo vento ocasional, lixo acumulado pelos cantos, objetos abandonados aqui e ali. Como se o tempo tivesse sido desligado e as coisas ficassem estáticas, esperando que tudo voltasse ao normal no dia seguinte. Mas nunca voltaria.

Edward estava esticado no chão. Não chegara a desmaiar, mas a pancada na cabeça doía o suficiente a ponto de fazê-lo deitar-se um pouco. O cabelo estava empapado de sangue e Kathlin não tinha certeza se aquilo era efeito de um simples corte no couro cabeludo, ou se era resultado de um ferimento maior. Ela só conseguiria verificar isso depois que ele estivesse melhor. Agora lhe restava procurar analgésicos pelo armazém e vasculhar o lugar com mais cautela.

Definitivamente aquele homem que atacara Edward, era meticuloso. Caminhando pelos corredores do armazém a moça percebia o cuidado que ele tinha com cada uma das prateleiras. Parecia que ele dedicava muitas horas em limpar e organizar tudo aquilo. Talvez fosse uma forma de se manter ocupado enquanto o mundo era destruído do lado de fora daquelas portas de vidro, que agora estavam estilhaçadas.

Muitos produtos já não estavam mais nas prateleiras. Mas os lugares vazios estavam igualmente limpos. Vez ou outra ela esticava o pescoço para ver se aparecia mais alguém, e mantinha seus ouvidos apurados, afinal aquele homem poderia ter mais pessoas vivendo com ele. Antes de prosseguir com sua investigação ao lugar, ela pegou alguns frascos de analgésicos, gaze, esparadrapo e uma garrafa de água mineral da geladeira desligada. Precisava de seu companheiro inteiro, antes que outros aparecessem.

Edward já estava sentado quando ela voltou, passava a mão no ferimento atrás da cabeça e dava risada.

- Aquele desgraçado me acertou bem em cheio. Parecia um gato de tão silencioso.

- Você é um idiota sabia?

- Porquê? Por me defender?

- Não, por não prestar atenção. Como se manteve vivo até agora?

- Ei, calma aí garota, isso dói. – ele tentava em vão afastar as mãos dela, que já jogavam água no ferimento para limpar e ter uma visão melhor da real gravidade daquele sangramento.

- Acho que foi só um corte superficial, você é bem cabeça dura mesmo.

- Qual é seu problema, eu fui agredido.

- Por isso mesmo, se fosse mais atento isso não teria acontecido.

- Ele foi silencioso, nós olhamos tudo ao redor e não tinha ninguém, o velho podia ter ido pra cima de você, e não escutaria do mesmo jeito.

- Está bem, deixa pra lá. Você está legal?

- Acho que sim. Com muita dor, mas estou legal sim. O que você acha? Ele era dono daqui? Morava no posto?

- Sim, o armazém estava trancado, tudo muito limpo e organizado do lado de dentro. Acho que ele se sustentou todo esse tempo com o estoque de suas coisas. Ainda tem o bastante para nós dois. Mas quero dar uma vasculhada melhor, é possível que ele não esteja sozinho. Para ter sobrevivido até hoje, com certeza tem mais alguém por aí. Quero descobrir onde ele se escondia, seu abrigo.

Edward se levantou, colocou a arma em punho e foi logo atrás de Kathlin que já seguia em frente. Vasculharam todo o perímetro do posto. Todo o armazém. Galpões adjacentes. Nada. Nenhum local que indicasse um abrigo ou um local para dormir. Começaram a procurar por alçapões. Talvez houvesse algum tipo de porão. Nada. Era tudo tão limpo e organizado que parecia até um sacrilégio tirarem itens que necessitavam e deixar a prateleira bagunçada. Mas aquilo não era importante agora. Precisavam de comida, remédios e insumos. Ali tinha um bom estoque disso tudo.

Nos fundos do armazém, atrás de uma prateleira de bebidas encontraram uma porta. Talvez ela levasse ao local que procuravam. Com um chute o rapaz derrubou a porta e atrás dela havia um escritório. Um sofá rasgado, uma escrivaninha cheia de papéis e boletos e um aparador com um rádio amador. Num armário lateral encontraram cobertores, roupas e outros pertences do homem. Uma escada de madeira levava para o forro do telhado.

- Não é por essa porta que ele entrava e saia daqui, a prateleira impedia isso.

- Jura sabichão? E por onde acha que ele fazia isso?

- Não sei. As janelas estão bloqueadas com tábuas. Talvez ele usasse outra saída, vamos subir essa escada. Talvez ele usasse o próprio forro do telhado, alguma tabua solta. Vamos ver.

Pegaram uma lanterna e subiram lentamente a escada. O silêncio era absoluto. Nenhum som, além do barulho de seus passos na madeira. Quando chegaram na parte de cima, perceberam que ali não era simplesmente um forro do telhado, mas um sótão. Iluminaram para ter uma visão mais clara do que tinham diante de si, e foi então que escutaram um grito estridente e aterrador. Em seguida a mordida no braço de Edward, que lhe fez deixar cair sua lanterna.

- MALDIÇÃO. – ele gritava entre dentes enquanto agarrava os cabelos despenteados da menina que lhe mordera.

Kathlin logo imobilizou a criança, estava pronta para cravar o punhal na cabeça dela, quando viu seu rosto com a expressão de pânico e lágrimas nos olhos. Ela não era um zumbi. Era apenas uma criança aterrorizada.

- Meu Deus, fizemos merda. – foi a única coisa que ela conseguiu dizer antes da menina se jogar em sua direção com os dentes arreganhados, pronta para desferir outra mordida.

Edward logo se recuperou do susto e ajudou a segurar a criança. Pegou um lençol e a amarrou imobilizando-a numa viga de sustentação do telhado. Agora ela chorava copiosamente, enquanto seu peito arfava em desespero.

- Faz essa menina calar a boca Kathlin.

- Calma Edward, ela esta assustada.

- Essa cadelinha me mordeu.

- Ela está assustada seu imbecil. É só uma criança.

Essas palavras produziram um efeito calmante nele. De fato, era só uma criança assustada, que acabara de perder seu protetor.

A mordida fora forte o suficiente para rasgar a pele. Agora Kathlin tratava de limpar e fazer um curativo enquanto a menina continuava chorando aos soluços. Ela não devia ter mais que quatro anos. Talvez até menos. Uma criança franzina, que não tivera tempo de vida suficiente para conhecer o mundo antes da epidemia. Talvez uma das últimas que nascera antes de tudo acontecer. Sua memória sequer teria imagens de como o mundo era sem zumbis nem morte por todos os lados. Pobre criança. E agora eles tinham matado seu protetor. Pai, avô, tio, isso não importava. A menina estaria sozinha e desprotegida daqui para frente.

- Acho que devemos matá-la. Como uma criança conseguiria sobreviver sozinha nesse mundo?

- Cala boca Edward.

Kathlin foi até a menina, começou a cantar uma musica infantil, de sua época na escola, em tom de voz baixo e suave. Isso pareceu surtir efeito. A menina foi parando de chorar e começou a prestar atenção na cantiga. Edward começou a caminhar pelo amplo cômodo, buscando evidências sobre aquelas pessoas.

Em uma parede havia fotos de uma moça grávida. Com olhos tristes e feição abatida. Todas as fotos eram naquele sótão. Na gaveta de uma cômoda havia mais fotos e um diário, junto com uma pasta com desenhos de criança feitos em giz de cera.

- Kathlin, venha ver isso.

Ela não estava mais ali. Tinha descido para o armazém, e já voltava correndo com vários pacotes de chocolate e balas para a menina. Ela soltara a criança do lençol que a imobilizava, agora estava calma, sentada em seu colo, comendo com ferocidade os doces que lhe eram oferecidos. Ela devia estar faminta.

- Cuidado, essa menina morde. – Edward falou em tom de brincadeira.

- O que você encontrou aí?

- Veja!

Começaram a ver as fotos e folhear o diário. As fotos da gaveta eram bem diferentes das fotos da parede. Na parede eram fotos quase comuns: a moça sentada, a moça deitada, a moça fazendo alguma pose notadamente forçada, a moça esboçando um sorriso vazio. Já as fotos da gaveta diziam muito mais do que as outras, eram fotos anteriores à epidemia. Várias garotas de programa, em diversas situações diferentes. E entre elas estava a mesma moça das fotografias da parede.

O diário era algo aterrador de se ler. Algumas páginas eram sujas de sangue, outras tinham amassados típicos de papel molhado que depois fora seco naturalmente. A letra era de uma caligrafia delicada e muito bem feita, com ortografia e gramática impecáveis.

Na primeira página estava escrito:

“Não sei se esse é o melhor passatempo que posso ter, mas enquanto estiver aqui abrigada com esse imbecil do Jason, vou me distrair escrevendo. A cidade está uma loucura, muitas viaturas, caminhões do exército e ambulâncias abarrotando as ruas. Jason mandou mais da metade das garotas embora, ficamos somente Samantha e eu”.

Algumas folhas depois:

“Jason ainda não percebeu que não manda mais em mim. Idiota. Eu nem sei de quem é essa criança, foram tantos soldados nos últimos meses, que pode ser qualquer um, a única vantagem é que o babaca tem me deixado ficar. Mas farei o possível para fugir. Vou procurar algum assentamento de refugiados com médicos, comida e segurança”.

Perto do meio do diário:

“Minha filha nasceu, ela é feia. Pequena, chorona e não me deixa dormir. O Jason tem mais paciência com ela do que comigo. Mas não é muito diferente de quando eu mesma era criança. Foi um padrasto atencioso, mas somente até eu me tornar adulta e ele poder me vender. Pelo menos teve a decência de esperar eu crescer para se tornar meu cafetão. A verdade é que estou de saco cheio disso tudo”.

- Chega Edward, não quero ler mais. – Kathlin estava transtornada.

Edward estava visivelmente chocado com aquilo que terminara de ler. Ele se considerava um monstro por matar tantas pessoas ao longo de sua existência no novo mundo. Conhecera até mesmo canibais, e também os considerara monstros. Considerava os zumbis como monstros. Mas ele estava enganado. Nenhuma daquelas pessoas, mortos-vivos ou ele próprio eram monstros. Aquele velho que acertara sua cabeça o era. Prostituíra a enteada, tendo somente o bom senso de o fazê-lo quando ela se tornou adulta. Qual seria o destino daquela criança? Ela era praticamente neta dele. Certamente era cuidadoso com ela, assim como o fora com sua enteada, a mãe da menininha, mas e quando ela crescesse? Se tornaria mulher dele? Ou a venderia para algum mercenário? A última hipótese era a mais provável.

A menina estava toda suja de chocolate, os olhos ainda úmidos de tanto chorar, mas calma, brincando com uma mecha do cabelo de Kathlin que se soltara da trança. A menina magra e de expressão assustada estava calma, como talvez jamais estivera em toda sua breve vida.

- O que vamos fazer?

- Não podemos deixar ela aqui para virar comida de zumbi, Edward.

- Quer levá-la conosco? Sabe o que significa ter uma criança nesse mundo?

- Sei o que significa estar sozinha nesse mundo. Quando vi a criança pensei que tínhamos destruído sua vida. Mas descobri que nós viemos salvá-la.

Ele não queria se responsabilizar pelos cuidados de uma criança tão pequena. Mas também não podia deixá-la para trás. Aqueles olhos úmidos lhe traziam um desconforto tão grande, como se uma lembrança triste teimasse em surgir em sua mente, emergindo feroz de algum lugar de seu cérebro. Estava decidido, eles cuidariam da menininha enquanto conseguissem. Ser uma máquina de causar mortes para salvar a própria vida era uma coisa, ser cruel e monstruoso eram coisas bem diferentes. Coisas que ele não era.



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