1. Spirit Fanfics >
  2. Unwell >
  3. Coquetéis de fruta, braços quebrados e beijos

História Unwell - Coquetéis de fruta, braços quebrados e beijos


Escrita por: caulaty

Capítulo 8 - Coquetéis de fruta, braços quebrados e beijos


O bar escolhido estava muito mais para um pub estereotipado, com decoração à la Poderoso Chefão, com uma iluminação propositalmente ruim para criar aquele tipo de clima em que as pessoas perdem qualquer tipo de inibição. Para Kenny, era o tipo de clima que o convidava a fumar entre quatro paredes. Esse definitivamente era um bar onde as coisas aconteciam. Não era permitido fumar lá dentro, bem como em nenhum estabelecimento público do Colorado, naturalmente. Como ele havia imaginado, era o tipo de bar que dava nomes engraçadinhos aos próprios drinques; nomes estes que precisavam ficar expostos em uma placa enfeitada sobre o balcão porque ninguém se lembraria de que eles renomearam a boa e velha margarita de “Cha cha cha”. Kenny achou a escolha de nome levemente racista, mas não bebia margarita, então não importava muito.

Ele só queria uma cerveja. E não dessas artesanais, escuras e esquisitas que custavam mais do que o seu Fusca, provavelmente. Não, ele queria uma cerveja industrializada, barata e americana.

Tinham acabado de chegar, então Kenny tentou não fazer julgamentos muito agressivos baseado somente na decoração brega que tentava fazer menção aos pubs londrinos, com o piso xadrez preto e branco, as paredes de tijolo propositalmente deterioradas, os quadros de filmes, o pequeno palco para músicos locais desvalorizados terem um espaço.

-Eu vou tentar ligar para o Stan. - Kyle avisou, depois de olhar em volta e perceber que o terceiro ainda não havia chegado. Enquanto buscava o nome de Stan nos contatos do celular, também já escolhia uma mesma mais isolada, sentando-se sem questionar se Kenny preferia outra mesa em algum local menos escuro. Mas Kenny não se incomodou. Achava bonitinho como Kyle nem se dava conta do quanto era mandão.

Depois de quatro toques, a voz de Stan surgiu do outro lado da linha:

-Alô.

-Ei. E aí, você já saiu de casa? A gente já chegou.

-Eu ia te mandar uma mensagem agora mesmo. - Sua voz parecia exausta. Havia um choro bem baixinho ao fundo. - A Lola tá com uma virose, eu não quis deixá-la com a babá.

-Ah, tadinha. Tomara que ela melhore logo. Mas a Nora não pode ficar algumas horas com ela?

Kenny brincava com o isqueiro em sua mão, confortavelmente recostado no estofado duro, as pernas bem separadas, como se estivesse em casa. Ou na casa de Kyle, que agora parecia ser sua também. Franziu a testa para o que Kyle estava dizendo ao telefone, curioso e preocupado ao mesmo tempo.

-Não, ela tem um encontro hoje com o namorado. Eu sei lá, só tenho o fim de semana com ela, se eu a levasse de volta pra Nora…

Nora e Stan namoraram durante apenas três meses antes de ela engravidar. Kyle não teve tempo de conhecê-la muito bem, mas já imaginou desde o princípio que eles não dariam certo enquanto casal. Não chegaram a ser um casal realmente sério, porque não era do interesse de nenhum dos dois, mas se gostaram muito durante aquele tempo. Disso, Kyle sabia. Nora era forte, objetiva e independente demais para dar certo com alguém como Stan. Era uma mulher de cabelo raspado, que não esperava por ninguém para tomar as próprias decisões, enquanto Stan era muito mais enrolado e emotivo. De qualquer forma, preservavam uma amizade linda, pois perceberam logo nos primeiros meses de gravidez que não seriam felizes juntos.

Para Kyle, Nora se parecia um pouco com Wendy. Para Wendy – com quem ainda mantinham algum tipo de contato, mesmo que ela não morasse mais em South Park - Nora se parecia um pouco com Kyle.

-Eu sei. Não, tudo bem, Stan. Pelo menos ela tem um médico em casa. Eu passo aí amanhã pra dar um beijo nela.

-Vem mesmo, ela vai adorar. Desculpa por não poder ir, eu queria muito, mas…

-Não precisa pedir desculpas. Qualquer coisa, me liga.

Com isso, eles se despediram e a atenção de Kyle se voltou ao garçom parado próximo à mesa com um pequeno bloquinho de anotações, encarando-o. Kyle não havia se dado conta da presença do rapaz até então. Pediu um copo de gim com limão enquanto guardava o celular no bolso novamente. Kenny tirou a jaqueta de couro e a deixou de lado no banco espaçoso, de estofado bordô.

Desde que Kenny se mudou para o apartamento de Kyle, não se lembrava de viver um momento em que se sentisse imerso na mesma dimensão de amizade que tinham quando adolescentes, daquela maneira despretensiosa de quem está junto porque quer estar. É lógico que, antes da ruptura entre Kenny e a maioria dos seus amigos, as coisas eram diferentes. Os dois, Kenny e Kyle, eram outras pessoas naquela época.

Provavelmente eles não teriam a possibilidade de rememorar a relação que costumavam ter se não estivessem fora daquele apartamento. Afinal, aquele ambiente era de Kyle. Kenny podia já se sentir à vontade para andar por aí sem camisa, fumar e deixar os tênis largados pela sala, mas isso não era por se sentir em casa. Depois de morar em um carro, era fácil para Kenny ficar confortável em qualquer lugar. Ali dentro da casa de Kyle, ele sempre se sentiria um convidado.

Ali, naquele bar fino que nada tinha a ver com ele, Kenny podia se esquecer um pouco de sua condição, beber inconsequentemente e petiscar batata frita. Depois de dois copos de cerveja artesanal cara, Kenny já se sentia como um rei.

Os dois fingiam que não, mas a ausência de Stan gerou um desconforto inicial. Pois quando se está sentado a uma mesa de bar, frente a frente com alguém, você precisa de assunto. Kenny e Kyle não tinham mais tido uma conversa relevante desde a situação com Craig, aquele momento delicado em que tanta coisa foi vomitada. A ressaca disso resultou em Kenny se fechando, muito mais quieto do que de costume.

Kyle ficou surpreso quando ele concordou em sair com ele e Stan.

Houve alguns vácuos de silêncio a princípio. Como moravam juntos, não sobravam muitas amenidades para preencher o vazio. Kenny batucava com os dedos na mesa e bebia em uma velocidade impressionante.

Todos os assuntos que vinham à mente de Kyle pareciam totalmente inapropriados; pensava em perguntar sobre os remédios que Kenny não estava tomando, sobre o psiquiatra que deu a prescrição, sobre o seu caso com Craig, até mesmo cogitou perguntar se Kenny não gostaria de procurar emprego, mas não encontrou forma de tocar nesse assunto sem parecer que gostaria que ele saísse de casa. O que nem era o caso.

-Eu queria conhecer a filhota do Stan. - Kenny disse de repente, para o alívio de Kyle, que estava dando um gole tão longo em seu gim que seus olhos chegaram a lacrimejar pela ardência na garganta. - Eu sempre soube que ele seria pai um dia.

-Ah, ela é tão linda. Eu fico tão babão com ela, imagina como eu seria com meus próprios filhos. Eles sentariam em cima de mim.

-Você e Token pensam em ter filhos?

Kyle começou a rir, mesmo sem querer. A ideia lhe era engraçada. Os olhos de Kenny brilharam em curiosidade e ele se pôs na beirada do banco, apoiando o queixo na mão, mostrando-se interessado na explicação que viria logo após aquela risada espontânea. Kyle deu um gole no drinque antes de prosseguir.

-Talvez um dia. Eu não sei, nem penso nessas coisas.

-Sério? Por quê?

Ele não pôde responder de imediato. Gaguejou um pouco, umedecendo os lábios; tinha as mãos sobre a mesa, alisando um guardanapo dobrado até que ele ficasse plano novamente, mantendo os olhos baixos. O burburinho no bar era confortável, o som de copos brindando e jovens jogando dardos, conversas bestas ou discussões passionais, tudo aquilo preenchendo o que poderia ser um silêncio estranho.

-Não sei… - Enfim, levantou a cabeça e encontrou os olhos azuis de Kenny, que pareciam tão calmos. Não havia julgamento na sua expressão. Kenny tinha o tipo de olhar que transmitia uma profunda confiança, como se ele já tivesse visto tanta coisa terrível e fosse incapaz de sentenciar alguém. Ele fazia o coração de Kyle bater mais devagar, mais tranquilo. - Nós nem decidimos ainda que é hora de morarmos juntos. Nós falamos sobre isso, claro, mas é tudo totalmente ilusório por enquanto. Sabe? Sei lá, nós somos muito individualistas, não consigo nos imaginar com filhos. A nossa carreira vem antes, nisso nós concordamos.

-Que engraçado. - Kenny murmurou sem perceber, a bochecha apoiada na mão, o que lhe dava um ar de criança. - Eu nunca pensaria nisso olhando pra vocês.

Kyle ergueu seu copo vazio – bem, cheio de gelo – para sinalizar ao garçom que lhe trouxesse outro gim. Ele compreendeu sem ter que se aproximar da mesa e interromper a conversa.

-O que você pensaria olhando pra gente?

-Hmm. - Kenny pensou a respeito, endireitando a coluna para se apoiar no encosto do banco, alisando sua própria barba malfeita. - O Token me parece um cara tradicional. Digo, tão tradicional quanto um veado pode ser. Mas talvez eu esteja viajando.

-Eu não entendi.

-Ah, cara, é que ele deixa coisas dele na tua casa, é sempre ele que vai lá, você dificilmente vai na casa dele. Ele parece te telefonar bem mais do que o contrário. Desculpa, mas eu fico o dia inteiro coçando o saco em casa, é difícil não notar essas coisas. Eu acho que ele quer sim morar contigo.

Então, o garçom interrompeu por um instante para trazer o gim de Kyle e recolher o copo vazio. Ele também deu uma olhada na long neck de cerveja que já estava quase no fim. Serviu o último restinho no copo de Kenny e perguntou se ele gostaria de outra; Kenny aceitou com um sorriso. O garçom não era um poço de gentileza, parecia mais exausto do que qualquer outra coisa, mas era educado o suficiente. Kyle dava muito mais importância para a qualidade de atendimento do que Kenny. O garçom era um rapaz asiático que parecia muito mais novo do que eles, apesar de não ser. Quando se afastou da mesa, Kyle tirou um momento para admirar suas costas largas e sua bunda, e o fez com tanta naturalidade que Kenny soltou uma gargalhada.

-Enfim. - Kyle disse sem vergonha alguma. - Você acha que eu não sou companheiro o suficiente? É isso?

Kyle era tão passivo-agressivo que era impossível dizer se ele estava, de fato, irritado ou não. Kenny imaginou que era assim que ele lidava com as questões no trabalho, tamanha foi a seriedade com que ele fez aquela pergunta absurda, prestes a encurralá-lo contra a parede. Metaforicamente. Ou talvez não.

-Eu não tô te julgando, cara. De verdade. E mesmo que eu estivesse, foda-se o que eu penso. - O loiro espalmou as duas mãos sobre a mesa primeiro, depois esticou o braço para tomar a garrafa de cerveja e entorná-la diretamente do gargalo, ignorando o copo servido à sua frente. A atitude trouxe um pequeno sorriso aos lábios de Kyle, mesmo que ele não soubesse porquê. - Você é que sabe do lance de vocês. Eu só falei disso porque… Eu acho que você já adotou um filho sem consultá-lo, sabe?

-Ah, você é meu filho? - Kyle perguntou com uma risada tão aberta, do tipo que ele não dava quando totalmente sóbrio. - Nesse caso, então use o seu copo como eu te eduquei.

Havia algo de malicioso nos lábios de Kenny; provocativo, talvez. Não era apenas o sorriso, eram também seus olhos azuis, a maneira com que reluziam quando ele aproximava a garrafa de sua boca novamente.

-Me obrigue. - Foi tudo o que disse antes de beber da forma rústica que sabia, com um tom muito semelhante ao que usava o tempo inteiro quando eram adolescentes. Mais da metade das coisas que saíam dos lábios de Kenny naquela época eram gracinhas, brincadeiras, provocações, sarcasmo.

Kyle apoiou a bochecha na palma aberta, sem perceber o sorriso idiota que tinha estampado no rosto. Logo, deu um gole inconsequentemente longo em seu gim e, então, abriu o menu que estava sobre a mesa, o plástico que o revestia cheio de gotas de água ou coisa pior. Queria alguma coisa mais doce. Já estava psicologicamente preparado para o comentário besta que Kenny provavelmente faria sobre ele escolher bebida de garotinha adolescente.

-Eu admiro isso em você, na verdade. - Kenny disse de repente, com os olhos presos no nada, como se pensasse em voz alta. - Que você não fique planejando a vida pensando em outra pessoa, sabe? Você sempre foi… Independente.

-Independente? Pelo amor de Deus, todo mundo sabe que isso é eufemismo pra egoísta.

Kenny encolheu os ombros.

-É, talvez. Mas não é culpa sua. - Ele passou a língua pelo lábio superior e esticou o indicador para apontá-lo na direção de Kyle. - É culpa da sua mãe.

Kyle quase cuspiu a bebida com o comentário. Secou a boca com o dorso da mão, ainda rindo contidamente, balançando a cabeça.

-E não é sempre culpa da mãe?

-No meu caso, é culpa do pai. - Então, bateu na mesa com a palma aberta, levantando-se. - Eu tenho que mijar.

Kyle tentou ignorar o pequeno aperto no coração que sentiu enquanto o observava se afastar. Eles não estavam longe do banheiro – era consequência de uma mesa isolada – e o ruivo pôde manter os olhos nele até que entrasse pela porta de madeira que tinha um homenzinho de bigode e cartola desenhado. Respirou fundo enquanto observava a maneira com que Kenny caminhava, como ele deslocava um pouco os ombros e tinha a cabeça levemente caída para frente, como suas costas largas se moviam por baixo do moletom preto. Ele tinha as mãos nos bolsos e um jeans folgado que revelava o quanto era magro, mas já havia ganhado um peso significativo desde que Kyle o encontrou dentro daquele fusca.

Sentado sozinho ali, com as mãos sobre a superfície fria da mesa, Kyle encarou o lugar vazio de Kenny no banco do lado oposto ao seu e começou a pensar. Umedeceu os lábios, mergulhado em uma lembrança específica que ele não sabia classificar como feliz ou triste.

Eles tinham quinze anos. Era perto do natal, foi um dos piores invernos que South Park já vira, e eles passaram a tarde inteira deslizando pelos montes de neve com nada além de uma caixa de papelão aberta. Stan, Cartman, Kenny e ele. Kyle podia se lembrar perfeitamente das queimaduras de neve em seu rosto, que ficou vermelho durante dias. Mas o sol estava lindo naquela tarde e Kyle pensava especificamente no momento em que Cartman não conseguiu frear e deu de cara em uma árvore com tanta força que toda a neve acumulada nos galhos caíram sobre ele. Os três passaram mal de tanto rir, Kenny chegou a se jogar na neve. Ele tinha uma gargalhada tão alta, tão livre, que chamava muito a atenção porque Kenny foi uma criança de poucas palavras, sempre escondido atrás daquela parca laranja horrorosa. Mas sua risada sempre foi contagiante, gigantesca. E Kyle adorava aquele som.

Lembrava-se com tanta vivacidade das barras de chocolate crocante barato que comeram depois, quase podia sentir o gosto. Mas a lembrança deliciosa daquela tarde estava atrelada ao que houve depois, quando o sol já estava se pondo, todo alaranjado. Kenny havia emprestado um livro de Kyle, mas o prazo para devolvê-lo à biblioteca vencia no dia seguinte e Kyle tinha pavor de atrasar a entrega de livros, assim como tinha pavor de infringir quaisquer regras em geral. Então, acompanhou Kenny até sua casa para buscar o livro.

O pai de Kenny estava sentado do lado de fora, cercado por latas de cerveja amassadas, em uma cadeira de praia velha. Mesmo com toda a experiência indo e vindo da casa dos Marsh, Kyle nunca tinha visto um ser humano tão embriagado quanto Stuart McCormick naquele dia. Assim que os viu, Stuart se levantou e começou a gritar como um demente que já repetira mil vezes para Kenny não trazer gente em casa, o quanto Kenny era inútil e não fazia porra nenhuma direito, que se ele queria fazer o que quisesse, que arranjasse um teto próprio. Kenny pediu para que Kyle o ignorasse quando Kyle parou, os pés congelados em frente ao portão. Mas quando percebeu que Kyle estava genuinamente assustado, aí sim a vergonha se mostrou em seus olhos. Stuart já estava de pé e atirando as latinhas ao chão com força, não gostando de ser ignorado. Kenny pediu para que Kyle fosse embora. Que ele mesmo devolveria o livro.

Naturalmente, a entrega do livro atrasou.

E no dia seguinte, Kenny apareceu com a mão direita enfaixada e um hematoma roxo no rosto, bem próximo ao olho.

Kyle apertou o copo em sua mão e entornou um último gole ardente que deu fim no gim de uma vez.

Ele fez o melhor possível para afastar tais pensamentos quando Kenny se sentou à mesa novamente, contando de um número de telefone que estava anotado na parede do banheiro masculino, mas Kyle estava distraído demais para entender.

-O que foi? - O loiro perguntou, estreitando os olhos.

-O meu copo esvaziou.

-Oh. Não precisa ficar triste, eu resolvo isso. - Kenny levantou um pouco a bunda do banco enquanto estalava os dedos no ar para chamar a atenção do garçom bonitinho. Kyle abriu um sorriso triste, abaixando os olhos por um momento, estudando o menu novamente. Quando o garçom se aproximou da mesa, Kenny começou a enrolar uma mecha do cabelo dourado em seu dedo indicador, olhando para o ruivo. - O meu amigo aqui vai querer… O quê?

Kyle ergueu o indicador para pedir um momento e tirou um pequeno estojo do bolso, aquele que guardava seu óculos de grau. Ele enxergava muito mal de perto e estava escuro. O garçom abraçou a bandeja redonda que carregava, batendo um pé no chão, tentando disfarçar a impaciência.

-Eu quero uma sangria. - Disse, com os olhos ainda no menu, ignorando o fato de que o bar havia batizado sua sangria de “Espanhola”.

-Mais alguma coisa?

Quando Kyle esperava alguma piadinha boba de Kenny, o loiro sorriu largo para o garçom e disse em alto e bom tom:

-Eu quero qualquer coisa colorida que tenha um guarda-chuvinha.

O pobre rapaz pareceu perdido. Kyle riu, fechando o menu, chutando Kenny de leve por baixo da mesa, mas seu pé acabou mais roçando pela perna dele do que propriamente chutando.

-Ele quer um cocktail Malibu, por favor. - O ruivo pediu por ele, e foi bom o suficiente para o garçom anotar em seu bloquinho brevemente e deixá-los a sós.

-Ah, eu quero? Você sempre escolhe o que os outros vão beber nos seus encontros? - Kenny perguntou, erguendo as sobrancelhas sugestivamente, apoiando a cabeça na mão, o cotovelo escorregando pela mesa, piscando devagar. Não estava tão bêbado quanto Kyle ainda, mas estava o suficiente.

-Você vai gostar.

-Eu nunca tomei nada alcoólico que eu não tenha gostado.

-Ótimo.

No pequeno palco do bar, alguns homens de, pelo menos, cinquenta anos arrumavam seus instrumentos. Provavelmente haveria uma apresentação. Kyle esperou silenciosamente que não fosse mais uma dessas bandas tentando desesperadamente simular o rock dos anos 80 com uma atitude de estrela em um palco de trinta centímetros. Randy Marsh já foi esse tipo de músico, muito tempo atrás. Felizmente, não era o caso naquela noite.

A banda parecia ser de folk, algo muito comum nas cidades pequenas do Colorado, onde havia regiões de vida pacata no campo. Kyle era uma pessoa muito mais urbana e pensava seriamente em se mudar para Denver, mas durante o tempo que viveu fora de South Park, sentiu saudade demais para se enxergar morando em qualquer outra cidade, mesmo uma tão próxima. Nunca se imaginou como o tipo de pessoa que criaria raízes desse tipo em uma cidade tão pequena e esquisita.

O vocalista parecia ser o mais velho de todos e tinha um chapeuzinho adorável; permanecia sentado em um banquinho com um violão em mãos. Começou com Copperline, uma música de James Taylor que a mãe de Kyle adorava. Tanto Kenny quanto Kyle tiraram um minuto para assistir à banda tocando, ainda que fosse aquele tipo de música de fundo que se pode facilmente ignorar.

-Você sabe que eu vou continuar encostado na sua casa até você me enxotar, né? - Kenny perguntou de repente, finalizando o resto de cerveja que ainda havia em seu copo, quando aquela da garrafa já havia terminado. - Se você estiver esperando pela minha força de vontade…

-Eu não tô esperando nada. E você não tem que ir a lugar nenhum. - Fez uma pausa breve. - Embora… Depois do que houve com o Craig, eu pensei que talvez você quisesse sair.

No dia seguinte à briga entre Kenny e Craig, Kyle acordou com um peso ruim sobre o peito e a sensação de que a casa estava vazia. Levantou-se apressadamente, descalço e com o roupão aberto. Viu a porta aberta do quarto de Kenny, a cama desfeita, mas não havia ninguém lá. Seu coração apertou de forma terrível, ele pensou que fosse vomitar. Gritou pelo nome de Kenny de forma mais desesperada do que pretendia, apenas para encontrá-lo fritando um ovo e fazendo café na cozinha, sem camisa, com a cara inchada de sono e as sobrancelhas franzidas pela reação exagerada do ruivo. Kyle não tentou explicar seu medo, apenas ajudou com o café da manhã e tentou seguir o dia normalmente.

-Pff. - Foi a resposta de Kenny enquanto repousava o copo sobre a mesa. Ele tinha muita dificuldade de usar o porta-copos que estava bem ali. Deixava a mesa cheia de círculos úmidos. Fazia isso em casa também. Kyle queria dar um tapa na cabeça dele toda vez.

-Não é tão absurdo assim, vá. Você parecia bem transtornado.

-É, eu pensei em voltar pra minha mansão no topo da montanha, mas aí… - Kenny recostou os dois braços no encosto do estofado e encolheu os ombros. - Pensei “melhor não, o Kyle vai sentir demais a minha falta”.

Kyle roçou os dentes pelo lábio, de leve.

-Se é uma questão de você não ter mais onde ficar, eu posso dar um jeito nisso.

-Você quer que eu saia?

-Não! Só estou dizendo, se você quiser ter mais espaço…

-Fala a verdade. Você quer que eu saia porque eu não uso porta-copo, né?

Isso já foi suficiente para aliviar um pouco da tensão nos ombros de Kyle. Ele já sentia um calor de dentro pra fora, uma sensação tão característica do álcool e tudo parecia mais fluido, mais fácil de lidar. Ele abriu o primeiro botão da camisa e respirou melhor.

-Você me pegou, é exatamente isso. Tem coisas que eu simplesmente não sei como lidar. - Respondeu brincando, rindo, sentindo o quanto suas bochechas já estavam coradas. Ele sempre ficava vermelho quando estava bêbado.

-Judeus não têm resistência nenhuma ao álcool, né? - Kenny comentou enquanto brincava com os palitos de dente disponíveis na mesa, formando uma casinha.

-Vai se foder.

Antes que o loiro pudesse dar uma resposta espertinha, o garçom cheio com dois copos extremamente coloridos e, quem diria, realmente havia um guarda-chuvinha no copo de Kenny. Por qualquer motivo que fosse, ele achou esta uma das coisas mais engraçadas do mundo e todo o bar pôde ouvir sua gargalhada, mesmo com o som da banda tocando ao fundo. O garçom chegou a sorrir. Kyle tinha os braços cruzados, a coluna torta e a cabeça caída para o lado, derretendo no banco, rindo de forma muito mais discreta, mas igualmente contagiante.

Kenny deu o primeiro gole no canudinho – e Kyle teve vontade de discretamente retirar o celular do bolso para fotografar a cena – e soltou um gemido. Um gemido de prazer real, talvez o mais genuíno que Kyle já ouvira em toda a sua vida.

-Meu caralho, que delícia.

-Não falei?

-Eu nunca mais vou tomar uma bebida de macho na minha vida.

Kyle balançou a cabeça em reprovação, revirando os olhos. Não se deu ao trabalho de apontar o sexismo da frase porque tinha total certeza de que Kenny não pensava dessa forma. Continuou sorrindo até as bochechas doerem, beberricando da própria sangria. Kenny pegou o copo daquela bebida extravagante com uma das mãos e começou a comer as frutas decorativas da borda do como, lambendo os lábios.

-É assim que a burguesia vive hoje em dia? Vocês só tomam coquetel de frutinha e curtem a vida?

-Não tem volta depois do coquetel de frutinha, você vai ter que se vender ao sistema.

-Que bonitinho você achando que eu sou mendigo porque não quero me vender ao sistema. O sistema que não me quis.

Kyle gastou alguns segundos assistindo enquanto Kenny se deliciava com o coquetel, bebendo em uma velocidade que com certeza o deixaria tonto ao fim do copo. Não podia conter o sorriso que queria brotar em seus lábios ao observá-lo; ele parecia uma criança às vezes.

-Kenny…

O outro levantou a cabeça e respondeu com um “hm?” distraído, chupando a fatia de laranja que veio em seu copo. A expressão de Kyle estava séria de repente. Ele não sabia de onde vinha a vontade súbita de perguntar o que estava prestes a sair de sua boca, mas a coragem etílica foi suficiente para que ele não se questionasse.

-Você tá apaixonado pelo Craig?

A expressão tranquila de Kenny enrijeceu de repente. Ele tirou a laranja da boca devagar, repousando-a sobre a mesa – sem usar um guardanapo, para o horror de Kyle, mas aquilo não importava no momento – e apoiou ambos cotovelos na superfície úmida, inclinando-se para deixar o rosto mais próximo de Kyle, fazendo um contato visual tão intenso que Kyle chegou a se esquecer de respirar.

-Que tal a gente não falar sobre o Craig hoje?

A proximidade dos seus rostos – que nem era tanta – desnorteou Kyle ao ponto de ele assentir com a cabeça antes mesmo de pensar sobre com o que estava concordando. E, satisfeito com isso, Kenny levou o canudo aos lábios e bebeu.

Kyle não conseguia entender sua própria curiosidade mórbida pela relação dos dois, mas pensou nisso com mais frequência do que gostaria desde que ficou sabendo da natureza da relação entre Craig e Kenny. Bem, a verdade era que ele não conhecia nada sobre essa natureza. Por algum motivo, as coisas que Kenny dissera sobre a necessidade de um outro corpo o tranquilizavam, como se a relação dos dois fosse meramente para suprir uma carência física, o que nem devia ser verdade. Mas Kyle não podia admitir isso para si mesmo. Não podia admitir que sentira alívio com algo tão triste.

Pensando a respeito, discutir Craig Tucker realmente não era a melhor escolha para aquela noite que, apesar dos pesares, parecia estar dando certo.

Então, ele empurrou os pensamentos de lado e checou o celular casualmente, para sentir que tinha o que fazer com as mãos. Podia sentir os olhos de Kenny fixos nele, com um brilho característico, quase lascivo, mas sua expressão era indecodificável. Não que Kyle estivesse olhando. Mas conhecia aquela cara muito bem.

Quando reergueu o rosto, Kenny não desviou o olhar.

-O quê? - O ruivo perguntou de forma quase desafiadora.

-Nada. - Kenny disse, mas o sorriso de deleite continuava em seus lábios.

 

Durante a próxima hora, conversaram sobre banalidades de todos os tipos. Kenny quis conhecer outro drinque afrescalhado do menu, prazer este que Kyle atendeu com gosto. Beberam o suficiente para que a linearidade dos assuntos começasse a se perder. Em determinado ponto, Kenny segurou o braço de Kyle e perguntou muito sério se Kyle sabia que ele não tinha dinheiro para pagar a conta. O que fez Kyle rir.

Quase tudo o que Kenny dizia era capaz de fazer Kyle rir.

Inevitavelmente como é para os amigos de infância, os dois entraram no momento nostálgico da noite. Ao mesmo tempo, a banda começou a tocar Blowin' in the wind e Kyle pode ver um brilho diferente nos olhos azuis de Kenny. Podia ser o álcool, certamente era, mas a íris azul daqueles olhos nunca esteve tão azul quanto naquele momento, naquele bar, sob aquela luz. Relembraram de pessoas que não viam há anos, pessoas das quais nunca sentiram falta, de algumas fantasias de Halloween, das insanidades que Kenny aprontava na escola e de como Kyle já se fodeu por conta disso também. Kenny falava de Cartman com um estranho carinho, a voz carregada de afeição, mas provavelmente porque estava bêbado.

-Lembra daquele aniversário do Token em que o Cartman apostou cinquenta paus que eu não conseguia me pendurar de cabeça pra baixo no galho daquela árvore enorme que tinha no quintal dos pais do Token?

Kyle apertou os olhos e cobriu a boca com a mão, balançando a cabeça negativamente, soltando um riso espremido de quem sabe que está rindo de algo que não deveria ser engraçado.

-Se eu lembro? Você quebrou um braço, como é que se esquece de uma coisa dessas? Aquilo foi horrível, você caiu de cabeça, eu pensei que você tivesse morrido!

-Tá doido, eu sou resistente, rapaz. Não morro de pouca coisa não. - Kenny bateu com o copo na mesa, o líquido rosado do coquetel respingando por toda a sua mão, a outra apontando para Kyle de forma acusatória. - Agora, você sabe que eu me fodi todo por culpa sua, né?

-Culpa minha?! Eu mandei você não subir, seu idiota.

-Ah, mas eu nunca teria feito uma imbecilidade dessas se você não estivesse lá. Como é que eu ia dizer não pro Cartman? Eu já era pobre, já era magrelo, não podia ser covarde também. Não na sua frente, pelo menos. Eu tinha que te impressionar, né.

Kyle estava praticamente deitado no banco a essa altura, a cabeça deitada para trás, gargalhando idioticamente.

-Essa é a coisa mais babaca que você já disse. Eu não te achei corajoso por quebrar um braço, eu te achei idiota.

-Mas te impressionou um pouquinho. - Kenny mostrou com o dedo indicador e o polegar o quão pouquinho ele conseguira impressionar. - Não tenta negar. O seu cérebro achou idiota, mas o seu corpo achou muito heróico.

E com isso, ele entornou um gole – e este sim foi impressionante – da bebida, pois àquela altura da noite, já não sentia mais o gosto de álcool. Tudo tinha gosto de suco e Kenny estava mais do que contente com isso.

-Ah, sim, foi a coisa mais heróica que eu já vi na minha vida, um idiota quebrando o crânio por cinquenta dólares.

O dedo indicador de Kenny agora percorria a boca do seu copo, um sorriso provocador em seus lábios, a parte superior do tronco relaxada, praticamente deitando sobre a mesa. A cabeça caindo de lado assim o fazia parecer um vira-lata que observa um ser humano comer algo delicioso.

-Já falei que não foi pelo dinheiro. - Ele disse com uma seriedade estranha, a voz mansa e gostosa de ouvir. - Se bem que, é claro, cinquenta dólares eram milhões pra mim naquela época. - Ele fez uma pausa longa, encarando a superfície da mesa com o olhar extremamente embriagado, então abriu um sorriso de repente. - “Era”. Ainda é, eu morava no meu carro.

Por algum motivo, isso o fez começar a rir. Rir de verdade. Rir até perder o fôlego. A risada foi crescendo, tomando conta do ambiente, de forma que Kyle não teve escolha senão se juntar a ele. Se alguém perguntasse como poderia ser tão engraçado lembrar que Kenny costumava viver em seu Fusca, ele não saberia explicar de forma alguma. Mas era. Era absurdo. Era tudo o que ele não esperava para sua própria vida quando era aquele adolescente idiota que subia em árvores para impressionar garotos ricos que jamais gostariam dele. Era ridículo, na verdade. E era por isso; por ser ridículo, por ser absurdo, por não fazer sentido algum, era tão engraçado. Porque sua vida era uma merda, todos os seus planos deram errado e ele não tinha onde dormir. E bêbado, feliz, entupido de batata frita, Kenny achava hilário.

E o riso do loiro era tão contagiante que Kyle não precisava entender para gargalhar ao ponto de escorrerem lágrimas de seus olhos.

Quando a banda começou a carregar os equipamentos e os funcionários começaram a varrer o chão, Kyle tirou o celular do bolso para ver a hora. Já era 01:25 da manhã. Havia uma mensagem de Token desejando boa noite e que ele se divertisse com seus amigos, que Kyle tentou responder, mas era difícil enxergar as teclas. Ele já havia guardado os óculos, mas mesmo que os colocasse, não resolveriam o problema da embriaguez. Ficou contente o bastante por ter conseguido digitar a senha do cartão de crédito na hora de pagar a conta, enquanto Kenny esperava lá fora, fumando.

Estava frio do lado de fora. Assim que Kyle abriu a porta, sentiu o ar cortante fazendo seus olhos arderem, mas quando Kenny se virou com um sorriso de menino e lhe deu o braço, fazendo alguma piada sobre ele estar bêbado demais para achar a própria casa, Kyle sentiu um calor de dentro para fora.

Em momento algum ele parou para pensar que podia haver algo de errado. Encaixou seu braço no de Kenny, o tecido grosso do casaco separando devidamente sua pele da dele, mas o calor do corpo do loiro o atingia e provocava alívio. Caminharam próximos assim, andando bem no meio da rua deserta, sob o céu gigantesco e estrelado, aquele tipo de ar que só a madrugada tem. Tudo o que se podia ouvir eram seus passos no asfalto.

 

Kyle abriu a porta do apartamento e entrou sem acender as luzes. As cortinas da sala estavam abertas, então toda a iluminação do ambiente era provocada pela iluminação pobre dos postes da rua sob os quais eles haviam acabado de passar. Ele não sabia exatamente porque não havia acendido as luzes. O interruptor era bem ao lado da porta, perfeitamente alcançável, mas havia algo no clima do apartamento escuro que seria arruinado se as luzes fossem acesas.

Logo ele entendeu.

Largou as chaves sobre a mesinha de centro e tirou o casaco com certa dificuldade. Kenny se aproximou dele a passos lentos, como se fosse ajudá-lo. Mesmo no escuro, Kyle podia sentir aqueles olhos azuis fixos em sua silhueta; Kenny provavelmente também não o enxergava muito bem, mas isso não importava. Olhando de fora, só se podia ver a silhueta de dois corpos próximos contra a luz que entrava pela janela, o contorno dos cabelos bagunçados de Kenny, do nariz judaico de Kyle, a diferença de altura entre os dois, a maneira com que Kenny abaixava o rosto para se aproximar dele. Kyle ainda tinha o casaco enroscado nos pulsos, pronto para ser jogado ao chão, os braços atrás das costas, os lábios entreabertos e os olhos curiosos, assustados, desejosos. Kenny parou de repente, próximo o bastante para que Kyle sentisse sua respiração tocando a pele de seu rosto. Seu coração oscilava entre a sensação de bater tão forte que poderia sair da boca e a sensação de ter parado completamente dentro do peito.

Esperou pelo calor das mãos de Kenny em seu rosto, mas esse calor não veio.

Kyle terminou de tirar o casaco e o jogou no sofá, abaixando a cabeça de forma envergonhada, umedecendo os lábios.

-Eu vou te beijar agora. - Ouviu a voz do loiro tão baixa e rouca, num sussurro de quem conta um segredo.

Então Kyle voltou a encará-lo; os olhos agora melhor acostumados ao escuro, a boca pronta para dar uma resposta, mas nenhuma palavra veio. O que veio foi o toque daquela mão rude e gelada na lateral de seu pescoço, o que enviou uma corrente elétrica pelo corpo inteiro de Kyle, um arrepio violento na espinha, uma sensação tão forte que deixou seus mamilos arrepiados por baixo da camisa. Ele sugou um pouco de ar pela boca e encheu o peito, mas não reagiu enquanto Kenny abaixava um pouco mais o rosto até que suas testas estivessem em contato.

-Eu tô tão bêbado… - Kyle sussurrou de olhos fechados, como se isso tivesse alguma relevância, pois sua mão instintivamente foi até a lateral do tronco de Kenny, descendo lentamente ao quadril dele, o polegar passando por baixo do tecido da camisa, sentindo a carne quente dele. - Kenny…

Finalmente veio a sensação que seus lábios tanto almejavam, ainda que ele não entendesse muito bem. Kenny levou a mão do pescoço até a nuca do ruivo e o manteve dolorosamente perto, encaixando os lábios gelados nos dele, a boca aberta buscando invadir a de Kyle com sua língua, uma mistura tão estranha de calor e frio, e simultaneamente deliciosa, consumindo-o. Kyle cravou as pontas dos dedos na pele de Kenny e deslizou a mão pelas suas costas para envolver seu tronco com o braço, enroscando-se nele. Não foi o tipo de beijo contínuo; foi hesitante, carregado de tentação, de recuo. As línguas se encontravam, se enroscavam, depois se recolhiam e eles passavam um ou dois segundos apenas com os lábios se tocando, abertos, roçando-se um no outro, dentes encontrando a carne delicada do lábio, um respirando o ar do outro, gosto de álcool e de adolescência.

Era assim que Kenny o fazia se sentir; jovem, irresponsável., livre. Kyle tinha ombros tensos praticamente o tempo inteiro, pois era constante a sensação de que ele estava devendo alguma coisa, trabalhando mais do que deveria, cumprindo com o seu papel de cidadão útil. Kenny era um alívio disso tudo. Uma alternativa. Ele era como se afogar e encontrar ar puro ao mesmo tempo.

Kyle o abraçou tão apertado que era difícil de respirar, não só pela ansiedade do beijo, mas pela maneira com que Kenny segurava seu pescoço com a mão grande e forte, a forma com que essa mão subia pelo maxilar de Kyle, agarrando o queixo, e como Kenny o empurrava cambaleando de forma tão bêbada até que suas costas encontrassem a parede.

As mãos de Kyle foram ao peito de Kenny, tentadas a abrir os botões daquela camisa, mas não o fizeram. Ele se agarrou ao tecido com força e virou o rosto de lado, tomando fôlego, mas os lábios de Kenny continuaram escorregando pela sua bochecha, tão úmidos, deixando um rastro de saliva enquanto o loiro parecia devorá-lo com tanta vontade. Dois dedos de Kenny deslizavam por cima dos lábios de Kyle, que se abriram tão facilmente para ele, envolvendo os dedos para chupá-los apenas uma vez, antes que ele pensasse no que estava fazendo.

Estava duro apenas disso. Fazia anos que Kyle não endurecia tão facilmente, só de sentir o cheiro de um homem, só de chupar seus dedos de forma obscena e beijá-lo. Talvez só então ele tenha entendido o quanto isso era perigoso.

-Eu não posso… - Kyle sussurrou, afastando a mão de Kenny de seu rosto. Não de forma decidida; pelo contrário, o fez de maneira muito fraca, sem vontade de se desenroscar daquele corpo. - Kenny, eu não…

-Eu não ligo. - Kenny o interrompeu, levando as duas mãos ao seu rosto, não afastando-se nem um centímetro. - Eu sei. E eu não ligo.

Havia algo de desesperado no tom da voz de Kenny. Os dois falavam baixinho, como se houvesse alguém mais no apartamento capaz de ouvi-los. Eram apenas os dois naquela sala escura, colados um ao outro. Kyle podia sentir o pau duro de Kenny pressionado em sua coxa, o desejo nas suas mãos e na sua respiração irregular, como se ele precisasse tocá-lo para continuar vivo.

Apesar disso, Kenny não tentou beijá-lo novamente. Seu rosto continuava terrivelmente próximo. Agora, Kyle conseguia enxergar a expectativa em seus olhos. Podia também sentir o carinho nas mãos do outro quando Kenny pôs seu cabelo atrás da orelha.

-Eu não sou o Craig. - Kyle disse em um tom ainda baixo, mas muito mais forte do que os sussurros estabelecidos até então. Saiu quase em tom de uma confissão. Ele tirou suas mãos do corpo do loiro. - Eu sou comprometido, isso… Isso importa. Se isso for acontecer, não pode ser tão sujo.

Kenny não disse nada, mas tirou suas mãos de Kyle e as levou para a parede, sem dar um passo sequer para trás. Não havia luz o suficiente para que Kyle pudesse identificar sua expressão, mas pôde senti-lo mordendo o próprio lábio inferior e tentando recuperar o fôlego, normalizar sua respiração descontrolada. Eventualmente, após quase um minuto com ambos parados ali, contra a parede, Kenny assentiu com a cabeça.

-Eu vou pro meu quarto agora. - Kyle disse gentilmente, baixinho, sem se mover.

Enfim, Kenny deu dois passos para trás e levou as duas mãos ao topo da cabeça, alisando os cabelos loiros para trás. Naquela noite, eles estavam limpos. Ele os lavara de manhã. Estava cheiroso também, Kyle ainda sentia em suas narinas.

Mover-se acabou sendo uma tarefa muito mais difícil do que Kyle esperava. Suas pernas tremiam como duas gelatinas. Seu quadril parecia anestesiado e havia uma sensação estranha em sua barriga, mas unindo todas as forças em seu corpo, Kyle foi para o seu quarto. Sozinho.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...