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História Unwell - Omelete, Pollock e banheiras


Escrita por: caulaty

Capítulo 2 - Omelete, Pollock e banheiras


Naturalmente, assim que o homem loiro saiu do carro e pôs os pés na calçada úmida, Kyle percebeu que ele não usava sapatos. Também não se incomodou de parar para vestí-los, se é o que tinha um par deles em algum lugar daquele carro. Uma das primeiras coisas que Kenny fez ao entrar naquele apartamento foi tirar suas meias, que eram cinzas, relativamente grossas e furadas. Havia algo na simplicidade daquela cena que dilacerou um pedaço do ruivo por dentro, mas ele não sabia explicar ao certo de que se tratava. Não era, pelo menos não propriamente, um sentimento de pena. Era apenas triste. Muito, muito triste. Kenny não parecia se dar conta do quanto.

Pareceu-lhe algo até mesmo natural: o loft de Kyle, por dentro, era um dos lugares mais organizados, limpos e iluminados em que já pisara. As janelas altas até o teto, que intercalavam entre colunas das paredes de tijolo de um cinza escuro e propositalmente envelhecido, contrastando com os móveis muito brancos, o sofá imenso e confortável que se encontrava bem no meio da sala, cheio de almofadas exatamente da mesma cor e textura no lugar do encosto, pufes e apoios para os pés, a mesinha de centro de vidro com uma pilha de livros calculadamente empilhados, a escrivaninha logo atrás. Era um espaço amplo, enorme aos olhos do loiro. O chão era de madeira escura, quase preta. Havia algumas luminárias altas, de cúpula acinzentada. Uma estante branca que parecia composta por diversos nichos empilhados um sobre o outro, que funcionava como uma espécie de parede divisória entre a sala de estar e a de jantar, repleta de livros de arte, revistas de moda, literatura inglesa, russa e alemã em especial. Até mesmo a estante parecia cuidadosamente pensada na distribuição de seus livros; Kenny não teve dúvida de que havia alguma organização em ordem alfabética e um equilíbrio de feng shui envolvido.

Havia, naquele apartamento, coisas que Kenny nunca pensou que veria pessoalmente em uma residência. Luzes embutidas no teto, em uma estrutura de gesso que Kyle mandou fazer depois de comprar o apartamento, pois adorava poder controlar a intensidade da iluminação de qualquer cômodo. Havia um bar, com uma exposição exibicionista de taças de vinho numa cristaleira atrás dele, banquetas pretas, obras de arte espaçadas no ambiente de forma estratégica para que houvesse equilíbrio entre esculturas e pinturas penduradas, nenhuma delas minimamente reconhecível para Kenny. Ele não saberia dizer se aquilo era uma réplica de Picasso ou um desenho feito por uma criança de oito anos. Também não se importava.

A única coisa que realmente importava a ele no momento era que, diante de um ambiente tão insípido, daquele tapete branco felpudo, reuniu todo o senso de educação que sua falecida mãe lhe deu – não era muito, verdade seja dita, mas Carol tentou – e arrancou as meias molhadas dos pés para socá-las no bolso do moletom casualmente. Talvez seus pés não estivessem mais limpos do que o par de meias, mas era um risco necessário. Ele não tirava aquele par há alguns dias.

Kyle quis dizer a ele que isso não era necessário, mas não encontrou forma alguma de fazê-lo sem tocar em pontos delicados demais para a zona estranha em que se encontravam. Não pensou em qualquer maneira de dizer a Kenny que ele podia andar com suas meias imundas dentro de casa sem, de alguma forma, temer que ele se ofendesse e desistisse de estar ali.

Durante os primeiros quinze ou vinte minutos, não trocaram palavras. O ruivo deixou a bolsa sobre uma mesa – também de vidro – estreita logo ao lado da porta de entrada, sobre a qual havia um espelho em mosaico que Kenny encarou durante algum tempo, impressionado. Era bonito. Kyle deixou as chaves sobre a superfície sem muito cuidado, de forma barulhenta. O loiro continuou parado de pé, com as mãos nos bolsos, sem saber exatamente o que fazer ali dentro enquanto o outro se movia com foco, ansioso, buscando uma maneira de organizar os pensamentos e as ações. Não demorou muito para que ele acenasse para para que Kenny o seguisse até a cozinha.

Os ladrilhos eram pretos e a geladeira era de uma cor prateada, em que Kenny enxergava a própria imagem distorcida, com duas portas, com um daqueles sistemas absurdos de água gelada que saía da porta e simplesmente não fazia qualquer sentido na cabeça dele. A quantidade de informações a serem absorvidas pareceu deixar o loiro um tanto desnorteado. Ele também notou uma caixa de areia, um pote de ração logo ao lado da geladeira e outro cheio de água. Abaixou um pouco o rosto para esfregar os olhos. Kyle lhe preparou um omelete com tomate, queijo, salsa e cebolinha que fez com que Kenny se lembrasse das pouquíssimas vezes em que sua mãe pôde colocar um queijo prato fedido no omelete que preparava quando eles eram crianças, alguns dos momentos mais felizes da infância de Kenny.

Comeu da forma mais silenciosa que pôde, sentado em uma das banquetas sem apoio para as costas, um tanto quanto corcunda, com os dois cotovelos apoiados na bancada de mármore, usando talheres pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo. O som dos talheres arranhando o fundo do prato com afinco era o que preenchia o silêncio na cozinha. Ele comia, era fato, como um homem que não tinha suas refeições garantidas diariamente. Kyle estava debruçado sobre a bancada do lado oposto ao do loiro, tentando não encará-lo, mas tinha certa dificuldade, pois Kenny parecia uma criatura, ao mesmo tempo, maravilhosamente mitológica e diabólica. Era como um ser raro de se encontrar, mas tão selvagem que intimidava olhar diretamente para ele. Seu óculos, agora, descansava à sua frente, com as hastes fechadas.

Kyle esperou que ele terminasse de comer antes de dizer qualquer coisa.

Limpou a garganta, revelando certo desconforto, unindo as mãos sobre a superfície gelada. Kenny levantou os olhos em sua direção, ainda segurando um talher em cada uma das mãos, esperando.

-O que aconteceu com você?

O loiro ainda mastigava quando respondeu:

-Como assim?

-Você... Desapareceu. - O ruivo tentou explicar, buscando palavras que não parecessem ridículas, mas tudo o que lhe ocorria soava inapropriado. Esfregou as têmporas por um instante, tentando encontrar uma maneira de lidar com a naturalidade provinda do outro. Kenny o encarava como se não fizesse a menor ideia do que ele estava querendo dizer, distraído com o que restava do seu omelete na boca. - Você sabe disso, não é? Que ninguém faz ideia de onde você esteve durante esse tempo.

Ele largou, enfim, os talheres de forma barulhenta e desajeitada. Deu um gole longo no copo delicado cheio de suco de pêssego que Kyle lhe havia servido, até então intocado. Um pouco do líquido manchou seu lábio superior, mas ele não se incomodou em limpar. Repousou o copo novamente na bancada, de maneira agressiva que teria provocado um estrondo se Kyle não tivesse posto, sob o prato dele, um jogo americano de bambu.

-Talvez você só tenha perguntado pras pessoas erradas. - Disse casualmente, levando o dedo à boca para tentar tirar a salsa presa entre os dentes.

Kyle o encarou durante algum tempo com uma expressão que não revelava totalmente, mas insinuava uma espécie de culpa por trás do franzimento das sobrancelhas. A pergunta seguinte saiu tranquila, lenta, como um adulto que fala com uma criança.

-Por que você está morando num carro, Kenny?

-Por que você acha, Kyle? - O loiro retrucou irritadiço, coçando o pescoço. - Não era exatamente a minha primeira opção de vida.

-Mas não pode ser a única. Você tem gente pra te ajudar, não tem?

-Ninguém que tenha uma porra de um loft imenso com geladeira de duas portas e Picasso na parede, não.

-Ei. - O ruivo sussurrou em um tom suave, esticando cuidadosamente a mão pelo mármore para tocar o braço de Kenny que descansava sobre a bancada, umedecendo os lábios em hesitação, sentindo-o como um bicho selvagem acuado que poderia correr dali a qualquer momento, derrubando tudo que houvesse pela frente. Para sua surpresa, ele não se moveu. Ignorou o toque e permaneceu com seus olhos hipnotizantemente azuis focados nos de Kyle. - Eu sinto muito. Eu... Só quero entender. Como caralhos isso aconteceu com você e nenhum de nós soube de nada?

-Tem certeza que vocês não souberam? De verdade?

Kyle recuou com a mão alguns centímetros, observando enquanto o dedo indicador do loiro se erguia à sua frente, a unha roída e imunda, traços de sangue seco e escurecido em torno da cutícula.

-Porque se eu entendo alguma coisa dessa bosta de cidade é que as notícias correm. - Kenny prosseguiu, estreitando os olhos. Havia cinismo em toda a expressão dele. Não levantava a voz e não se alterava para falar, apesar de seus olhos permanecerem agressivos o bastante para soar como se estivesse gritando. Era difícil encará-lo. - Duvido muito que você ou os seus amigos acreditassem que eu tinha ganhado na loteria e tava no Caribe curtindo a vida.

Os lábios do ruivo se separaram para responder, mas ele se conteve, recolhendo as mãos para levá-las às têmporas para massagear calmamente, respirando fundo.

-Essas não são as duas únicas opções na vida de uma pessoa, viver no carro ou ganhar na loteria. Como isso aconteceu? Onde está a sua mãe, o seu irmão?

Foi o primeiro momento em que um sorriso transpareceu nos lábios de Kenny, um sorriso amargo e que veio acompanhado de olhos vermelhos, que não permitiram que qualquer lágrima fosse formada. Ele dobrou os braços e levou as duas mãos à nuca, inclinando-se um pouco para trás.

Fez uma longa pausa, deixando que um silêncio desconfortável se estabelecesse. Por um instante, Kyle pensou que ele fosse mentir.

-Minha mãe teve uma overdose. Já faz... Três anos. Pode ser cinco, eu não sei. Eu não tenho mais noção de tempo. - Ele viu nos olhos e nos músculos do rosto de Kyle a erupção de “meu deus”, “eu sinto muito”, “eu não fazia ideia” e todas as outras frases comuns que lhe embrulhavam o estômago quando precisava contar aquilo a alguém (o que não acontecia com frequência, é verdade). Antes que ele pudesse prosseguir com a reação previsível, o loiro o interrompeu. - E Kevin... Pode estar morto também, quem é que sabe? Quem é que liga, afinal? Gente como eu ou ele vai embora e ninguém percebe. É assim que acontece, Kyle.

Encarava fixamente o ruivo que parecia precisar tomar fôlego, fitando o nada, como se tivesse acabado de levar um soco na boca do estômago. Suas mãos estavam espalmadas no mármore para apoio. Imediatamente, ele se recompôs. Como os Broflovskis fazem.

-Porra, Ken. Por que você não me procurou? Nos procurou. Eu nunca imaginei que você estivesse...

Kenny franziu o rosto em uma careta de dúvida, gesticulando com uma das mãos.

-Te procurar? Como? O que você tem a ver com isso?

-Eu podia ter te ajudado. Mesmo que você tivesse um lugar pra ficar, você... Você perdeu sua mãe. Não se pode passar por isso sozinho. Ninguém teria virado as costas pra você.

-Então eu deveria ter passado com gente com quem eu nem falava há anos porque uma vez, há uma vida, nós fomos amigos? O que eu ia querer batendo na tua porta? Eu nem sabia se algum de vocês tinha voltado pra South Park. E sinceramente, eu tava cagando pra isso. - Ele aguardou alguns instantes esperando por uma reação do ruivo, mas não houve nada. Kyle apenas endireitou o tronco e assentiu devagar com a cabeça. Kenny completou. - Vocês não pensavam mais em mim, eu também não pensava mais em vocês.

Era mentira.

Kenny pensava constantemente nos três garotos com quem tinha dividido sua infância, parte de sua adolescência, mas algo dentro dele sempre lhe deixou claro que uma separação seria natural porque Kenny não teria a mesma vida que eles. Não iria para a faculdade. Não sairia de South Park. Não teria profissão, não teria as experiências normais de um jovem adulto porque precisaria trabalhar desde os quinze e os outros não. As vivências banais de seus ex-amigos; os relacionamentos fulgazes, as festas, a bebedeira, as irresponsabilidades, os estudos, os estágios, os filmes, os jogos de futebol, de baseball, o crescimento profissional, os namoros sérios, nada disso existiria para ele. Nunca teve esperança do contrário. Não podia negar que, apesar da preparação prévia, o rompimento que se iniciou no ensino médio foi uma das coisas mais dolorosas que já viveu – pelo menos até aquele momento, enquanto ainda era jovem e fraco – mas Kenny McCormick sobreviveu ao rasgo entre ele e seus amigos e sobreviveria a coisa muito pior. Enterrou aquelas pessoas como elas precisavam ser enterradas. A coisa começou despretensiosamente, quando os meninos tinham idade para sair e Kenny nunca estava nos mesmos ambientes porque nunca tinha dinheiro para estar. No começo, Stan e Kyle tentaram fingir que aquilo não significava nada, enquanto Cartman tentava, de sua forma grosseira, aliviar a própria condição com as piadas de mau gosto. Mas quando começou-se a estudar as possibilidades de faculdade, quando os objetivos de vida e os planos começaram a se concretizar, ainda que remotamente, Kenny encontrou-se desconexo daquelas pessoas com as quais havia dividido absolutamente tudo. E nenhum deles pareceu perceber.

Kenny jamais os culpou por isso. Era fácil, na condição leve e positiva deles, acreditar que aquilo não tinha importância. Era fácil se envolver de tal forma pelos próprios projetos, pela excitação do início da sua vida adulta, suas prioridades, e não se dar conta dos afastamentos. Porque Stan, Kyle e Cartman tinham algo para o qual olhar quando o rompimento daquela amizade aconteceu. Kenny não tinha. Sabia que os três também não tinham mais a mesma dinâmica, a mesma proximidade, o mesmo tempo disponível para ser o que eram antes. Nenhum deles parecia realmente ligar para isso, porque sentiam como algo garantido para a vida inteira.

Tão garantido que Kyle o encarava nos olhos depois de anos e falava, genuinamente, como se ainda o considerasse um amigo. Aquela afeição no rosto do ruivo era o que mais machucava.

-Eu tenho um loft grande com geladeira de duas portas. Eu não tenho nenhum Picasso na parede, mas eu posso tentar arrumar um se você fizer absoluta questão.

O loiro ergueu a cabeça, distraído, encarando-o como quem havia acabado de despertar de um transe.

-O quê?

-Eu não vou te deixar dormir mais naquele carro, Ken.

-Você não tem que deixar porra nenhuma.

Kyle apoiou os cotovelos na bancada para se inclinar sobre ela, afastando o óculos, aproximando o rosto do de Kenny, encarando o hematoma roxo-esverdeado que ele levava na bochecha. Seu estômago se contorceu ao imaginar como ele teria conseguido aquilo.

-Você não precisa viver desse jeito. Nós vamos pensar em alguma coisa. Por enquanto, você pode dormir aqui. Você não tem alergia a gato, tem?

O loiro deixou os braços caídos entre as coxas, sentado com a coluna torta, as pernas abertas, franzindo o lábio pensativo. O que brotou nos seus lábios, por um momento, foi a insinuação de um sorriso.

-Claro que não. Você não lembra como eu ficava chapado com mijo de gato?

A lembrança foi tão inesperada que o ruivo precisou cobrir a boca ao soltar uma risada espontânea, mas contida, balançando a cabeça negativamente.

-Que horror, Kenny. - Comentou com um sorriso largo.


 

* * *


 

Kenny há muito havia se desfeito do próprio orgulho e não acreditava que um homem em sua condição poderia se dar a esse tipo de luxo. Não tinha qualquer problema em aceitar moedas de estranhos que lhe colocariam uma coxinha no estômago ao fim do dia. Mas ali, estava lidando com algo diferente. Não respondeu nem que sim, nem que não para a proposta de Kyle. Não lhe pareceu decente decidir qualquer coisa no momento. Também não demorou muito para voltar ao seu estado recolhido, como se já tivesse gasto todas as palavras que tinha para oferecer naquele dia. No momento, encontrava-se em uma banheira cheia de água quente e espuma na superfície, com a cabeça recostada, os olhos fechados, contemplando uma sensação que nunca pensou que experimentaria. Estar imerso em uma banheira era a coisa mais deliciosa que já lhe havia acontecido desde o último boquete que recebeu.

Estava acostumado com a sujeira. Com um espaço limitado, estreito. Com manter-se torto em tempo integral para se encaixar naquele Fusca pequeno, desconfortável. Então, a sensação de esticar os pés e apoiá-los na outra extremidade da banheira, mexendo os dedinhos lentamente, espreguiçando-se ao som da água com cada movimento seu, o cheiro agradável e a espuma, o calor, o conforto, tudo parecia terrivelmente fora de lugar. Ele não pertencia a um momento tão íntimo de relaxamento, de limpeza. Não tomava banho há muito, não fazia a barba direito – embora tivesse uma gilete no banco de trás de seu carro – e jamais tinha entrado em uma banheira em toda a sua vida. Seu coração chegava a bater mais acelerado com toda a desconfiança daquela situação.

Kenny encarou as próprias mãos, não mas tão encardidas, para fora da água. Analisou-as como um homem que as vê pela primeira vez.

Kyle havia lhe preparado aquele banho sem dizer nada, avisando-lhe somente quando a coisa toda já estava lá esperando por ele, tão convidativa. Enquanto o ruivo fazia isso, Kenny teve a oportunidade de conhecer o gato. Seu nome era Pollock, que fazia referência a um artista do qual Kenny jamais ouviu falar. Era um angorá quase que completamente branco, a única exceção era uma das patas manchada de cinza. Tinha um olho extraordinariamente verde e o outro extraordinariamente azul. O rabo era cheio, farto, o peito peludo e vistoso, movendo-se com uma elegância sublime pela sala. Kenny se sentou no chão para conversar com ele e Pollock não hesitou ao roçar a cabeça contra a mão carinhosa do loiro, contrariando sua imagem arrogante.

Foi estranho se despir naquele banheiro fino, enfeitado com margaridas sobre um balcão onde estava a pia quadrada suspensa, tudo em mármore preto, os ladrinhos do chão extremamente brancos. Além da banheira, havia uma ducha também. O espelho acima da pia era imenso e revelava o corpo nu dele de formas que ele não se dava conta há muito tempo.

Aquela era a casa de um estranho e parte dele gostaria muito de levantar daquela banheira, juntar suas roupas imunda do chão e voltar para o seu carro que estava estacionado lá embaixo – não mais em frente ao portão – com toda a sua vida dentro. Era confortável o desconforto daquele Fusca. No entanto, ele permaneceu mais de quarenta minutos de molho naquela banheira, com as pontas dos dedos completamente enrugadas, pensando na idiotice que seria recusar uma cama quente para dormir pelo menos uma noite. Nem se lembrava mais de qual era essa sensação.

Quando decidiu sair, Kenny levava as roupas amassadas debaixo do braço e tinha a toalha enrolada na cintura. Mal havia secado os cabelos e o peito, de onde ainda escorriam lentamente gotas mornas de água. Não fazia sentido vestir a mesma roupa e se sujar novamente. Levou algum tempo para se habituar à sensação de estar limpo, mas era indescritivelmente saborosa. O loiro levou a mão livre pela parede para roçar a palma na textura estranha da parede branca do corredor enquanto se dirigia à sala, buscando Kyle com o olhar.

Mas não foi Kyle que encontrou.

Levou alguns segundos para reconhecer a figura a alguns metros dele, que havia acabado de entrar no apartamento e agora estava ali, de pé em frente ao sofá, com uma maleta aberta sobre ele, segurando alguns papeis nas mãos e estudando-os com toda a sua atenção, de forma que demorou a erguer os olhos para a criatura semi-nua que emergiu da porta de arco que conduzia ao corredor. Mas o reconheceu, naturalmente; o homem era alto, negro, forte, com um dos rostos mais belos que Kenny já vira, o cabelo meticulosamente cortado, vestindo uma camisa azul clara que tinha os dois primeiros botões abertos.

Se Kenny tivesse sido minimamente mais observador, e não tivesse focalizado e se distraído tanto na grandiosidade daquele apartamento, teria percebido as fotografias daquele mesmo homem na estante, na mesa de centro, ao lado da luminária. Fotos dele e de Kyle abraçados em Roma, em Florença, bebendo vinho em um cruzeiro na Argentina, na neve, em South Park.

Token sentiu a presença de alguém parado, de pé, encarando-o. Levantou a cabeça preparado para ver Kyle Broflovski saindo do banho, mas em vez disso, lá estava Kenny McCormick de toalha observando-o com o rosto levemente deitado de lado, com uma ruga entre as sobrancelhas, os lábios levemente entreabertos. Seus olhos se arregalaram. Quase que simultaneamente, Kyle gritou da cozinha:

-Token, é você?

Ninguém respondeu durante longos segundos.



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