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História Unwell - Mousse de maracujá, bebê e reunião


Escrita por: caulaty

Capítulo 4 - Mousse de maracujá, bebê e reunião


    -Entre. - Kyle gritou para quem estivesse do outro lado da porta de mogno vermelho do seu escritório.

Estava sentado à sua mesa de trabalho fazendo anotações com uma caneta que tinha “Broflovski” gravado em letras douradas. Seu pai sempre trazia canetas personificadas quando vinha visitá-lo no trabalho. Kyle não sabia ao certo se achava isso prepotente ou um tanto adorável, de um jeito ridículo que só os pais conseguem ser. A caneta não era tão boa assim.

Quem abriu a porta foi Stanley, o que não foi surpresa tão grande, visto que Kyle conhecia até mesmo o jeito com que ele batia em uma porta para anunciar sua chegada. Parou para olhar o relógio analógico sobre sua mesa, logo ao lado de um peso de papel em forma de globo terrestre e de uma foto emoldurada de si mesmo com Token em Stark's Pond quando o lago estava congelado, no inverno anterior. Faltavam quinze minutos para o meio dia (catorze, agora). Stan deveria estar no trabalho.

Ele vestia uma camisa de botões azul e tinha o cabelo amassado pelo gorro que trazia em mãos, o casaco mais grosso enroscado no braço forte, cujos pelos negros estavam um pouco à mostra pela manga dobrada até metade do ante-braço. A gola estava torta e Kyle sorriu ao olhar para ele, tomado por uma vontade imensa de ajeitá-la.

-O que você está fazendo aqui? - Perguntou ao seu melhor amigo, repousando a caneta sobre o topo da folha que continha uma relação de quadros e seus respectivos valores.

-Quer almoçar comigo?

Stan largou o casaco e o gorro sobre o divã do escritório com familiaridade. Conhecia aquele ambiente de cor, inclusive chegara a passar duas ou três noites naquele divã em situações emergenciais, bêbado e desorientado. Fazia um ano e meio que Stan não encostava em uma bebida de teor alcoólico. Trabalhava como residente no hospital, o mesmo onde Token fazia sua renomada carreira como cirurgião cardiologista. Stan tendia muito mais ao ramo da pediatria. Tinha uma filha de dois anos, mas não era casado; morava em um apartamento bagunçado com seus dois adoráveis cachorros, um labrador e um pug. Estava sempre com uma namorada diferente, e por mais que cogitasse se casar com todas elas em um momento ou outro, Kyle acreditava que ele não queria realmente se comprometer. Se não o fez com a mãe do seu bebê, não faria com nenhuma outra mulher tão cedo.

Token e Stan desenvolveram uma amizade muito mais profunda do que Kyle poderia esperar, o que era natural, tanto pela convivência do trabalho quanto por dividirem o posto de homem mais importante na vida de Kyle. Às vezes, essa conexão entre os dois chegava a ser um pouco incômoda, como em momentos como este em que Stan o sondava antes de ir direto ao ponto.

Kyle revirou os olhos e ignorou a pergunta, levantando-se de sua cadeira reclinável.

-Token te contou, não foi?

Mesmo com tantos anos de convivência, Stan ainda conseguia se surpreender quando era pego de surpresa dessa forma. Assemelhava-se a uma criança que se esconde atrás da cortina com os pés de fora e tem certeza absoluta de que ninguém pode vê-la. Kyle apoiou um braço na mesa, de pé, com uma das pernas flexionadas, e o encarou com as sobrancelhas erguidas.

-Você não vai reagir como se ele ter me contado fosse uma coisa ruim, vai?

-Stan...

-Olha, ao contrário do que você tá pensando, eu só vim conversar. Eu fiquei... Atordoado, pra dizer o mínimo.

O ruivo cruzou os braços em frente ao peito e encarou o tapete macio cor de gelo que complementava a decoração simplista do escritório. Stan sentou-se bem ao lado de onde havia posto seu casaco, esfregando o rosto como quem se arrepende de não ter preparado um discurso antes e tropeça nas palavras.

-É. É como alguém que volta dos mortos.

E isso era verdade. Não tinha muita vontade de discutir aquele assunto em particular com Stan porque sabia como ele pensaria em todas as prioridades erradas primeiro, como Token fez. Esse foi o motivo de não ter telefonado ainda, ele mesmo, para o melhor amigo, afim de contar sobre o encontro inesperado com aquele borrão da infância dos dois, que um dia foi tão importante quanto qualquer um deles. Conhecia Stanley bem o suficiente para prever a preocupação que tomaria conta dele, uma preocupação muito mal direcionada (pelo menos na opinião do ruivo).

Foram almoçar juntos em um restaurante pequenininho na mesma quadra da galeria de arte onde Kyle trabalhava. Era onde ele costumava comer diariamente porque tinha uma variedade absurda de salada, o que era conveniente para os dois; Stan era vegetariano e Kyle estava sempre com uma dieta nova – que acabava burlando com o mousse de maracujá maravilhoso do restaurante como sobremesa. Geralmente pegavam uma das mesas da varanda, mas já estava frio demais para isso naquela época do ano. O prato de Stan sempre tinha uma quantidade impressionante de comida. Era um rapaz grande, é verdade; na adolescência, Stan se apaixonou pela natação e isso construiu uma musculatura de aço, alargou suas costas e o peito, deixando-o com braços intimidadores que não faziam qualquer jus à sua doçura. Ele era como um cachorro grande e desajeitado. Kyle sempre sorria com esse pensamento.

-Então. - Stan quebrou o silêncio da mesa, limpando a boca com um guardanapo. - O que aconteceu?

-Ah. Isso é bem difícil de explicar. Pra ser honesto, tem muita coisa que eu mesmo ainda não entendi. - Kyle deu um gole longo no suco de laranja antes de prosseguir. - Ele tem vivido na rua. Em um carro, uma merda de um Fusca, por sabe-se lá quanto tempo. É horrível, Stan, puta merda. - Desde que se tornara um adulto responsável, Kyle usava palavrões com uma frequência muito menor que em sua adolescência; exceto quando estava nervoso. Aí toda a boa educação judaica que seus pais lhe deram ia pelo ralo rapidamente. Seus olhos estavam quase opacos; era visível que aquelas palavras eram completamente sinceras, tanto que o estômago de Stan se contorceu e ele perdeu o apetite.

-Olha só. - Stan respondeu em voz baixa, ajeitando-se desconfortavelmente na cadeira. - Eu tenho certeza de que isso tudo mexeu muito com você. É natural, ele era nosso amigo. Só... Calma, tá bom?

-Eu não sei o que o Token te disse, mas por favor, não me vem com discurso demagogo sobre como eu preciso tomar cuidado.

-Não é isso, Kyle. Meu Deus, só pensa um pouco sobre isso. Eu não disse que você não deve ajudar, é óbvio que deve, nem o Token pensa diferente. Mas você sabe como você fica.

-Como eu fico?

Stan gaguejou por um momento, desviando o olhar para as samambaias penduradas na parede. Era uma parede bonita de tijolos; toda a decoração do restaurante era agradável. Ele engoliu seco, esfregando a testa com a mão, o cotovelo apoiado na superfície da mesa. A toalha era branca e rendada, com uma mancha de molho vermelho. A mãe de Stan sempre disse que ele comia como uma galinha, espalhando tudo para fora do prato.

-Você fica emocional. Eu entendo, é uma situação emocional. Só que... Eu tenho medo que você esqueça que não conhece mais ele. Que ele é um estranho. - Kyle revirou os olhos imediatamente, como Stan previa que ele fizesse. - Ele é, Kyle. - Repetiu pacientemente, sem alterar a voz. - E não só isso, eu sei que o Kenny não é ruim, mas ele não está num estado normal. - Novamente, fez uma pausa longa que Kyle não fez questão de interromper com alguma resposta. Stan considerou cuidadosamente antes de colocar aquele tipo de informação em pauta, mas decidiu que era apropriado. - Token me disse que vocês encontraram Olanzapina no carro dele. Ele te disse o que isso quer dizer?

Kyle cortava violentamente o pedaço de peito de frango que havia em seu prato, franzindo o rosto em uma careta de empenho.

-Stan. - Respondeu em um tom bastante sério, espetando o garfo no pedacinho de frango que logo levaria à boca. - Algumas pessoas tomam remédio porque isso as ajuda, faz com que elas se sintam melhores. É só isso que quer dizer. E vocês fazerem qualquer juízo de valor em cima do que foi prescrito pelo médico dele é muito, muito sujo. Especialmente pra dois médicos.

-Não é juízo de valor, Kyle, para com isso. Ele tem uma... Uma condição. Eu já disse que isso não o torna uma pessoa ruim, mas eu tenho medo de como você tá disposto a ignorar isso. Não é só pelo remédio, você sabe que não. É pelo que ele fez.

Kyle suspirou fundo. A comida já estava esfriando e ele ainda não havia dado conta nem da metade do que havia em seu prato. Deu mais um gole no suco e pensou em pedir outro. Stan voltou a comer em silêncio. Uma tensão esquisita tomou conta da mesa por longos instantes, enquanto cada um deles ponderava quietamente sobre a situação. Stan sempre soube falar de forma didática, irritantemente calma, mas o hábito só piorou depois que Olivia – sua filhinha – nasceu.

-Eu ainda não entendo como ele foi parar na rua desse jeito. - Kyle disse finalmente, cortando um pequeno tomate cereja ao meio. - Ele não conversa comigo sobre isso, mas eu vejo como ele precisa, sabe? Ele precisa muito se abrir com alguém, mas acho que ainda não consegue. - Fez uma pausa mais tranquila, encarando o amigo do outro lado da mesa. Stan ergueu os olhos para ele quando se deu conta de que era observado. - Talvez uma visita sua ajudasse. Sabe, resgatar um pouco de quem ele era antes disso tudo, de quem ele podia ter sido se nós não tivéssemos...

-Ei. Para com isso. Nós não tínhamos como saber pelo que ele tava passando.

-É, mas você não sabia? Pelo menos bem lá no fundo? Quando ele me vinha em mente, eu dizia a mim mesmo que ele devia estar bem por aí, longe, em alguma outra cidade... Ele sempre quis sair de South Park. E o Kenny não é o tipo de pessoa que eu imaginaria assim à mercê do que lhe acontecesse.

-É, ele sempre foi cheio de recursos. - Stan comentou com um sorriso nostálgico, largando os talheres cruzados sobre o prato e checando o relógio antes de apoiar os cotovelos na mesa, unindo as mãos em frente ao rosto.

-Mas por mais que eu não quisesse acreditar nas coisas que diziam por aí, bem no fundo eu sabia que era verdade. No mínimo, eu sabia que a vida devia estar sendo bem filha da puta com ele.

Stan coçou a nuca e, então, correu a palma pelo rosto para esfregá-lo preguiçosamente, tentando espantar uma dor de cabeça que se anunciava. Logo, teria que voltar ao trabalho. Nem deveria estar fazendo aquela pausa, mas depois da conversa que teve com Token ao telefone, acreditou que a situação fosse emergencial. “Perturbado” seria a palavra mais adequada para descrever como ele se sentiu quando soube que seu amigo de infância, Kenneth McCormick, estava não apenas vivo e passando fome, mas também recolhido no apartamento de Kyle. Token era um homem calmo, mais calmo que o próprio Stan, mas era perceptível em sua voz um desconforto – um nervosismo, até – ao falar sobre a teimosia irrefutável de Kyle e como ele estava cego para qualquer coisa além da própria culpa. Ali, diante de Kyle, Stan encontrou-se em contato com seu próprio sentimento de redenção. E saudade. Algo que não esperava sentir, e no entanto estava ali, claro e presente: sentia saudade de Kenny.

-Como é que ele está? - Perguntou, dando-se conta de que, até aquele momento, não havia se dado ao trabalho de demonstrar interesse no estado do loiro.

Kyle repartiu os lábios quase que de forma imediata para responder, mas acabou por selá-los, dando à pergunta um ou dois segundos.

-Tem momentos em que ele parece tão são. Quase sempre, na verdade. Eu sei que isso não é a mesma coisa que estar bem, mas... - Gesticulava com o garfo, mastigando enquanto pensava. - Ele é muito forte, cara. Muito forte.

-Acho que eu gostaria de vê-lo. - Stan disse, tentando ignorar como seu sistema digestivo se contorcia diante da ideia. Não gostaria de admitir em voz alta, mas aquilo o apavorava.

 

* * *

 

    Os três sabiam que aquilo tudo seria esquisito, mas não tinham dimensão do quanto até que o momento chegasse.

Kenny estava na cozinha quando Kyle chegou, anunciando que estava acompanhado por alguém que gostaria de vê-lo. É certo que aquilo foi ainda mais difícil para o loiro, que foi pego de surpresa e encurralado para aquela conversa sem qualquer preparo posterior. Mas seu semblante ainda era tranquilo, muito mais que o de Stanley, que esfregava as mãos suadas uma na outra. Kenny franziu as sobrancelhas, quase como se não o reconhecesse imediatamente. Tinha uma faca cheia de manteiga na mão, um pão francês cortado ao meio sobre um dos pratos quadrados arrogantes de Kyle. Sua reação imediata foi largar a faca sobre o pão e lamber o polegar um pouco sujo de manteiga. Sorriu, mas era um sorriso nervoso, um tanto desagradável.

Stan parecia um homem de verdade pela primeira vez desde que Kenny o conhecera. Talvez isso fosse real para os três. Estava escrito na face dele que Stan trabalhava horas a fio, porque tinha aquela expressão cansada que todos os médicos em início de carreira têm. Continuava bonito como sempre foi, é claro, daquela maneira inocente de quem não faz ideia do quão belo é realmente. Kenny sempre achou isso muito engraçado a respeito dele. Quanto mais encarava o jeito esquisito de Stan, que aproximava-se inseguro sempre um pouco atrás de Kyle, mais contente se sentia por vê-lo de novo. Stan tirou o gorro e correu os dedos pelo topo da cabeça, revelando alguns pouquíssimos fios grisalhos que brotavam do couro cabeludo.  Isso só deixava o desgraçado ainda mais charmoso.

Kenny se aproximou antes que pudesse pensar a respeito do que estava fazendo. Entretanto, não foi brusco. Deu poucos passos à frente, arrastando os pés descalços no chão, sentindo como Stan reagiria. O outro permaneceu imóvel, com aquele brilho infantil nos seus olhos azuis tão gentis. Kenny não sabia ao certo se deveria estar furioso com ele. Guardou bastante rancor para aqueles dois homens nos últimos anos, mas naquele momento, parado de pé naquela cozinha, Kenny McCorcmick e Stan Marsh apenas se abraçaram mutuamente em silêncio.

Kyle fez café e Kenny terminou de preparar o pão que comeu de pé em frente à bancada, ainda em silêncio. Trocaram poucas palavras, poucos olhares. A parte estranha veio depois, quando os três se sentaram à mesa. Kenny acendeu um cigarro, mas antes perguntou se poderia, da forma mais educada que pôde.

-Kyle me falou que você é pai. - Kenny comentou de repente, tomando o cinzeiro de vidro que Kyle lhe entregava antes de sentar ao lado de Stan. - Eu achei que ele estivesse me sacaneando.

Stan abriu um sorrisão orgulhoso e um tanto idiota, erguendo um pouco a bunda na cadeira para alcançar o bolso de trás da calça, puxando o celular.

-Eu também demorei a acreditar. - Respondeu em uma tentativa de brincadeira, sem afastar os olhos da tela. De repente, mostrou o celular para Kenny com a foto de uma menina ruiva e sardenta sentada sobre uma motoquinha em forma de elefante, com o sorriso imenso expondo os dentes pequenininhos. Ela vestia uma jardineira azul e uma blusinha de margaridas, tinha presilhas nos cabelos encaracolados. - Ela tem dois anos.

-Eu só não sabia que o Kyle era a mãe. - Kenny respondeu com um sorriso sacana, bastante honesto, levando o cigarro aos lábios para tragar com uma risadinha quando Kyle revirou os olhos de sua maneira dramática. Apesar disso, o ruivo também não continha o sorriso espontâneo e aliviado. Era como se a parte mais grossa do gelo tivesse sido quebrada. - Mas eu devia ter desconfiado, do jeito que vocês são.

Stan ainda mostrou mais duas fotos, como os pais apaixonados costumam fazer. Kenny não pôde conter um suspiro de adoração para a foto em que ela tinha seis meses e abraçava o rosto de Stan, pressionando a bochecha contra a dele. Seu cabelo alaranjado ainda era ralinho e ela tinha um laço amarelo enfeitando a cabeça.

-Meu caralho, como ela é linda. Como ela se chama? - Kenny perguntou, abanando a fumaça do cigarro para que ela não fosse diretamente para cima de Stan.

-Lola. - Respondeu, enfim, repousando o celular sobre a mesa. - Eu nem acredito que ela já tem dois anos. Passou tão rápido.

-É, a gente tá ficando velho. - Kyle comentou enquanto se levantava para tirar o jarro de café da cafeteira, o cheiro delicioso contaminando todo o ambiente.

Ninguém fez piadinha alguma a respeito. Ainda havia um desconforto muito presente, tanto que Stan e Kenny não faziam contato visual durante muito tempo. Kyle se distraía tirando as xicaras do armário e consultando quem é que beberia com leite, o que os dois recusaram. Caíram novamente em silêncio, beberricando da xícara distraidamente até que Kyle voltasse a se sentar, visivelmente ansioso. Segurava sua xícara com duas mãos, umedecendo os lábios de forma compulsiva; até sua respiração estava um tanto alterada.

-Então, como é isso? - Kenny disse de repente, encarando os outros dois. Era quem mais praticava o hábito de reconhecer logo o elefante na sala.  - O que te trouxe até aqui, curiosidade mórbida?

Seu tom de voz não era exatamente amargurado, mas havia uma inclinação sutil à passivo-agressividade. A pergunta, bem como a expressão de Kenny, era provocativa. O loiro assoprou para o alto a fumaça do cigarro e apoio o cotovelo sobre a mesa, oferecendo um sorriso estranho ao abaixar o queixo. Seus dentes apareciam entre os lábios, a língua brincando de correr sobre eles e por dentro da bochecha. Stan franziu a testa e lançou um olhar breve na direção de Kyle, com um semblante preocupado.

-Como assim? - Stan perguntou, incerto se era uma boa escolha.

-Bom, eu sei que você não estava exatamente empolgado pra me ver nesses últimos anos. Nenhum de vocês dois estava. Então pra que essa reuniãozinha agora?

-Cara, não… Não é por aí.

-O Stan se preocupa tanto com você quanto eu, Kenny. Nós dois nunca deixamos de pensar em você.

-Eu não estou acusando vocês de nada, eu só quero entender esse cerimonialismo todo. Eu não conheço mais vocês, vocês também não me conhecem, não vamos fingir que nós ainda somos amigos ou que nós ainda ligamos um pro outro.

-Mas eu ligo sim pra você. - Stan respondeu em um tom mais incisivo, afastando um pouco a cadeira para trás. Kyle tinha o braço apoiado no encosto da cadeira dele, mas removeu com o movimento. Stan gesticulava com as duas mãos ao falar. As três xícaras de café continuavam intocadas sobre a mesa. - E eu duvido que você não sinta o mesmo, você me abraçou quando eu cheguei.

-Porque eu sou educado. Não é porque eu moro na rua que eu sou um ignorante. Eu cumprimento as pessoas, ué. Mas eu também sei que você - Ele ergueu o dedo indicador na direção de Stan. - não é mais o moleque com quem eu jogava bola na rua. Nem é o adolescente bêbado imbecil que bateu o carro do pai enquanto eu dormia no banco do passageiro. Você é pai agora, porra.

-E daí, Kenny?!

-Daí que você não tem que vir aqui aliviar a tua culpa porque você acha que abandonou o seu amigão de infância. Vocês não me devem nada.

-Não é questão de sentir culpa. - Kyle interferiu, mas falava ao mesmo tempo que Stan.

-Eu não vim aqui porque eu me sinto culpado.

Kenny desviou o olhar para cima com um risinho nos lábios, coçou o pescoço calmamente enquanto segurava o cigarro na altura das clavículas, a fumaça subindo e se dissipando no ar. Kyle começou a ficar extremamente incomodado por aquele cigarro, mas sabia que era uma forma de Kenny se manter mais calmo. Não disse nada a respeito. O loiro começou a chacoalhar a cabeça, rindo amargamente agora.

-Parem de mentir na minha cara. Eu aposto que você nem queria me ver pra começo de conversa, Stan. Tenho certeza absoluta de que ele te fez se sentir responsável pela minha vida estar uma merda e você é tão honrado, não aguentou.

-Cara, você acha ruim que eu queria ter ficado do teu lado?! - Stan esbravejou mais alterado, levantando-se.

Kyle começou a massagear as têmporas, agoniado pela falta de espaço para se posicionar naquela discussão.

-E por que não ficou? - Foi a resposta imediata de Kenny, que se ajeitou na cadeira e apoiou o pé descalço sobre a de Stan, que acabara de ficar vazia. - O que te impediu de querer isso quando a Karen se matou?! Quando a porra da minha mãe teve uma overdose na minha frente? Quando o bosta do meu pai foi preso? Ou melhor, quando ele largou na nossa mão uma caralhada de dívida e a minha mãe tava ocupada demais se afogando no próprio vômito pra cuidar dos três desgraçados que ela colocou no mundo?

-Kenny… - Kyle falou baixo, querendo se aproximar dele. Era quase assustador o quão calmo Kenny se mantinha para listar todos os eventos que encaminharam sua vida para a situação em que estava agora. Exceto, é claro, quando ele falava da irmã. O estômago de Kyle se revirava ao olhar dentro do oceano que eram os olhos de Kenny, tão resignados, tão fortes. Havia sim uma insinuação de insanidade neles também.

-Sabe onde você estava? - Ele prosseguiu, diante do silêncio de Stan, que permaneceu de pé com as mãos nos quadris, fitando-o respeitosamente. - Você estava cursando medicina. - O loiro parou para dar uma última tragada no cigarro, fechando os olhos, respirando fundo ao liberar a fumaça com satisfação. Esmagou a bituca no cinzeiro e pegou a xícara de café pela asa. - Estudando que nem um louco pra fazer valer o dinheiro suado que os teus pais investiram em você. E você… - Ele voltou sua atenção ao ruivo. - Você estava estudando belas artes e se apaxonando pelo amor da sua vida ou qualquer porra que o valha. Isso pode ser um choque pra vocês, mas eu sempre soube que a nossa amizade tinha data de expiração. - Kenny deu um gole longo no café preto, deixando o silêncio se assentar na cozinha por alguns segundos. Lambeu os lábios, saboreando as gotas de café preto forte que ali ficaram. - Como eu disse, vocês não têm que sentir culpa por viver a vida de vocês. Vocês também eram só moleques. Não podiam ter feito grande coisa mesmo.

-Não. - Stan disse de repente, estreitando os olhos. Deu um passo à frente. - Foda-se essa merda, nós não éramos só coleguinhas de escola. Nós deveríamos… - Parou de falar de repente, pressionando a ponte do nariz com o indicador e o dedo médio. - Você sempre foi como um irmão pra mim, Ken.

Finalmente, pareceu haver um momento de fragilidade. Kenny pigarreou e desviou o rosto para a parede de ladrilhos, sem fazer qualquer menção de responder com alguma defensiva sarcástica. Kyle se sentiu mais confortável para erguer a mão e tocar o tornozelo dele, que descansava sobre a cadeira. Deixou ali um carinho despretensioso, observando-o beber o café de uma vez.

-Nós já falamos sobre isso. Não temos como mudar nada do que aconteceu. - O ruivo falou gentilmente. - Mas nós estamos aqui agora. Você não está mais sozinho.

-E eu não posso recusar migalhas porque eu sou um mendigo? É isso?

-É claro que pode. Você pode recusar o que quiser, mas nós gostaríamos que aceitasse o nosso apoio. É só por isso que eu trouxe o Stan aqui. - Kyle disse, erguendo os olhos na direção de Stan, que agora tinha os braços cruzados e estava mais próximo dos dois.  

Kenny não reagiu durante algum tempo. A demora causou aflição no peito de Stan, que engolia seco e massageava a própria nuca, incerto do que pensar. Era muito mais difícil se preocupar com o bem estar de Kyle exposto àquele homem instável agora que o tal homem tinha o rosto definido do seu amigo de infância que sofreu muito, muito mais do que merecia. E Kenny tinha razão, a culpa pesava fortemente sobre os ombros nessa hora. Mas mais forte do que isso era a saudade. É fácil não perceber que algo faz falta quando se está acostumado à sua ausência. Stan repousou a mão sobre o ombro de Kenny e apertou-lhe com firmeza, fazendo com que o loiro lhe olhasse de imediato.

-Você tem razão. - Stan disse. - Nós não nos conhecemos mais. Mas eu realmente gostaria de te conhecer.

Kenny balançou a cabeça e suspirou fundo, deixando sua xícara sobre a mesa novamente.

-Credo, Marsh, como você é brega.

Stan sorriu, assim como Kyle, e ambos aceitaram aquilo como um consentimento.



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