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História Unwell - Médicos, café preto e Bob Dylan


Escrita por: caulaty

Capítulo 10 - Médicos, café preto e Bob Dylan


Quando Token chegou, eram quase onze da noite e Kenny já estava adormecido. Token gostaria de ter estranhado um pouco mais aquela cena; a casa silenciosa, as luzes apagadas, apenas um brilho alaranjado guiando o caminho do corredor para o quarto de hóspedes que tinha a porta entreaberta, como se alguém a tivesse esquecido daquela maneira. Kyle, com um rosto pálido e abatido, estava sentado na beirada da cama com uma das mãos acariciando o cobertor sobre a forma encolhida de Kenny McCormick. Havia algo sobre aquele cenário que não carregava malícia alguma e também não chocava. Era uma questão de tempo, Token pensou, até que Kyle estivesse também vigiando o sono daquele homem como uma mãe faz com um filho. Kenny estava deitado de costas para a porta, e tudo o que se via era o tufo de cabelo loiro, o cobertor de lã tapando até mesmo a nuca e boa parte do rosto, como se ele fosse uma lagarta no casulo. Quando Kyle percebeu a presença de Token, umedeceu os lábios e virou a cabeça para Kenny uma última vez, acariciando seu ombro com delicadeza para não acordá-lo. Não agiu como se estivesse fazendo algo de errado, pois não estava. Não naquele momento.

Token cruzou os braços e pigarreou, afastando-se da porta, andando um pouco pelo corredor enquanto esperava Kyle sair do quarto, cuidadosamente fechando a porta para não perturbar o sono de Kenny. Ao se virar, os dois trocaram um olhar demorado. Era muito comum que não precisassem de palavras antes de sentir o território um com o outro. Token usava um suéter roxo com uma gola V que revelava uma camiseta branca por baixo, duas cores com as quais ele ficava especialmente bonito. Parecia cansado, mesmo que não houvesse qualquer inchaço em seus olhos e tampouco olheiras na pele escura. Ele coçou o nariz, separando os lábios como se fosse dizer alguma coisa, mas nenhum som saiu. Kyle encostou-se contra a parede; os dois estavam próximos pois o corredor era estreito.

-Tem alguma coisa que você queira me contar? - Token finalmente perguntou.

-Ele não tá bem. - Foi a resposta simples de Kyle, tão redundante.

Tanto que Token precisou segurar uma pequena risada, não por realmente achar graça, mas sim porque essa era uma informação com a qual ele já estava muito bem familiarizado e vinha sendo a desculpa para muitas discussões que tiveram antes daquele momento. Ele ergueu as sobrancelhas como se esperasse mais alguma coisa, a boca ainda aberta, pronta para debater. Mas ele não tinha vontade, porque sabia que era inútil. Contra Kyle, era impossível vencer quando o assunto fosse Kenny McCormick.

Depois de um longo suspiro que recolhesse toda a paciência desse mundo, Token, sendo o homem racional que era, perguntou:

-Aconteceu alguma coisa?

-Eu não sei ao certo. - Ele podia ouvir a hesitação na voz de Kyle ao contar, como se não confiasse totalmente nele. Aquilo o incomodou profundamente. - Eu acho que ele teve um ataque de pânico. Eu cheguei em casa e ele estava…

Então eles atingiram um outro tipo de território. Porque, ao relembrar do incidente, os olhos de Kyle mudaram. Sua voz fraquejou, e durante alguns segundos, ele pareceu tão frágil que Token sentiu vontade de tomá-lo em seus braços. Se havia alguma irritação, ela se dissipou sem que ele percebesse. Token deu um passo à frente, uma ruga de preocupação se formando entre as sobrancelhas, e não apenas por Kyle.

-Foi horrível, Token.

A voz espremida de Kyle fez seu estômago doer e seu coração apertar, ainda que houvesse uma força descomunal naquele homem por quem havia se apaixonado. Kyle não parecia à beira de lágrimas, tampouco parecia precisar de um abraço, mas por trás daquele couro grosso dele, Token sempre enxergava um relance tão efêmero de vulnerabilidade que o deixava mais bonito do que nunca. Tentou oferecer um sorriso triste, trazendo a mão ao braço de Kyle para segurá-lo como fazia com muitos de seus pacientes, de forma firme e delicada ao mesmo tempo.

-Kyle, talvez seja a hora de falar com ele sobre um psiquiatra.

Os olhos verdes de Kyle se encheram de desconfiança. Ele virou o rosto sutilmente, vestindo uma expressão que fazia parecer que Token havia acabado de ofender sua mãe.

-Não.

Depois de anos de relacionamento, ele já aprendera que o “não” de Kyle era uma das coisas mais resistentes desse mundo. Era muito mais fácil escalar o monte Everest com um braço amarrado nas costas do que convencer aquele menino a alguma coisa além do não. Só de pensar sobre, Token coçou a nuca em uma reação nervosa.

-Eu sei o que ele pensa disso. E eu sei que você quer respeitar, mas você não pode…

-Não, Token. Não, você não sabe. - Kyle dobrou os dois braços, erguendo as mãos em defensiva, desencostando da parede como se sentisse encurralado. Mantinha a voz em um tom controlado para não acordar o homem adormecido no quarto ao lado, mas o resto do corpo gritava. - Ele finalmente confia em mim. Ele finalmente está me contando as coisas, e você não pode imaginar o que ele já passou pra chegar a esse ponto. Eu não vou me aproveitar disso pra colocá-lo de volta num sistema que só fodeu com ele.

-Eu não falei nada sobre interná-lo! - Token respondeu em um tom mais alto, defensivo, o que fez com que Kyle começasse a andar para que saíssem de perto da porta. Token o seguiu em um passo acelerado, parando no meio da sala escura. - Existem psiquiatras excelentes, eu posso falar pessoalmente com o Casey sobre o caso dele. Porra, eu posso até pagar, isso não é um problema.

Kyle acendeu as luzes da sala batendo nos interruptores de forma mais barulhenta do que o necessário, soltando uma risada de escárnio enquanto balançava a cabeça.

-É, eu tenho certeza de que transformá-lo num caso de caridade vai ajudar bastante.

Durante alguns segundos, a sala ficou em silêncio. Token estava parado ao lado do sofá, de pé, os braços caídos pelos lados do tronco, a expressão desarmada de qualquer defesa, com uma insinuação de ambiguidade no seu rosto, parecendo muito mais confuso do que irritado. Encolheu um pouco os ombros, erguendo as palmas em dúvida.

-Por que você tá tão puto com isso? Eu não faria essa sugestão se eu não achasse que é disso que ele precisa.

O tom de Token fez com que os músculos de Kyle relaxassem um pouco. Havia uma distância de quase cinco metros entre os dois. Kyle não saiu do lado dos interruptores. Suspirou fundo, colocando as duas mãos nas cinturas, soltando o ar da boca, pensativo. Encarou o chão durante um tempo.

-O que ele precisa é de alguém que não desapareça. Alguém que seja o chão firme dele. Eu sei que você só quer ajudar, Token… Eu não espero que você entenda isso, de verdade. Ele só precisa de um pouquinho de autonomia. Um psiquiatra vai enchê-lo de remédio, ele não quer mais ser dopado. Se eu sugerir isso, ele não vai mais se sentir seguro aqui.

Token o olhava com a afeição de um adulto que entende todas as coisas que uma criança não entende, mas também não tem coração para contestá-la. Ele coçou a sobrancelha, balançando a cabeça como quem não sabe o que dizer, e então decidiu se aproximar como se isso pudesse resolver a falha de comunicação entre os dois. Aproximou-se o bastante para tocar o rosto de Kyle se erguesse uma das mãos, e assim o fez, envolvendo sua bochecha na palma gelada por ter acabado de chegar da rua. Kyle deitou o rosto em sua palma, os olhinhos baixos, os lábios enrugados de insatisfação.

-Você precisa entender que isso é demais pra uma pessoa lidar sozinha. - Disse com gentileza. - Um médico não vai machucá-lo, Kyle. Vai ser muito bom pra ele. Especialmente se ele voltou a ter episódios.

“Episódios”. Esse era o termo técnico a ser usado para definir o que Kyle havia presenciado, mas ainda assim, parecia um termo tão idiota e inadequado com a realidade. Assim como se referir à doença de Kenny, à instabilidade emocional e a uma vida inteira destruída por uma injustiça atrás da outra, como “o caso”. Token falava como um médico, pois era um médico, e nem sempre Kyle gostava das implicações disso. Mas não gostava de pensar em si mesmo como um homem irracional. Ele tomou medicação para a ansiedade durante toda a adolescência e não poderia se imaginar sem isso, pelo menos naquela época, então não era uma questão de não acreditar na homeopatia. Para Kyle, apenas parecia uma violência sem tamanho impor isso a outra pessoa em uma condição tão frágil, uma pessoa que nunca tirou nada de bom da homeopatia e nunca teve escolha própria.

-Eu estou preocupado com você. - Token completou, seus olhos de jabuticaba refletindo um carinho incondicional, verdadeiro, algo que fez o peito de Kyle aquecer de repente.

Ele fechou os olhos, virando um pouco o rosto contra o toque de Token para roçar os lábios na mão dele, assentindo com a cabeça como uma forma de trégua.

-Eu posso perguntar… Amanhã, como ele se sente sobre isso. - Kyle concordou por fim. - Mas se ele disser que não, eu não quero ouvir mas nem uma palavra sobre isso.

Tratando-se de Kyle, todo acordo vinha com concessões. Token assentiu, beijando sua testa.

 

* * *

 

Kyle estava mais silencioso do que de costume. Ainda eram nove da manhã, então aquilo parecia uma coisa natural, mas Kenny possuía um tipo de sensibilidade tão aguçada como apenas os animais têm. Estava sentado na sala com Irene no colo, dedilhando uma melodia tão delicada sem saber exatamente qual música estava tentando encontrar, mas a música certa sempre o encontraria primeiro. De vez em quando, esticava o pescoço para observar Kyle através do arco que dava para a cozinha, absorvendo a imagem daquele jovem adulto pálido de dedos longos e sardas, os cabelos daquela cor de ferrugem tão bonita que dava vontade de compor músicas e mais músicas sobre ele. Não que Kenny soubesse compor músicas. Como dito anteriormente, Kyle estava silencioso enquanto lavava a louça deixada da noite anterior e estava silencioso enquanto fazia café e estava silencioso enquanto limpava as migalhas da mesa. E Kenny sentia que isso era culpa sua. Também sentia que era culpa sua que Kyle não havia ido trabalhar naquela manhã, diferentemente de Token, que Kenny sabia que havia estado na casa por conta do chapéu que apareceu misteriosamente no cabideiro ao lado da porta. E mesmo que o chapéu não estivesse ali, Kenny ouvira seu caminhar diferente pelo corredor algumas horas antes, ainda deitado na cama do quarto de hóspedes. Dormira muito mal aquela noite, e não era de se esperar diferente.

 

It ain't no use to sit and wonder why, babe
If you don't know by now
An' it ain't no use to sit and wonder why, babe
It'll never do somehow
When your rooster crows at the break of dawn
Look out your window and I'll be gone
You're the reason I'm travelin' on
But don't think twice, it's all right

 

Kyle esticou a cabeça da cozinha quando ele começou a cantar, mas Kenny não viu, porque estava ocupado demais olhando para o tapete cinza do chão que Kyle havia trocado na semana passada. Não estava olhando para o tapete realmente, é claro, por mais que fosse ali que seus olhos tivessem se focados. Ele umedeceu os lábios e sua expressão se tornou terrivelmente melancólica, o que fez com que Kyle sorrisse um sorriso vago e triste, porque pelo que podia ver do perfil de Kenny, ele ficava muito bonito assim. Pegou a caneca azul e a caneca amarela, ambas cheias de café puro fumegante, e caminhou até a sala com aquele andar característico que fazia o quadril mexer sutilmente de um lado para o outro e os pés se arrastarem no chão, e por isso, Kenny sabia que era Token andando pela casa naquela manhã, e não Kyle. Ouvir esse caminhar fez com que o loiro virasse para enxergá-lo dando a volta no sofá, apoiando a canela amarela perto de Kenny na mesinha de centro antes de se sentar na poltrona e apoiar os pés descalços na superfície da mesa, em cima de duas revistas e um jornal. Kenny não parou de cantar.

 

And it ain't no use in turnin' on your light, babe
That light I never knowed
An' it ain't no use in turnin' on your light, babe
I'm on the dark side of the road
But I wish there was somethin'
You would do or say
To try and make me change my mind and stay
But we never did too much talkin' anyway
So don't think twice, it's all right

 

Kyle se sentou confortavelmente na poltrona, deixando uma almofada no colo e cruzando as pernas uma sobra a outra, segurando a caneca com as duas mãos, levando o café à boca com cuidado porque estava quente demais. Kenny sorriu enquanto ele bebia, o que levou Kyle a piscar para ele com um olho só, já que a boca estava ocupada para sorrir. Era um gesto muito simples de reconhecimento.

Fazia frio aquela manhã, mas dentro de casa a temperatura era agradável o suficiente para que Kenny usasse uma camiseta cinza com um furo na manga direita, e o tecido de algodão abraçava muito bem o corpo que começara a ganhar peso desde que ele se mudou para aquela casa; estava com um aspecto muito diferente, quase irreconhecível. Kyle usava um suéter creme de lã que parecia tão confortável e Kenny ficou tentado a parar de tocar para passar a mão no tecido macio, mas se conteve. Irene não gostava quando ele não terminava uma canção, e Kyle tampouco. O ruivo descansou a bochecha na palma da mão e apoiou o cotovelo no braço da poltrona, segurando a caneca com a mão livre, repousando-a sobre a almofada. Seus lábios pareciam um pouco mais vermelhos do que de costume, talvez por conta do frio, talvez por ter beijado Token durante a manhã. Kenny não sabia dizer e também não estava interessado em pensar sobre.

Interrompeu a música antes do final por mero impulso. Respirou fundo, coçando o olho direito usando o polegar de uma maneira tão peculiar, tão sua, e Kyle também já estava habituado ao quase todos os gestos dele. Então, deitou Irene sobre as pernas e se esticou para alcançar o café na mesa de centro, bebendo um longo gole enquanto ainda inclinado, porque pretendia ajeitar Irene no colo para continuar tocando, então descansou a caneca sobre a mesa ao terminar. Mas em vez disso, passou alguns segundos olhando para o nada, o tronco ainda para frente, pressionando os lábios de maneira pensativa. Kyle o observou com certa curiosidade, e estava prestes a perguntar se estava tudo bem quando Kenny disse:

-Eu acho que é melhor eu ir embora.

-O quê?

Kenny segurava o braço de Irene com mais força do que deveria, esquecendo-se de respirar durante um segundo ou dois, como se não tivesse total consciência do que havia acabado de dizer. Também não demonstrou qualquer intenção de se explicar, tampouco fez contato visual, o que levou Kyle a também descansar a caneca sobre a mesinha e se sentar mais na beirada da poltrona, colocando os pés no chão.

-Kenny. Por que diabos isso seria melhor? De onde veio isso agora?

Os olhos azuis vacilaram, piscando algumas vezes para combater a ardência de uma noite mal dormida. Ele não fazia contato visual. Botou Irene de lado no sofá e esfregou as coxas para aquecer as mãos ou controlar a ansiedade. Usava o mesmo jeans claro rasgado com o qual havia dormido, e buscou no bolso de trás um maço de cigarros, mas não encontrou. Tentou o outro bolso. Encontrou apenas um isqueiro. Então, deu-se conta de que o maço estava na mesinha bem à sua frente. Apoiou um pé descalço na beirada da mesa e se inclinou para pegar o maço que só tinha dois cigarros dentro.

-Você sabe porquê. - Disse casualmente, botando um dos cigarros na boca sem acendê-lo, guardando o maço no bolso da calça.

Kyle separou os lábios para dizer um redondo “não, eu não sei”, mas isso somente porque era muito bom em mentir para si mesmo. Diante da facilidade de Kenny para reconhecer coisas sobre as quais eles não falavam, Kyle ficou mudo. Pensou um pouco, reagindo com um gesto de resignação, unindo as duas mãos para entrelaçar os dedos, apoiando os braços nas coxas, inclinando como se para se aproximar dele.

-E pra onde é que você vai?

-Sei lá, Kyle. - O loiro levou o isqueiro à ponta do cigarro como se para acendê-lo, mas parou de repente, tirou o cigarro da boca e olhou o outro diretamente nos olhos. - Eu sempre me virei, não vai ser diferente agora.

-Você não se sente bem aqui?

-Cara, isso não é a questão. Só que isso aqui não é justo com você. Nós dois sempre soubemos que teria um limite pra sua caridade.

-Isso é ridículo. - Kyle deixou a almofada de lado e se levantou, tentando fortalecer o que dizia. - Você não vai a lugar nenhum.

-E você vai fazer o quê, me amarrar no pé da cama? - Kenny retrucou em um tom de brincadeira, esticando os braços para apoiá-los sobre o encosto do sofá.

-Só se você me obrigar. - Kyle respondeu, cruzando os braços.

E foi o suficiente para que o loiro começasse a gargalhar de imediato, o que fez Kyle franzir a testa, seu rosto corado e quente, um dos pés batendo ansiosamente no chão algumas vezes. Ele não fazia esforço para parecer exageradamente caricato, era apenas seu modo de lidar com as coisas, o que continuava sendo infinitamente hilário para Kenny.

-Não é engraçado. - Disse.

-Desculpa. - Kenny respondeu, rolando os lábios por dentro da boca e, logo em seguida, passando a língua pelo lábio superior. O cigarro continuava em uma mão, o isqueiro em outra, enquanto ele gesticulava. - É riso de nervoso, na verdade, porque eu acredito em você. Pra dizer a verdade, eu tô com um pouquinho de medo. - Kenny disse com uma honestidade satírica, sorrindo sem vergonha como de costume, ajeitando-se no sofá. Pegou uma almofada para colocar nas costas.

Foi ali que ele pegou Kyle em um momento de fraqueza e conseguiu fazê-lo rir, mesmo que hesitante, contido, querendo se mostrar indignado. Ele cobriu a boca com a mão e desviou o olhar com o ímpeto de ocultar o sorriso, balançando a cabeça como quem não se conforma.

-Você é patético. - Disse brincando. Já estava relaxado o suficiente para se sentar na poltrona, as mãos caídas entre as pernas. Houve quase trinta segundos de silêncio confortável, o ar muito mais leve se dissipando aos poucos, dando lugar às coisas que ambos não queriam reconhecer. Ah, essas são as coisas que mais doem.

Podiam morar para sempre naquele momento em que Kenny havia penetrado a pele grossa de Kyle, forçando-o a rir contra a própria vontade, porque as coisas com Kenny sempre eram extraordinariamente fáceis e difíceis ao mesmo tempo. Momentos assim não foram feitos para durar. A ressaca do riso era uma profunda tristeza. Naqueles trinta segundos, Kyle encarou tudo o que não fosse Kenny, sentindo uma bola gigante ardendo na garganta, lidando com uma incompreensível vontade de chorar. Desejou por um momento que Kenny estivesse mais perto. Não era preciso que ele estivesse em contato físico, apenas perto o suficiente para sentir seu calor tocando a pele.

-Eu quero muito te ajudar, Kenny. - Disse, quando sua voz estava estável o suficiente para ele ter certeza de que as lágrimas estavam todas sob controle e nenhuma rolaria pelo seu rosto.

O outro passou algum tempo sem reagir, pensativo.

-É, mas aí que tá. - Quando abriu a boca, falou com muita gentileza. Seus olhos estavam brilhantes e bondosos, como se ele falasse com uma criança. - Isso não existe pra mim. Eu não vou ficar melhor do que isso, Kyle. Vão ter dias melhores e dias piores, mas eu sempre vou ser desse jeito. - Ele gesticulava com o cigarro apagado entre dois dedos, botando um dos pés em cima do sofá com a perna dobrada, descansando o braço sobre o joelho. - Enquanto eu estiver aqui, você vai se sentir responsável por mim. Eu vi a sua cara ontem. Não vou te fazer passar por isso de novo.

-Isso é ridículo, Kenny.

-Não é, cara. Não é. Você acha que eu não sei que você nem foi trabalhar hoje com medo que eu acordasse surtado?

Isso fez com que Kyle gaguejasse um pouco, franzindo as sobrancelhas. Estava com a defesa preparada, mas precisou repensá-la diante do apontamento tão honesto de Kenny, sem cerimônia alguma. Kenny falava calmo e devagar, e por mais que suas palavras parecessem acusatórias, seu tom não era. Entretanto, havia dor.

-É claro que eu fiquei preocupado. Mas você não é um fardo, você é alguém… Com quem eu me importo pra caralho. Isso não vai mudar se você for embora, vai ser muito pior.

-Você tem a sua vida. - Kenny disse, seus olhos carregados de compreensão, porque ele queria mais do que tudo poder fazê-lo entender, mas as palavras certas não vinham. - O Token já deve estar de saco cheio de uma terceira pessoa aqui dentro.

-O Token se preocupa também. - Kyle disse, e disse porque era a verdade. - Ele acha que… Que talvez seja uma boa ideia buscar algum tipo de… - Fez uma pausa de nem um segundo, passando a língua sobre o lábio, cuidadoso com a escolha das palavras para introduzir esse território delicado. - Acompanhamento psicológico.

Ele esperava uma reação mais imediatista, mas Kenny desviou o olhar e sacudiu a cabeça de forma tão sutil que quase não foi perceptível. Era como se já esperava que, uma hora ou outra, o assunto fosse surgir. Coçou a cabeça, fazendo uma careta enquanto pensava sobre como responder, correndo a língua pelos dentes, estreitando os olhos. Ele parecia muito lúcido, muito calejado sobre aquelas questões. Já havia aceitado muitas coisas que Kyle era incapaz de entender.

-Kyle… Essa merda me faz mal.

Kyle não teve certeza sobre o que ele estava falando. Imaginou que fosse sobre os médicos, os remédios, os tratamentos, as autoridades que lidam com a fragilidade da mente humana. Foi um desabafo tão sincero que Kyle hesitou para responder, porque diante daquilo, não deveria haver argumento algum.

-Mas a experiência que você teve foi por obrigação. Te forçaram a ir, te forçaram a se medicar, impuseram que havia alguma coisa de errado com você. Isso é violento, eu sei.

Ao ouvi-lo, Kenny massageou os olhos fechados e, ao tirar as mãos do rosto, aumentou o tom de voz:

-Não sabe não.

Não estava zangado. Quase gritou, gesticulou como se estivesse, mas não estava. Havia uma força explosiva dentro dele que Kenny tentava sempre manter na rédia, e foi isso que o levou a cair no sistema da saúde mental para começo de conversa. Essa besta selvagem que estava o tempo inteiro com raiva. Kenny gostava de acreditar que ele e a besta se entendiam muito bem, e quando a besta foi silenciada, ele se sentiu mutilado. Não esperava que Kyle fosse capaz de entender isso, tampouco o culpava por se encolher um pouco na poltrona, parecendo magoado com a contradição. Mas observando o olhar vulnerável de Kenny, era muito transparente a sua certeza nua e inabalável, íntima, de que ele não tinha intenção de machucá-lo com isso. Pois a coisa era o que era, e ele a mudaria se pudesse. Ele seria melhor se pudesse. Ele seria saudável, são, estável se pudesse. Talvez ele até fizesse como todas as outras pessoas, arrumasse um emprego, pagasse impostos, vivesse uma vida normal.

Mas não podia. E queria, mais do que tudo, que Kyle entendesse que não podia. Que não era uma questão de falta de vontade, que não havia saída alguma para uma pessoa como ele.

-Tudo bem. Eu não sei. - Kyle respondeu, alcançando a caneca de café que já havia esfriado um pouco. E não ofereceu argumento nenhum que alimentasse a discussão, uma decisão bastante incomum para Kyle Broflovski. Ele deu um gole.

Kenny escorregou as mãos para as têmporas e começou a massageá-las. Já havia largado o isqueiro sobre a coxa, desistindo de fumar. Botou os dois pés no chão, mantendo as pernas bem separadas, os ombros um pouco caídos para frente, os cotovelos apoiados nas duas coxas. Coçou embaixo da orelha porque não sabia o que fazer com as mãos, nem com aquele silêncio. Começou a ficar agitado.

-Cara, por favor. - Disse. - Não tem nada que um médico tenha a me oferecer que eu já não conheça, que já não tenha dado errado. Eles têm uma conversinha pra te convencer de que uma baga vai mudar a sua vida… E muda, muda mesmo, você não tem noção de como eu fiquei. - A essa altura, Kenny divagava por entre as próprias lembranças com tanta profundidade que já não olhava mais para Kyle, como se não falasse com ele, mas com si próprio. Juntou as duas mãos e entrelaçou os dedos uns nos outros. Quase não piscava. - Eu virei essa casca vazia, esse corpo que anda por aí mas não reage a nada… Eu não sentia nada. Nada. Eu nem me sentia vivo, cara. Isso é melhora pra eles. Gente dopada não dá traumatismo craniano em ninguém, entende?

Kyle umedeceu os lábios. Tinha os olhos fixos em Kenny, que só voltou a olhá-lo quando terminou de falar. O loiro não esperava encontrar uma expressão tão melancólica. Ele parecia tão triste. Kenny mordeu o lábio inferior e desviou o olhar por um segundo, trazendo uma mão ao peito, segurando o tecido da camisa para apertá-lo, respirando mal. A única resposta de Kyle foi assentir com a cabeça. Não havia mais o que dizer.

Quando os dois se deram conta de que aquela conversa havia acabado, Kyle voltou a recostar as costas na poltrona de forma mais confortável, bebendo o café despretensiosamente, mas os olhos ainda muito vagos, a cabeça visivelmente em outro lugar. Kenny deixou o isqueiro na mesa, deu um gole de café e voltou a alcançar Irene para encaixá-la em seu colo, dedilhando uma melodia suave exatamente como a que ele interrompera antes, como se nunca tivesse parado. Não demorou mais de um minuto para que eles estivessem novamente imersos na mesma calmaria de antes. A música enchia a sala. Kyle fechou os olhos sem pensar sobre, sentindo os pelos do braço e os mamilos se arrepiarem por dentro do suéter com a voz rouca de Kenny.

 

So long, honey babe
Where I'm bound, I can't tell
But goodbye's too good a word, babe
So I'll just say farewell
I ain't sayin' you treated me unkind
You could have done better but I don't mind
You just kind of wasted my precious time
But don't think twice, it's all right

 

Kenny olhou para ele algumas vezes enquanto cantava, mas Kyle estava com toda a atenção focada em alguma outra coisa não material, e seu olhar repousava sobre o chão sem absorver a imagem, porque não importava. Quando sentiu que estava sendo observado, ergueu um pouco o rosto e retribuiu o olhar com um sorriso fraco, beberricando do café. Era uma tentativa de assegurá-lo de que estava tudo bem. Kenny chegou ao final da canção dessa vez e continuou brincando com as cordas antes de interromper o som por completo. Continuou abraçado a Irene, na mesma posição, pronto para começar a tocá-la novamente, mas não o fez.

-Sabe. - Disse de repente, mas então ficou em silêncio, passando a língua pelos lábios, pensando. - Eu tô desde ontem tentando pensar num jeito de dizer que eu sinto muito por ter te beijado e parecer honesto.

Kyle riu preguiçoso, apoiando a cabeça na mão, descansando o cotovelo no braço do sofá para olhá-lo.

-E como foi isso?

Kenny encolheu os ombros.

-Não consegui.

O sorriso nos lábios de Kyle foi um pouco mais largo do que ele planejava e durou um pouco mais de tempo do que deveria, mas pouco a pouco foi dando lugar a uma expressão séria.

-Eu teria te beijado na adolescência. - Ele disse baixinho, sem pensar.

-Hm?

-Você disse que eu nunca teria te dado bola naquela época, mas eu fiquei pensando… Se eu tivesse alguma ideia, se você tivesse tentado, com certeza eu te beijaria.

Foi a vez de Kenny de soltar uma risada, ainda que tímida, as bochechas quase chegando a corar. Ele dedilhava alguma coisa sem forma nas cordas de Irene, balançava um pouco a cabeça, mas vestia uma expressão cética.

-Teria nada. Tá dizendo isso só pra eu me sentir melhor.

-Eu teria sim. - Kyle confirmou com um sorriso constrangido, levando a mão pela nuca para massageá-la um pouco. A luz que entrava pela porta da sacada fazia sua pele parecer especialmente macia.

Kenny interrompeu o movimento distraído dos dedos e ergueu um pouco o queixo sem perceber, o sorriso diminuindo de tamanho, ganhando uma conotação mais maliciosa. Ele passou a língua pelo superior, e foi o suficiente para que o sorriso desaparecesse por completo, mas seus olhos reluziam em curiosidade.

-Bom. - Disse. - Acho que eu perdi a oportunidade, então.

Kyle se levantou da poltrona, segurando a caneca vazia, suja de café. Olhou Kenny por não mais de dois segundos, respondeu com um sorriso e se dirigiu para a cozinha.



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