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História Unwell - Fusca, Taco Bell e Louis Vuitton


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Quanto aos pairings: se você já leu qualquer coisa minha, não é difícil adivinhar que isso é K2. Mas também haverá Crenny, Creek (de forma muito mínima) e... Tokyle? Kyken? Quem sabe. Qualquer coisa pode acontecer aqui.

Outro aviso: Essa história lida com suicídio e questões relativas à saúde mental e depressão.

Capítulo 1 - Fusca, Taco Bell e Louis Vuitton


Era uma longa caminhada entre o Taco Bell e o Fusca azul claro de 1969 que estava estacionado, como sempre, afastado da luz alaranjada dos postes da rua. Quando Craig passou por debaixo de um deles, olhou de relance para cima e observou a chuva fina que começava a cair em contraste com a luz forte. A lâmpada oscilou, piscando algumas vezes. Craig seguiu seu caminho pela calçada, ajeitando o saco de papel branco com a logo do sino estampada em azul. Tirou o celular do bolso apenas o suficiente para checar a hora. Eram nove e meia da noite e havia uma ligação perdida de Tweek. O homem umedeceu os lábios em hesitação e guardou o celular novamente, pigarreando. Fechou o zíper do casaco até o limite para se proteger de uma brisa gelada que soprava contra o seu rosto.

Ao se aproximar do carro, ouvia a voz de Eric Clapton cantando “Goodnight, Irene”. O som era abafado pelas janelas fechadas do Fusca. Craig não era um homem que sorria com facilidade – e rezava a lenda que ele não era um homem que sorria, ponto – mas foi algo semelhante a um sorriso que insinuou aparecer em seus lábios rachados de frio ao enxergar a cabeça loira de Kenny McCormick balançando de um lado ao outro enquanto ele cantava, olhando para baixo, focado em alguma coisa. Aquele maldito rádio estava ligado o tempo todo. Sem ver que Craig que aproximava do carro, o homem loiro recostou a cabeça no banco duro e desconfortável do carro, de olhos fechados; por alguma razão que Craig não compreendia totalmente, era algo difícil de assistir de longe. Havia um hematoma roxo na bochecha esquerda de Kenny, que finalmente começava a desinchar. Seus cabelos, como de costume, estavam sujos e pareciam muito mais escuros do que eram realmente na ausência de luz nas proximidades do parque onde ele mantinha seu Fusca estacionado. Havia um ar tão triste a respeito dele, uma tristeza que atraía Craig de maneira inexplicável.

Quando o homem de cabelos negros abriu a porta do passageiro, que estava sempre emperrada, Kenny parou de cantar e finalmente reconheceu sua presença. Craig jogou o saco de comida no colo dele sem qualquer cuidado e se sentou no banco que tinha um rombo no couro bem no encosto da cabeça, expondo a espuma que o amaciava. A música tocava mais alto nos ouvidos de Craig agora que estava dentro do veículo. Tomou a liberdade de diminuir um pouco o som antes de falar.

-Cara, você tem que parar de fumar aqui dentro. Tá fedendo.

Kenny começou a abrir o saco e tateou no teto do carro para encontrar o botão da luz interna, que era antiga e fraca, com parte do plástico rachado. Agora, Craig viu que o loiro tinha um cubo mágico semi-resolvido no colo. Era naquilo que ele prestava tanta atenção, mas havia se esquecido completamente do objeto enquanto fuçava na sacola como um vira-lata faminto, agarrando o burrito com as duas mãos. O molho imediatamente escorria pelos dedos dele e manchava o papel fino que o envolvia, mas Kenny não pareceu se importar.

-É muito frio pra sair do carro. - Respondeu sobre a reclamação, segundos antes de morder o burrito como se fosse a última coisa que comeria em sua vida.

Craig não era um homem sentimental. Poucas eram as coisas que realmente fisgavam-lhe onde doía. Não se emocionava com filmes sobre cachorros que morriam, comerciais apelativos sobre crianças doentes, mendigos deitados na calçada em dias de frio. Não era como se Craig não tivesse sentimentos, ele apenas compreendia que merdas aconteciam aleatoriamente e ninguém estaria isento delas. Esse era o princípio básico da relação entre aqueles dois homens. Kenny podia comer como o sem-teto faminto que era e Craig não o olharia com o mínimo resquício de piedade nos olhos, nem faria perguntas estúpidas sobre sua saúde mental e física. Porque Craig Tucker era um homem simples. Ele fazia tudo o que podia fazer, o que no momento, era pagar um burrito para Kenny.

Passaram quase dois minutos em silêncio. Com Craig, o loiro não sentia qualquer necessidade de preencher o ambiente com palavras vazias para que o clima não se tornasse desconfortável. Aquilo, para Kenny, era o verdadeiro sinônimo de intimidade. Limpou a boca com as costas da mão, mas seu queixo continuava sujo pelo melhor vermelho e havia carne moída escorrendo entre seus dedos, que ele chupava sem qualquer pudor, de forma barulhenta. Não terminou de comer. Fez uma pausa na metade, enrolando o burrito novamente no papel para guardá-lo na sacola, limpando as mãos nos guarda-napos que havia dentro para tirar o excesso, acabando por esfregar as palmas nas laterais das coxas, no jeans grosso e escuro. Continuou olhando para frente durante uns longos segundos, depois virou seus olhos extremamente azuis na direção do homem ao seu lado e o observou como se fosse a primeira vez, com as pupilas dilatas.

Os cabelos de Craig estavam amassados, pois ele havia acabado de tirar o gorro que usava para proteger as orelhas, embora ainda fosse outubro e não estivesse tão insuportavelmente frio, para a sorte de Kenny. Não fazia ideia de como suportaria passar mais um inverno inteiro tentando se aquecer à noite com os dois cobertores que tinha para dormir no banco de trás do carro, tentando dividir o espaço apertado com os poucos objetos que tinha na vida. Ergueu a mão grudenta para alisar os cabelos negros do homem, passando os dedos entre os fios para acariciar o couro cabeludo dele, sentindo a textura. Não era um cabelo macio e bem cuidado, era seco e ralo, mas Kenny o adorava assim. Craig não pareceu se incomodar com a mão suja dele, assim como não se incomodava com nada em relação à higiene do loiro.

Kenny aproximou o rosto dele devagar, seus dedos leves ainda acariciando a parte de trás da cabeça dele, os lábios gelados e a ponta do nariz tocando o pescoço de Craig, que encolheu o ombro e estremeceu com os olhos fechados. Não mostrou resistência nenhuma, é claro, não havia porquê. Ergueu o queixo para dar espaço à boca dele, a língua quente que contrastava com a parte externa do rosto, enquanto ele beijava com os lábios abertos, molhado, cheirando e chupando a pele de Craig que tinha um cheiro de sabonete de lavanda mesclado ao aroma natural dele, que não tinha nada de doce. A outra mão do loiro passeava pelo peito de Craig, sentindo o que havia por baixo – que conhecia tão bem – daquele casaco almofadado de textura fofa, descendo o zíper lentamente enquanto tateava. Foi aí que a mão grosseira de Craig envolveu seu pulso e ele fez menção de se afastar.

-Para com isso, McCormick.

-Por quê? Você gostava.

-Tweek está me esperando, cara. Você sabe disso.

Kenny se endireitou no banco, mas a mão continuou brincando nos cabelos dele, o polegar acariciando a testa. A expressão de Craig, naturalmente, não suavizou. O loiro assentiu com a cabeça, umedecendo os lábios, ainda sentindo o gosto da pele de Craig em sua língua. Afastou a mão dele. Não havia nada naquela frase que genuinamente incomodasse; Kenny não tinha qualquer problema com o fato de que Craig era apaixonado por outra pessoa. Uma pessoa, inclusive, pela qual ele mesmo tinha muito apreço. Tweek era uma daquelas pessoas que o lembravam – indiretamente, pois não se viam há quase dois anos – de que havia beleza em ser torto, estranho, diferente.

Talvez Craig gostasse mesmo era dos problemáticos.

-Você foi ver seu psiquiatra hoje? - Craig perguntou, alcançando a manivela da porta para descer um pouco o vidro do carro, deixando o ar gelado entrar antes de tatear os bolsos em busca do maço de cigarro, emprestando o isqueiro vermelho de Kenny que estava sobre o painel, ao lado de uma foto do loiro com sua irmã, tirada há anos. - É quinta-feira.

-O que você acha?

-Kenny.

-O quê?

Levou algumas tentativas para que o cigarro fosse aceso. Craig deu uma tragada longa e saborosa, lentamente liberando o ar dos pulmões com os olhos fechados de satisfação por um momento. Encostou o braço na janela aberta do carro e encarou o parque vazio, como o vento fazia os balanços se moverem sozinhos e rangerem. Por um segundo, foi como se não se importasse mais com o que havia acabado de questionar. Franziu o nariz e observou o próprio cigarro aceso entre seus dedos com certa curiosidade. Era de menta. Tweek fumava aquela porcaria quando absolutamente precisava se acalmar. O gosto era terrível, mas Craig não acreditou que Kenny tivesse nada melhor escondido naquele carro.

-Você tem que ser muito idiota pra não cumprir com a sua condicional. Já deu sorte que te consideram louco, não um criminoso.

O loiro segurou o volante com as duas mãos e deitou a cabeça um pouco de lado, o rosto virado na direção de Craig, mas sem propriamente encará-lo.

-Você já foi a uma porra de um psiquiatra? Consegue imaginar um gordo rico de bigode infeliz querendo te dopar pra que você “fale dos seus sentimentos”, fingindo que te dá a mínima? É uma tortura, cara.

-Bom, não. Eu nunca fui. Mas também não fui eu que deixei um cara com traumatismo craniano. - Craig disse casualmente, batendo as cinzas do cigarro na janela para que caíssem do lado de fora. Kenny suspirou, incomodado, deitando o rosto no próprio braço como uma criança que não quer admitir ter feito algo de errado. - Você precisa ir, Ken. Não precisa falar sobre o que aconteceu, só precisa ir. Não é como se você tivesse compromisso mais importante mesmo.

-Ah, eu tenho. Não posso deixar aqueles coreanos de terno esperando.

-Cala a boca.

O moreno tentou lutar contra o riso baixo, levando o cigarro a boca para tragá-lo, virando o rosto para a janela antes de soprar a fumaça. Kenny se encolheu um pouco no próprio banco, puxando as mangas sujas do moletom azul marinho que usava. Craig não achou que ele estivesse vestindo algo por baixo. Puxou o celular do bolso para verificar a hora novamente. Tweek não havia feito outra ligação.

-Vai. - O loiro disse depois de alguns segundos em silêncio, percebendo a apreensão do outro.

-Desculpa. Você sabe, quinta é ruim.

-Eu sei.

E, de fato, sabia. Craig precisava se revirar do avesso, muito mais do que admitiria, para encaixar em sua agenda aquela meia hora a cada três dias para encontrar-se com Kenny, entre tomar conta da loja de ferragens, o boxe às segundas e quintas e sustentar um casamento que, o próprio loiro sabia, não era fácil. Não eram poucas as vezes que se perguntava por que diabos Craig Tucker ainda dedicava um pouco de tempo a ele, mas tinha receio de questionar; Especialmente porque o outro lhe mostraria o dedo do meio e sairia do carro diante de qualquer tentativa de discutir a relação estranha que mantinham.

-Vou tentar te ver no sábado. - Craig coçou a parte de trás da cabeça de forma barulhenta, batendo as cinzas do cigarro novamente. - Mas não prometo nada.

-Você nunca promete. - Kenny completou com um sorriso sincero, voltando a mexer no saco de comida enquanto Tucker encolhia os ombros e abria a porta para sair.

Depois de fechá-la, inclinou-se na janela aberta do carro – sabendo que logo Kenny a fecharia – jogou o cigarro no chão e o apagou com o pé. Umedeceu os lábios como se quisesse dizer algo significativo. “Fique bem”, era o que Craig tentava verbalizar. “Cuide-se”, talvez. “Eu me preocupo”. Mas nenhuma dessas palavras saíram de sua boca e Kenny parecia entretido demais com seu burrito para se incomodar. O moreno deu uma batida na parte externa da porta do Fusca e acenou. Essa foi sua despedida.


 

* * *


 

O dia demorava a amanhecer no inverno. Quando Kyle saía de casa para trabalhar, normalmente ainda estaria escuro. Aos vinte e seis anos, ele já contava os segundos e os centavos até ter sua própria galeria de arte. Sondava um espaço para comprar bem no centro de South Park, embora seus pais dissessem constantemente que aquilo não lhe traria dinheiro em uma cidade pequena. Era possível que fosse verdade, mas ele não acreditava em ficar de braços cruzados aguardando que a cena artística da cidade mudasse sozinha, por conta própria. Apesar da ambição, ele gostava do seu trabalho como crítico e coordenador de uma galeria já existente, em um centro cultural aberto há não muito mais do que cinco anos, que lutava diariamente para trazer peças de teatro e artistas significativos para amostras, exposições e palestras. O ruivo considerava aquela galeria uma segunda casa que competia arduamente com seu loft espaçoso no último andar de um prédio de tijolos brancos, de janelas gigantescas. Mesmo quando estava em casa, passava a maior parte do tempo trabalhando em sua mesa de mogno, a escrivaninha ridiculamente organizada que ficava no meio da sala, como se o ambiente que deveria ser uma sala de estar fosse, na verdade, seu escritório. O que Kyle mais ouvia era que trabalhava demais. Stan lhe dizia constantemente que teria um ataque cardíaco antes dos quarenta se continuasse tão empenhado.

Em dias como aquele, chuvosos e feios, sem perspectiva de o sol aparecer, Kyle concordava com aquilo. Era o tipo de chuva fina e irritante que não servia propriamente para abrir um guarda-chuva. Ele fez o caminho interno até a garagem do prédio, que ficava no subsolo, com a alça da bolsa de couro preto atravessada em frente ao peito, contrastando com o xadrez do suéter bordô e amarelo que ele usava, o cabelo ruivo mais armado do que de costume em função da umidade. Isso também corava as suas bochechas e o deixava arisco. Foi uma hora e meia perdida tentando domar aquele cabelo. Olhou no relógio dourado em seu pulso ao entrar no carro, bufando pelo tempo que levaria para chegar à galeria naquele horário. O portão da garagem do prédio demorava para abrir. Kyle ajeitava o espelho retrovisor e guardava o molho de chaves da galeria no espaço atrás do freio de mão. Foi somente quando acelerou para subir o carro pela rampa de acesso que o ruivo se deu conta de que havia um Fusca estacionado bem em frente à passagem.

-Caralho. - Resmungou em voz baixa, desligando o carro enquanto o portão automático se fechava atrás dele.

Kyle não havia sequer desenroscado a alça da bolsa de seu corpo quando abriu a porta violentamente e marchou para fora, ajeitando os óculos de aro fino que escorregava pelo nariz, fechando a porta de forma barulhenta.

O céu ainda era de um azul marinho que começava a clarear, já revelando as nuvens densas que formavam desenhos primitivos sob sua cabeça. Um pouco da luz do sol banhava essas nuvens pelo horizonte, revelando uma coloração rosa extraordinária. Kyle teria achado magnífico se tivesse tirado um segundo de seu trajeto até o carro para olhar para cima, mas não fez. Estava focado demais no objetivo. Ao sair da rampa e pisar na calçada plana, seu mocassim Louis Vuitton afundou em uma poça de água suja e Kyle parou para olhar para baixo, a barra da calça bege molhada. Aquele, definitivamente, não era um bom dia. Bufou. Já estava sob a chuva fina de uma forma ou de outra, não chegaria no trabalho em bom estado. Seu rosto ainda estava inchado de sono, só teve tempo para um café preto e uma torrada antes de descer.

-Ei. Babaca. - Disse, projetando a voz, esmurrando o vidro do carro com a palma aberta. Pôde enxergar que havia alguém deitado no banco de trás, sob uma manta azulada que parecia muito, muito velha. Kyle usava um anel de ouro no dedo mindinho que produzia um barulho muito mais alto. - Faça o favor de tirar a porra da sua lata velha da minha frente.

O homem dentro do carro demorou algum tempo a se mexer. Parecia estar acordando, desnorteado, sem saber exatametne onde estava. Kyle viu apenas um corpo se mexer lentamente sob o cobertor, revelando outro de lã colorida por baixo. Aquilo parecia estranhamente confortável. O inconveniente se endireitou e pôs seu rosto na janela, mais amassado do que o de Kyle, mal conseguindo abrir os olhos. O ruivo franziu a testa por um instante. Não havia como descer a janela de trás do Fusca, mas apesar de o vidro estar sujo e de ainda estar escuro, o rosto familiar e confuso começava a se tornar mais nítido na lembrança de Kyle.

Os cabelos loiros eram quase que inteiramente ocultados pelo capuz do moletom que ele vestia, que era amarrado no pescoço por duas cordinhas e aquilo remetia diretamente ao casaco laranja escandaloso por trás do qual Kenny se escondeu a infância inteira. Agora, seu rosto não estava escondido. O nariz continuava um pouco torto, poucos fios dourados eram revelados caindo sobre a testa dele, os olhos eram igualmente azuis como Kyle jamais se esqueceria. As maçãs do rosto eram altas, protuberantes, relevando uma magreza quase doente. Os lábios estavam feridos, maltratados pelos fios, vermelhos e revelando que ele arrancava a pele fina das feridas. E lá estavam, é claro, os hematomas.

Mas não podia ser Kenny McCormick.

-Meu deus. - Kyle murmurou baixo, endireitando-se, tirando a mão do vidro.

Deu um passo para trás quando percebeu que o loiro fazia menção de ir para o banco da frente com certa pressa, passando entre os bancos desajeitadamente, enroscado nas duas mantas, chutando-as para o chão do carro – que estava cheio de quinquilharias que Kyle não podia ver – para ajoelhar no banco do passageiro e abaixar o vidro com a manivela emperrada. Pôs a cabeça para fora, estreitando os olhos pela brisa fria batendo contra seu rosto quente.

-Eu sinto muito, cara. Eu já vou tirar o carro.

Kenny não pareceu reconhecê-lo, provavelmente porque não o olhava diretamente. Seus olhos permaneciam baixos, confusos, como se ele tivesse usado alguma droga pesada. Aquela foi a primeira ideia que invadiu a mente de Kyle, e quase que imediatamente, sentiu-se culpado por isso. Ele havia acabado de acordar, afinal, de forma brusca. A questão que realmente o atordoava era perceber que o loiro deveria estar dormindo ali simplesmente porque era sua melhor opção no momento.

Os dois não se viam desde o ano depois de se formarem no ensino médio, quando completaram dezoito anos. Houve um afastamento natural entre todos eles, com o envolvimento da vida adulta e conhecendo pessoas novas, ocupando-se com os trabalhos, com as responsabilidades de sair de casa. Kyle não sabia dizer exatamente o que havia acontecido, não podia se lembrar. Esfregou o rosto.

-Kenny, sou eu.

O loiro encolheu as sobrancelhas como se não compreendesse, sacudindo a cabeça.

-Eu sei, Kyle. Acha que eu não conheço teu rosto?

Nós estávamos ocupados demais, era o que Kyle dizia a si mesmo enquanto o olhava com mais clareza, dando um passo à frente. Dizia, quase como um mantra, como se tentasse se convencer de algo. Não era como se nunca mais tivesse ouvido nada sobre Kenny McCormick, depois de voltar para South Park. Era uma cidade pequena, as notícias corriam. Especialmente as notícias trágicas, suculentas, feitas para coçar e satisfazer a curiosidade mórbida alheia. E as notícias relativas a Kenny nunca eram boas.

“Ele ficou doido”, Stan lhe disse. “Ele é um psicopata, podia ter matado alguém”, sua mãe comentava, “e pensar que vocês, meninos, cresceram com um demente”. “Eu sempre soube que ele tinha um parafuso a menos”, alguém lhe disse, não podia se lembrar de quem. “Ele vai ser preso, é lógico”. “Coitada da irmã dele, ela não merecia aquilo”. “Dizem que o pai abusava dele, por isso ele ficou assim, coitado”. “Está num hospício, nunca mais vai sair de lá”. Muitas foram as coisas que Kyle Broflovski ouviu sobre aquele que fora seu amigo de infância e durante boa parte da adolescência. Nada daquilo parecia fazer sentido, não correspondia à pessoa que ele conheceu um dia. Sim, Kenny veio de uma história difícil, pais alcoólatras, um irmão usuário, muita miséria, sem falar na tragédia com Karen McCormick, que possivelmente foi a gota d'água para a sanidade dele. Mesmo assim, Kyle não podia acreditar na imagem que pintaram sobre ele quando voltou para South Park.

Estaria mentindo se dissesse que chegou a perder o sono por conta daquilo. Porque Kenny, como conheciam, era como uma sombra. Como um fantasma que esteve lá enquanto eles cresciam. Ninguém mais falava sobre ele. Era fácil não lembrar.

E agora, Kenny não parecia minimamente impactado por revê-lo e não compartilhava do sentimento de choque, de compaixão, de dor, de nostalgia que Kyle sentiu ao revê-lo.

-O que você...? O que você está fazendo dormindo no carro?

O loiro pressionou a ponta da língua por dentro da bochecha enquanto pensava a respeito, como se fosse uma história longa demais para explicar e ele estivesse com pressa para desaparecer dali.

-Eu não quis te atrapalhar. Foi o único lugar que eu achei pra estacionar e eu precisava dormir. Eu vou te deixar sair em paz.

-Você... Você mora aí?

A resposta imediata foi um sorriso sarcástico, quase incrédulo. Kenny desviou o olhar e coçou o nariz, fungando como se estivesse ficando doente.

-Isso não é da sua conta, Kyle.

Quando Kenny fez menção de se afastar da janela para deslizar para o assento do motorista, o ruivo instintivamente lhe agarrou pelo braço e apertou, aflito. Esqueceu-se da chuva, do carro na rampa, do mocassim molhado, da hora que precisaria chegar para abrir a administração da galeria. Esqueceu-se dos planos que fez para o almoço, do vinho branco que estava na sua lista de supermercado para quando voltasse do trabalho, esqueceu-se de quem era agora. Nada parecia mais importante do que agarrar aquele fantasma do seu passado, aquele homem sobre o qual raramente pensava e do qual nunca falava a respeito. Porque houve uma época de sua vida – quinze anos, até mais – em que aquele garoto loiro, sujo e pobre estava presente todos os dias e jamais poderia imaginar sua vida sem ele. Vê-lo daquela forma doía. Doía ver o que foi feito de Kenny quando nenhum dos seus amigos de infância esteve lá.

-Eu sei que não é. Mas... Por favor. - O ruivo fez uma pausa, agoniado, passando a língua pelo lábio superior brevemente. - Por favor. - Repetiu.

Kenny o encarou com o olhar em branco, depois abaixou o rosto para observar a mão que continuava firme em torno do seu braço, não mostrando qualquer sinal de que estaria disposto a soltá-lo.

-Por favor o quê?

-Eu tenho comida lá em cima. Em casa. - Respondeu quase gaguejando, apontando para o prédio com a mão livre. Kenny separou os lábios, sem dizer nada, olhando para cima. - Você deve estar faminto.



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