1. Spirit Fanfics >
  2. Under the Moonlight >
  3. Capítulo 1

História Under the Moonlight - Capítulo 1


Escrita por: chicamz

Notas do Autor


Boa leitura :)

Capítulo 2 - Capítulo 1


Despertar às 04:30 am. Essa é a minha rotina desde os 18 anos quando comecei a trabalhar com os meus pais no negócio familiar. Explico. Trabalhamos com transporte escolar em várias modalidades. Infantil, com o brinquedomóvel, juvenil e universitário com as vans super bem equipadas com ar-condicionado, wi-fi, frigobar e que estão sempre muito limpas.

Desde que eu terminei o colegial e parei de me mudar anualmente ou até mesmo semestralmente com a minha família quando alguém da escola descobria sobre a minha disfunção anatômica e biológica, comecei a trabalhar com os meus pais no escolar.

Meu pai largou seu emprego como professor universitário logo após minha entrada na pré-escola. Depois que o primeiro boato se espalhou e eu não consegui me adaptar em nenhuma outra escola da cidade - além de não ter sido aceita por algumas - papai pediu dispensa da função e nos mudamos.

Após a nossa primeira mudança ele passou a pegar contratos temporários como professor de literatura no ensino médio. Minha mãe alternava em períodos entre dona de casa e motorista de ônibus. Incomum? Foi assim que ela e meu pai se conheceram. Meu pai terminava o mestrado quando num dia atípico seu carro quebrou e ele teve de pegar ônibus por uma semana. A jovem motorista sorridente e de olhos pequenos logo chamou sua atenção e, assim, no lugar de pegar ônibus por uma semana ele pegou até o fim da pós-graduação, quando enfim teve coragem de chamar a condutora para sair. Namoraram, casaram e me conceberam. E agora estamos aqui outra vez. Aonde paramos? Sim. Nas constantes mudanças.

E assim a cena repetiu-se uma dezena de vezes até que parei de contar. Estava exausta de reviver sempre o mesmo início. Sempre a novata que todo mundo quer conhecer, e que me conhecessem era a última coisa que eu queria, porque daí até "A Karla é um traveco!", "Karlinha tem um pinto entre as pernas.", "Você não pode estudar com a gente, é nojento.", "Ão, ão, ão, Karlinha aberração!", era um pulo.

Quando eu entrei para o ginásio as coisas pioraram. Às 16h da tarde de uma quarta-feira os garotos mais brincalhões da escola resolveram tirar a limpo o boato - que dessa vez não havia chegado aos meus ouvidos antes. - Tiraram a minha roupa e me lançaram para fora dos vestiários, onde um grande grupo de alunos me esperavam. Riram, me chutaram. Gargalharam, me cuspiram. Levaram minhas roupas e também minha dignidade.

Minha mãe àquela época estava grávida de Sofia, minha irmã mais nova, e quase teve treco quando recebeu a ligação da escola. Eu me sentia mais que humilhada, eu me sentia um lixo. E foi com esse pensamento que eu pedi ao meu pai que me levasse para cortar o pinto. Usei essas palavras. Não era como se aquilo não fizesse parte de mim. Era a minha pele, a minha carne, um pedaço de mim, mas naquele momento só significava a imagem da minha humilhação.

Consultamos alguns especialistas e ouvimos diversas opiniões. A maioria deles me olhava como se eu fosse um bicho. Os toques eram ávidos de descoberta. Até que depois de encontrar muita burocracia para uma cirurgia de redesignação de sexo no país partimos, minha mãe - grávida de Sofia, que ainda não tinha nome, meu pai e eu para a Tailândia. Ficaríamos pouco tempo no país, apenas tempo o suficiente para realizar o procedimento e o resguardo pós-operatório.

O que não sabíamos era que a coisa não era bem assim. Nas clínicas de melhor qualidade também havia certa burocracia e nas outras minha mãe não me deixou nem entrar. Durante os dias em que fiz acompanhamento psicológico, algo já começava a me desestimular, mas foi durante o pré-operatório que comecei a questionar a minha decisão. Eu via todas as pessoas saindo de lá felizes e radiantes com seus novos corpos enquanto eu estava ali apenas para cortar a minha humilhação. Eu não queria um corpo novo, eu só queria que as pessoas não me rechaçassem pela minha anatomia incomum para uma mulher.

Naquela época, eu achava que cortando aquele pedaço eu estaria livre de todos os horrores da intolerância. O que eu não sabia era o quão invasiva aquela cirurgia era; a quase dezoito anos atrás os computadores não eram tão populares e a internet tão difundida.

Depois de passar por inúmeras avaliações e até por pequenos procedimentos cirúrgicos, já que por conta da minha pouca idade eles queriam se certificar que os ligamentos eram possíveis ou se apenas fariam uma cirurgia íntima para reduzir o tamanho final, eu tive a conversa mais marcante da minha vida até hoje.

- Filha, você tem certeza que quer fazer isso?

A pequena eu encarava o chão. Vestida no avental hospitalar prestes a se mutilar na tentativa de ser aceita. De não sofrer.

Tem coisas que somente o tempo nos mostra. Essa foi uma delas. Naquele dia, minha mãe novamente me deu à luz.

- Eu quero ser normal, Mami. Não quero ser a aberração e ter que mudar de escola.

- Mija, olhe para a sua Mami. A sua condição é raríssima. Ocorre poucas vezes de alguém com a sua condição, que não é tão rara assim, nascer com o membro perfeito como você nasceu. Se fosse o caso de ter algo anormal a cirurgia de reparação seria indicada, mas não foi. Você não precisa. Você não precisa retirar uma parte do seu corpo para ser aceita. Você se sente bem com o seu corpo. Você já me disse isso. Talvez estejamos aqui pelos motivos errados. Cami, quando alguém é especial por portar algo raro, geralmente, essa pessoa sofre. As pessoas costumam ter medo do desconhecido. Elas o rechaçam por ignorância. Mas se você se sente bem com o seu corpo não precisa mudá-lo. Você precisa se amar primeiro. Você é uma raridade, Camila. Você é preciosa, minha filha. Você vale muito. Seu pai e eu te amamos e isso inclui cada pedacinho seu inclusive esse que você está prestes a retirar. Se depois de tudo o que eu te disse e do que você viu ainda quiser fazê-la, nós vamos te apoiar. Senão iremos pegar o primeiro voo de volta pra casa e eu vou lhe comprar lindas cuecas com estampas de bichinhos que você tanto adora. O que me diz?

- Eu te amo, mami. Você, o papai e a minha mana que está na sua barriga são tudo pra mim.

O abraço apertado no meio do corredor frio ainda posso sentir se fechar os olhos e rodear os braços em meu corpo.

Meus pais sempre me deram liberdade de escolha, mas depois daquele dia eles começaram a me incentivar a fazer o que eu realmente gostava. E foi assim que eu passei a ir para as aulas de educação física e aproveitar mais as escolas pelas quais passei. Com o auxílio do truque que aprendi a fazer com o meu pênis lá na Tailândia com um garoto filipino e de boas bermudas de compressão conseguia jogar pelo time da escola e ser menos importunada com as mudanças.

O banheiro era sempre um problema porque eu me sentia mal usando o banheiro com as meninas e por isso na escola eu costumava fazer xixi sentada, ou melhor, agachada, porque não dava pra chamar aquela posição de sentada. Até cogitei a hipótese de mudar de cidade uma última vez. Cortar o cabelo, mudar os documentos e usar uma bandagem em volta dos pequenos seios não seria um problema tão grande, mas aquela não seria eu. Eu era uma mulher diferente da grande maioria, mas eu era e me sentia uma mulher. Eu sobrevivi. Sobrevivi e até consegui um par para o baile de formatura do ensino médio. O que acabou em um verdadeiro desastre, mas isso não é assunto para agora.

Como ia dizendo agora a pouco, meus pais e eu costumávamos nos mudar muito por conta da escola e os problemas que ela me trazia. Depois de me livrar do estágio no inferno que foi aquilo e tirar minha carteira de motorista meus pais resolveram se estabilizar numa capital de médio porte e começar um negócio. Sofia tinha sete anos e iria iniciar seus estudos em escola regular, pois, por conta da minha instável situação escolar ele resolveu alfabetizá-la em casa. Eu logo tratei de me inserir no negócio da família para pegar a experiência devida para conduzir tão logo fosse possível.

No início eram apenas duas vans. Minha mãe dirigia uma e meu pai a outra. Depois os clientes foram chegando e o negócio expandiu um pouco. Meus pais eram sempre muito cuidadosos na contratação de funcionários, pois, não encaravam o trabalho apenas como transporte de passageiros. Eles transportavam vida. Vida jovem. Crianças. E por isso era bastante criteriosos na contratação de ajudantes e condutores. Eles nunca se referiam à eles ou aos outros funcionários como motoristas.

Eu comecei como ajudante da minha mãe. Ela dirigia e eu me encarregava de embarcar e desembarcar as crianças. Sempre me dei bem com crianças. Eu os preferia. Eram brutalmente sinceros e sem preconceitos. Eram puros. E assim como eu os preferia eles também pareciam me preferir.

Eu era assistente de condução durante o dia e a noite eu estudava Direito numa instituição estadual. Foram cinco anos assim. Acordando às 4:30 am e indo deitar por voltas das 0:30, 1:00 am porque depois que chegava da faculdade às 11h pm graças à moto, não tão veloz assim, que eu consegui comprar com o dinheiro da minha mesada acumulada desde a adolescência, eu ia estudar. No dia seguinte a rotina se repetia. E seguiu assim até eu me formar e me decepcionar com a carreira preferindo continuar trabalhando com o que eu amava.

Depois da formatura eu passei a dirigir o brinquedomóvel. Acho que ainda não expliquei o motivo de chamá-lo assim. O brinquedomóvel é uma viatura de transporte escolar, devidamente paramentada com os elementos de segurança exigidos para o transporte de crianças, o diferencial está no fato do automóvel ser repleto de brinquedos em seu interior, tendo ursinhos de pelúcia no painel e pintura externa também temática.

Como eu iria por fim assumir a direção precisaria de um ajudante para o embarque e desembarque dos pequenos e foi assim que Juno, ou melhor Ashley, que é seu primeiro nome, me aconteceu. Digo por quê ela me aconteceu. Tendo a infância que tive, cresci uma pessoa de poucos amigos. Sempre fui cordial e tentei nunca destratar ninguém, lições que aprendi em casa, mas devido a tudo o que passei quando menor eu evitava ser muito próxima de alguém. Mas com Juno foi inevitável.

Irreverente, para não dizer moleca, a garota dos dreads logo ganhou a simpatia de minha mãe e isso foi o aval para que eu a deixasse se aproximar mais. Logo ela foi transferida para a minha van e formamos uma dupla imbatível. A criançada ficava louca com a gente, algumas mães ligavam pedindo para encaixar seus filhos em nosso carro. Mas meu pai quase sempre muito retilíneo explicava que os condutores obedeciam à normas preestabelecidas pela companhia.

Pura balela de seu discurso formal, visto que a um tempo atrás ele me desviou a rota para apanhar Vitor. Explico. A mãe de Vitor, uma jovem mãe solteira, muito bonita por sinal, havia passado em nosso posto de atendimento ao cliente, que por coincidência fica ao lado de nossa casa e me viu lavando o carro, presente de formatura que ganhei dos meus pais. A jovem mãe que descobri a posteriori chamar-se Alexa, disse ao meu pai que eu era muito bonita e que seria um prazer me ver todas as manhãs.

Meu pai casamenteiro não-santo de mão cheia logo tratou de incluir o filho de Alexa em minha rota mesmo que a preestabelecida não fosse tão perto assim. Resultado: Acabei na cama de Alexa no fim da primeira semana de rota.

Essa sou eu sonhando.

Eu, na verdade, fugi da mulher como o diabo foge da cruz. Fingia conferir o cinto da criançada enquanto Juno entregava o filho e sua mochila no portão. Logo ela viu que eu estava fugindo e ia buscar o menino na porta do carro para me encarar de perto e nós até trocamos algumas palavrinhas, mas eu mantinha minhas mãos bem firmes no volante e nem desafivelava o cinto. Em sua última tentativa ela mandou um bilhete com seu número de telefone por Juno. Ela me olhava da janela do passageiro enquanto o filho desembarcava na primeira semana após o bilhete e eu nada falava. Na segunda semana ela me olhava do portão enquanto a assistente entregava o filho a ela. No começo da terceira ela mal me olhava e ficava longe, Juno quase tinha de entrar na residência para entregar o menino. No fim ela se fez indiferente diante do meu silêncio.

Eu não sou boa com as mulheres.

Dei alguns vários beijos em minha vida, mas nada muito além disso. Na adolescência eu evitava o contato com qualquer ser vivente. No meu último ano de colegial fiz uma revelação aos meus pais. Por mais que eu tivesse medo de pessoas eu sabia que me atraía por garotas e não por garotos. Sim, porque o fato de que eu seja uma pessoa intersexual não define a minha orientação. Tem a ver com a minha anatomia e biologia, não com o meu desejo e querer amoroso e sexual, ou com a minha identidade de gênero.

Me chamo Camila, tenho vinte e oito anos, sou mulher, lésbica, intersexual e virgem.

Essa última parte digo mais baixo para mim mesma.

Conduzo o brinquedomóvel pelas ruas da cidade ensolarada e faço uma última brincadeira com os meus pequeninos.

- Alguém sabe o significado do nome da princesa Luna? - Pergunto com aquele tom de voz que só uso com eles e olho pelo retrovisor central para constatar a animação na parte de trás do veículo.

Logo os gritos de "eu eu eu" e os bracinhos para o alto foram ativados e Juno tratou de mantê-los em seus acentos e com os cintos afivelados. Percebi que a própria Luna levantava os bracinhos.

- Luna, meu anjo, você não vale. Seus pais já devem ter conversado com você sobre isso. - Esclareço.

- Tudo bem, Tia Mila. - Seu rostinho triste diante da negativa me faz voltar atrás.

- Vamos ouvir o Lucca, que foi o primeiro a levantar o braço e depois você. Tá certo assim? - Ela assente frenética e abre um sorriso. Eu involuntariamente espelho o seu. - Lucca, campeão, conta pra gente. - Volto os olhos para a pista e dou sinal para virar na rua do condomínio em que mora a pequena garota.

- Luna é de lua e como ela se chama Luna Grande quer dizer que ela é uma lua bem grandonazona, mas perinquanto ela inda é pequeninha. Chaveirinho de lua. - Lucca diz arrancando algumas gargalhadas.

Olho pelo espelho central para ver se Luna chateou-se com a brincadeira, mas a menina sorri. Sorriu de volta. Impossível não fazê-lo. Juno toca em meu ombro e só então percebo que estamos em frente ao condomínio charmoso onde Luna vive.

- Luna, ainda quer nos contar o significado do seu nome?

- Sim, Tia Mila. Meu nome significa amor. - Franzo as sobrancelhas para a sua resposta aparentemente incorreta. - Minha mãe ama a lua. Ela ama tanto que colocou meu nome de Luna, para que o amor que ela sente pela lua fosse refletido em mim. Por isso ela disse que Luna, para ela, significa amor.

A pequena não poderia estar mais correta. Da minha visão periférica eu avistava a figura, delicada e sempre linda, de sua mãe na portaria a sua espera. Ela olhava para a porta o tempo inteiro, seus olhos só buscavam a pequena. Enquanto os meus, ainda que pelos cantos, eram atraídos para ela.

- Que lindo, Luna. E o seu pai deu algum significado especial para ele?

- Ele não vive com a gente e ele pouco fala de palavras. Só o escuto falar de números. - O dar de ombros da pequena é leve e ela logo se despede dos coleguinhas.

- Ei, Luna, o significado do seu nome é lindo, especialmente o que sua mãe deu a ele. - Sorriu e ela me manda um beijo antes de caminhar em direção à portaria do prédio segurando a mão de Juno, que carrega sua mochila.

Como eu queria ser ainda uma assistente naquele momento. Seria eu a entregar a mochila nas mãos dela. Talvez ela me sorrisse. Ou me desejasse um bom dia. Mas era Juno lá, e tudo o que ela fez foi dar um tampinha em seu ombro enquanto sorria mostrando as covinhas fofas ao achar graça de alguma piada que a maluca contou.

Quando Juno volta saltitando para a van, vejo Luna cochichar algo no ouvido de sua bela mãe. A mulher de cabelos iluminados direciona o rosto em minha direção e por baixo dos cílios volumosos me lança um olhar de agradecimento antes de sorrir contida sem mostrar os dentes. E eu que sou habilitada há dez anos, tenho vasta experiência em transporte e sou a única condutora desse carro, quase esqueço como dar partida nele.

- Ê, Mimi, esse tua queda pela Sra. Grande tá grande demais. - Juno debocha e começa a rir de sua própria piada ruim. Faço careta de sua risada e dou partida no carro aproveitando para ligar o som para a criançada novamente.

- Ela não é casada. E o nome dela é Ariana, mas pra você é Senhorita Grande. - Digo um pouco irritada e ela ri.

- Não sei o que você tanto espera pra chamar ela pra sair. - Juno diz como se fosse algo simples.

E talvez fosse mesmo, mas acontece que eu nãosou boa com as mulheres.



Notas Finais


Oi, meus anjos, tudo bom? E aí, o que pensam agora depois de conhecer um pouco dessa Camila? Entendendo que essa é uma nova jornada e que tudo aqui é diferente do que já fiz, quero esclarecer alguns pontos:

1.: Camila é intersexual e essa característica será explorada e desdobrada no decorrer da história.

2.: Não decidi desenhar a personagem apenas para escrever hot nos padrões heteronormativos, por isso as coisas podem não acontecer da maneira usual por aqui.

3.: A história é quase fluffy, tão doce quanto possível. A presença das crianças e a interação entre Camila e Ariana dão um tom leve a história apesar de abordar alguns assuntos mais delicados.

É isso, mores.

Até mais.


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...