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História Unwell - Migalhas, comida chinesa e ataques de pânico


Escrita por: caulaty

Capítulo 9 - Migalhas, comida chinesa e ataques de pânico


A única resposta na qual Stan conseguiu pensar foi um gemido pensativo, curto e grosso. “Hmm.” Apenas isso. Para Kyle, isso não foi satisfatório o suficiente. Estavam os dois homens na cozinha do pequeno apartamento de Stan. Não era preciso conhecer muito de decoração para enxergar que aquele espaço pertencia a um homem solteiro com menos de trinta anos. Bastava olhar para a ausência de itens de decoração, as meias nunca guardadas na gaveta, as duas caixas de pizza em cima do balcão. Estavam na cozinha, Stan sentado à pequena mesa de inox que nunca usava para jantar, Kyle de pé, apoiado no balcão, segurando a pequena Lola em seus braços. O ruivo encarava o outro com expectativa, embalando a menininha cuja febre havia acabado de diminuir. Ela estava quase dormindo.

-”Hmm”? Você não vai dizer nada?

Stan não sabia o que responder a isso, visto que ainda estava processando a ideia, tentando imaginar todas as cenas que lhe haviam acabado de ser descritas. Sempre ficava impressionado com a quantidade de detalhes que Kyle se lembrava ao contar uma história, especialmente se fosse dramática. Narrou, tim-tim por tim-tim, os acontecimentos da noite anterior, os drinques ingeridos, as palavras trocadas. Quanto mais Stan pensava a respeito, menos apropriadas pareciam suas respostas. Se sua filhinha não estivesse no mesmo ambiente, a resposta seria um breve e eficiente “puta que pariu”. Na falta disso, esfregou o rosto com uma das mãos e respirou fundo, um gesto que comunicava muito bem a complexidade da coisa.

-Bom, você gostou? - Stan perguntou finalmente, e Kyle desejou que ele tivesse ficado calado.

-O quê? -Ele retribuiu, acariciando a bochecha macia de Lola.

-Do beijo. Foi bom?

Kyle franziu o nariz por um segundo, como se a pergunta o tivesse pego totalmente desprevenido. Ele continuava com os olhos presos no rosto tranquilo de Lola, que agora botava a mãozinha na boca e bocejava despreocupadamente, pois ela ainda não tinha que se preocupar com bobagens adultas como beijar o rapaz errado no momento errado. Kyle sorriu para ela, gentilmente afastando sua pequena mão antes que ela começasse a chupar os dedos. Ele umedeceu os lábios e deu um suspiro ansioso, revivendo a sensação de algo deliciosamente inadequado como aquele beijo. Ainda podia sentir o álcool no hálito de Kenny, o cheiro de cigarro na boca dele. Era algo que Kyle sempre detestara, mas por algum motivo, mesclado ao cheiro da pele de Kenny, era quase gostoso.

-Honestamente, fazia tempo que eu ninguém me beijava daquele jeito. - Kyle murmurou distraidamente, seu cérebro ainda completamente mergulhado na lembrança. Seus olhos passearam pela superfície da mesa cheia de migalhas de pão e pequenas manchas de ketchup. - Foi incrível. - Ele completou, por fim, erguendo os olhos para seu melhor amigo do outro lado da mesa.

-E nós estamos felizes com isso ou…?

-Eu não sei, Stan! Você deveria estar me ajudando, não me confundindo mais.

-Desculpa! - Stan disse em um tom mais fino do que pretendia, erguendo as mãos. Não sabia exatamente pelo que estava se desculpando, mas Kyle tinha o hábito de fazer com que ele se sentisse culpado, mesmo sem saber pelo quê. - Eu só quero entender. Você vai contar pro Token?

Kyle finalmente se desencostou da bancada e começou a embalar Lola como se tentasse fazê-la dormir, embora o movimento tivesse um ritmo acelerado demais para quem tenta acalmar uma criança que já estava perfeitamente calma. Ele caminhou um pouco na cozinha estreita, mas com a mesa bem no centro, não havia muito espaço para se mover. Fez menção de começar a responder duas vezes, mas nada saiu de sua boca; nada além de um suspiro confuso.

-Você acha que eu devo?

-Honestamente, Kyle, eu acho que depende.

-Obrigado, Stan. Você ajuda muito. - O ruivo respondeu, revirando os olhos de forma que fez o outro rir. - Isso não é engraçado! - Kyle gritou, ou aumentou a voz o máximo possível sem propriamente gritar, mas, mesmo assim, chamou a atenção de Lola. Ela ergueu a cabeça e resmungou baixo alguma coisa, mas Kyle cobriu sua cabecinha com a mão e fez um carinho para que ela deitasse em seu ombro novamente. - Desculpe, amorzinho. O tio Kyle só está ensinando uma coisa importante pro papai.

-Eu acho o seguinte: - Stan disse, levantando-se da cadeira para recolher o prato e a xícara sujos sobre a mesa, levando-os até a pia. - Se significou alguma coisa, ele tem o direito de saber. Agora… Se foi só um beijinho nostálgico e não quis dizer nada, se você nem gosta dele assim, não tem porque contar. O cara tá morando na sua casa, não tem porque deixar o Token neurótico por uma coisa que não significa nada. Certo? - Stan abriu a torneira e começou a chacoalhar a garrafa de detergente para tirar o restinho e aplicá-lo sobre a esponja. Começou a lavar a xícara, concentrado, sem perceber o silêncio que se estabeleceu em seguida. Então, ainda lavando a louça, olhou para seu amigo com a sobrancelha erguida. - Kyle?

Ele estava escorado de lado na geladeira, que possuía vários pequenos ímãs, desde souvenirs da viagem ao Gran Ganyon até ímãs do símbolo dos Denver Broncos. Kyle parecia pensativo enquanto ajeitava um dos ímãs que estava torto com a mão livre. Lola chupava o dedão com um sorriso satisfeito, mas Kyle não pareceu notar.

-Não… - Kyle murmurrou de repente. - Não, eu acho que eu preciso contar. Eu nunca escondi nada dele antes. Mas ele vai ficar tão pu… - Ele interrompeu a palavra no meio, lembrando que tinha uma criança nos braços. - Tão... Chateado. Eles estavam finalmente começando a se dar bem.

-Mas você acha que tem alguma chance do que aconteceu ontem… Acontecer outras vezes? - Perguntou, aproveitando para lavar também outros pratos que estavam acumulados na pia desde o dia anterior. Raspava as migalhas e restos dos pratos usando a mão de forma nada graciosa. Stan usava uma calça de moletom listrada absolutamente ridícula e um casaco de algodão cinza no qual provavelmente havia dormido. Tinha os cabelos bagunçados. Não estava esperando receber Kyle às nove da manhã em seu apartamento.

-Não. Eu não sou idiota, não vou me colocar nessa posição de novo.

-Que posição? - Stan perguntou com um sorriso malicioso. Ele teria levado um tapa no braço se Kyle não estivesse segurando a criança.

-Você sabe. Bêbado, vulnerável. Falando sobre coisas do passado. Eu deixei chegar naquele ponto.

-É, mas… Sei lá, agora que já aconteceu, não vai ser estranho? Quer dizer, pra você pode não ter sido nada, mas e pra ele?

Kyle franziu a testa, com uma expressão que delatava o quanto aquilo não havia sido considerado ainda. Pressionou a língua por dentro da bochecha e assentiu com a cabeça devagar, desencostando-se da geladeira para andar um pouco, agora de forma mais calma. Aproximou-se da fruteira que só tinha um cacho de bananas e uma maçã que precisava ser jogada fora. Começou a fazer carinho nas costas de Lola, que, agora, abraçava seu pescoço confortavelmente. Ela tinha o cabelo amarrado em maria chiquinhas tortas que Stan fizera, e Kyle pretendia arrumar depois.

-Acho que eu vou ter que conversar com ele. - Concluiu.

Stan desligou a torneira e secou as mãos com um pano úmido que estava pendurado na cadeira. Então, ergueu as mãos para que Kyle lhe entregasse Lola, o que o ruivo fez de maneira cuidadosa. Stan a ajeitou nos braços, o pano jogado sobre o ombro, e sentiu sua testa com as costas da mão. Ela já não tinha mais febre.

-Olha, Kyle, eu vou te dizer a verdade: isso não me surpreende nem um pouco. No ensino médio, o cara te olhava como se você fosse uma ceia de natal que ele nunca ia poder comer.

-Essa é a sua analogia? - Kyle perguntou, colocando uma das mãos no quadril, apoiando a outra na cadeira. - Nossa, você é horrível nisso.

-Tudo bem. - Stan sacudiu uma mão em frente ao rosto dele. - Esquece isso. Eu só tô dizendo que ele era apaixonado por você, talvez isso tenha sido mais importante pra ele do que você pensa.

-Tá, e por que ninguém me contou isso antes?!

Stan encolheu os ombros.

-Sei lá. Todo mundo sabia. Não era da minha conta, mas eu sinceramente pensava que você também sabia e não queria magoar ele.

-Isso é ridículo.

Enquanto eles trocavam palavras, Lola se agarrou ao pano no ombro do pai e o abraçou como se fosse um ursinho de pelúcia, bocejando, encostando a cabecinha no pano amassado para usá-lo de travesseiro. Ao sentir que estava molhado, fez uma careta.

-Além do mais, - Kyle continuou, agora voltando sua atenção às migalhas da mesa, amontoando-as com uma das palmas para limpar a superfície. - isso já faz anos, não é a mesma coisa. Ele tem outra história.

Kyle não havia contado nada a respeito de Craig, como prometeu que não faria. Não tinha dúvida alguma de que Stan não contaria a ninguém; ele nem conversava mais com Tweek e Craig, até onde Kyle sabia. Mas de qualquer forma, não parecia certo compartilhar um segredo que não era seu. Em uma cidade pequena como South Park, as pessoas estavam sempre se cruzando na mercearia, no centro comercial, até mesmo na loja de ferragens. Kyle imaginava que era assim que rumores começavam, com um olhar torto em um encontro casual porque alguém sabia mais do que deveria saber. Não, ele não queria colocar Stan nesse tipo de posição.

-É, isso é verdade. Talvez as coisas voltem ao normal.

Mas em seu tom de voz, Kyle podia ouvir muito bem que Stan não acreditava no que estava dizendo.

 

* * *

 

A verdade é que Kyle estava nervoso. Fez todo o possível para não estar; passou a tarde inteira na galeria, ainda que não fosse seu dia de trabalho, evitando o quanto pôde voltar para o apartamento. Às seis da tarde, tomou o caminho mais longo de volta para casa, passou em um restaurante chinês do centro para ganhar algum tempo, repassou inúmeras vezes algum tipo de discurso vagabundo sobre o que gostaria dizer. Outra verdade era que Kyle não sabia o que dizer. Liberou o ar dos pulmões em um sopro comprido enquanto colocava a chave na fechadura, girando a maçaneta e empurrando a porta com o ombro, ajeitando as sacolas nos braços, segurando a chave com outra mão. Estranhou a escuridão na sala de entrada. Havia uma luz pálida vindo do corredor, era a única fonte de iluminação no interior do apartamento. O vidro da porta para a varanda também deixava entrar a luz externa dos postes, então Kyle enxergava o caminho.

-Kenny? Eu cheguei. - Anunciou, caminhando até a cozinha para colocar as sacolas sobre a bancada. - Eu espero que você ainda não tenha jantado, eu trouxe comida. - Ele esperou alguns segundos por uma resposta, acendendo a luz da cozinha para retirar as pequenas caixas da sacola, junto com os respectivos molhos. Após alguns segundos, franziu a testa e chamou, mais alto – Kenny?

Silêncio.

O coração de Kyle começou a bater um pouco mais forte. Kenny não costumava perder tempo antes de aparecer resmungando de fome, e dificilmente mexia nas prateleiras da cozinha por conta própria, por mais desinibido que fosse. Fazia sentido, é claro, que ele não estivesse agindo como de costume. Kyle voltou para a sala e observou através da porta para ver se ele não estava na varanda. Nenhum sinal.

-Kenny? Eu trouxe yakisoba. Você gosta, não é? - Kyle gritou, andando em direção ao corredor, tentando parecer casual. Em partes, também estava aliviado por Kenny estar tão constrangido quanto ele. Não estava exatamente ansioso para encontrá-lo, mas era melhor que conversassem sobre a noite anterior o quanto antes.

Foi esse o intuito que o fez seguir pelo corredor direto até o quarto de hóspedes que, agora, era de Kenny. A porta estava aberta, como de costume. Ele nunca tinha o hábito de fechá-la, a menos quando fosse dormir. O corredor era estreito e tinha um papel de parede cinza com uma estampa de flores tão pequenas e delicadas, num tom de cinza ainda mais claro, quase invisível. Kyle passou pelo espelho pendurado na parede, deu uma olhada breve no reflexo, então parou na porta branca do quarto. Estranhou, pois, num primeiro momento, não encontrou ninguém. A luz estava acesa, a cama desfeita, mas não havia ninguém.

O quarto não era muito grande; havia um armário de madeira com portas de correr em uma das paredes, a cama com uma cabeceira de madeira exatamente do mesmo tom. Ela ficava no meio do quarto; havia um vão entre a cama e a parede, onde ficava uma mesinha de cabeceira com gavetas e uma luminária. Kyle estava prestes a apagar a luz do quarto e sair quando escutou um som esquisito, como um grunhido baixo ou um ranger de dentes mesclado a uma respiração pesada. Kyle imediatamente adentrou o quarto e deu a volta na cama, os pés o carregando apressadamente para encontrar algo que ele não entenderia muito bem.

Algo importante a se frisar sobre Kyle Broflovski é que ele sempre foi bom em crises. Seu coração quis sair pela boca com o que viu, e parecia que todos os seus órgãos estavam congelando e fervendo simultaneamente, mas mesmo assim, ele manteve a calma.

-Meu Deus, Kenny. - Murmurou baixinho, ajoelhando-se perto do loiro.

Kenny estava encolhido no chão; mais precisamente, de cócoras, abraçando o próprio tronco, acoado entre a parede e a mesinha de cabeceira, coberto de suor, a cabeça baixa de forma que os cabelos úmidos cobrissem seu rosto. Ele sugava o ar pela boca de maneira barulhenta, como se os seus pulmões simplesmente não se enchessem. Tinha uma das mãos atravessando o peito, agarrando o próprio ombro, e cravava as unhas na própria pele através da camisa fina. A outra mão tentava se agarrar a qualquer coisa; à parede lisa, o chão de carpete, o lençol da cama, o próprio peito. Ele gemia de dor e tremia compulsivamente.

-Ei. Ei, olha pra mim. - Kyle disse com uma voz firme e alta, pois o outro não reagia à sua presença. Quando Kyle tocou seu joelho, Kenny recuou como um animal assustado e gritou, dando com as costas na mesa de cabeceira. Uma das gavetas se abriu com o impacto e o abajur caiu na superfície da mesinha com um estrondo. Kyle afastou sua mão imediatamente. - Tudo bem! Tudo bem, sou eu. Kenny. - Kyle chamou, o nervosismo transbordando em sua voz. Ele também estava trêmulo, mas não prestava atenção ao próprio medo, pois estava focado demais no do outro. Engatinhando sutilmente, sem movimentos bruscos, ele se aproximou do loiro o máximo que pôde sem tocá-lo. - Kenny, fala comigo.

Por um segundo, ele pareceu se fechar mais ainda, colocando a cabeça entre os joelhos e cobrindo-a com as mãos. Ele não chorava, apenas sugava o ar de forma barulhenta como se não estivesse conseguindo respirar, emitindo sons que Kyle levaria muito tempo para esquecer.

Quando Kenny ergueu a cabeça novamente, Kyle segurou seu rosto com mais força do que pretendia nas mãos, esperando por uma reação violenta, mas estranhamente, ele pareceu relaxar um pouco com o contato visual forçado. Kyle não disse nada durante alguns instantes, apenas o segurou com firmeza, assim próximo, encarando-o nos olhos com uma expressão severa. Aquilo, pouco a pouco, retomou seu senso de realidade.

-Você está bem. - Kyle disse baixinho. - Eu tô aqui. Nada vai acontecer com você. Agora respira comigo.

Kenny fechou os olhos por um instante, como se estivesse dopado, e então assentiu com a cabeça. Foi a primeira resposta que deu, e para Kyle, foi suficiente. A mão de Kenny subiu pelo braço do ruivo até chegar ao seu pulso, e então apertou com tanta força que quase trancou a circulação. Mas ele respirou. Relaxou um pouco as costas, recostando-se para trás, ainda de olhos fechados. Inalou e exalou três vezes. Kyle estava perto o suficiente para sentir como o coração do outro martelava dentro do peito de forma descontrolada. Só então, Kyle percebeu que, na outra mão, Kenny segurava um pequeno papel amassado. Parecia uma foto, mas ele ainda a apertava de tal forma nos dedos que não era possível identificá-la.

Kyle deu alguns minutos a ele. Foram apenas dois ou três, mas pareceram uma eternidade. Apenas quando o punho de Kenny aliviou um pouco a força do aperto em torno do pulso de Kyle, o ruivo falou novamente:

-Você consegue falar?

Em resposta, Kenny soltou o pulso dele e levou as duas mãos ao rosto para cobri-lo, esfregando algumas vezes a pele avermelhada pela velocidade da sua circulação sanguínea. Então, Kyle percebeu que ele havia soltado a pequena foto amassada no chão, bem próximo de seu pé. Na foto, podia-se ver o rosto sorridente de Karen McCormick aos catorze anos, uma cara sardenta e um olhar tristonho que sempre fazia parte dela. Ela estava no quintal dos fundos malcuidado da antiga casa dos McCormick, aquela que Kyle conhecia muito bem. Podia ver a cerca quebrada no cenário da foto. Karen usava uma blusa verde e segurava um cachorro vira-lata que tiveram durante uma época.

-Desculpa. - Kenny murmurou em um tom tão envergonhado que Kyle quase sentiu vontade de chorar.

-Ei. - Respondeu, tentando formar um sorriso. Os lábios não colaboraram. Kyle levou a mão ao braço dele para acariciá-lo, deitando a cabeça de lado, observando-o naquele estado de fragilidade que parecia tão real… Como se estivesse conseguindo enxergá-lo de verdade pela primeira vez. - Não peça. - Kyle umedeceu os lábios, hesitante. - Você quer conversar?

Era bastante claro que ele ainda não estava completamente em si ainda. Kenny se contorcia um pouco, havia um brilho em seus olhos que era incomum. Lágrimas, talvez. Ele fungou baixo, esfregou o nariz e desviou o olhar, porque encarar Kyle diretamente era muito doloroso. Ele também sabia o quanto estava exposto. Então, como se tivesse acabado de se lembrar, voltou a tomar a foto da irmã em suas mãos e a aproximou do peito, o tempo inteiro mantendo o rosto baixo.

-Tudo bem. - Kyle entendeu, assentindo. Ajeitou-se onde estava, tentando relaxar um pouco o corpo daquele estado de alerta, percebendo o quanto estava tenso nos ombros. - Eu posso ficar aqui com você?

-Você não precisa.

Agora, Kyle conseguiu sorrir. Foi um sorriso triste. Ele se apoiou nas mãos para mudar de posição, sentando-se ao lado de Kenny com as costas voltadas para a parede e as pernas esticadas, os pés embaixo da cama.

-Eu sei que não.

Alguns minutos se passaram com os dois homens ali, sentados em silêncio. Havia tantas coisas que Kyle gostaria de perguntas, mas não teve coragem. Kenny parecia uma criança ou um animal facilmente assustável, que correria se ele dissesse a coisa errada. Também não teve coragem de interromper o momento que Kenny parecia estar vivendo; ele desamassou a foto e passou o polegar sobre o rosto de sua irmã algumas vezes. Kyle o observou discretamente durante alguns segundos; ele parecia estar em outra época. Uma época mais feliz, certamente.

-Ela tinha dezessete anos. - Kenny murmurou de repente, pigarreando logo em seguida. Kyle virou o rosto para ele, os olhos estreitos por um momento. Kenny continuava com os olhos fixos na fotografia. - Quando ela se matou. - Um silêncio longo veio a seguir, longo o suficiente para Kyle acreditar que ele não diria mais nada. Não quis forçá-lo. Mas, para sua surpresa, Kenny parecia imerso o suficiente na lembrança vívida para continuar falando sem perceber. - Eu sabia o que o meu pai fazia com ela. Sempre soube. Minha mãe fingia que não via, mas todos nós sabíamos. Desde que ela tinha… Doze, treze anos. E às vezes, eu juro por Deus que pensava em entrar no quarto dele com uma faca enquanto ele dormia. - Ele soltou um riso amargo ao dizer isso, sacudindo a cabeça. - Mas eu também era um moleque. Eu não sabia o que fazer. Ela sempre me dizia que tinha parado, então… - Ele passou a palma aberta pelo rosto para secar as lágrimas de forma quase agressiva. - O que é que você faz, sabe?

-Kenny… - Kyle sussurrou, os olhos fixos no outro, uma ardência horrorosa dentro do peito. Ele não se moveu.

-Ela me telefonou antes. De se matar, digo. Eu tava com o Craig, ela me ligou e perguntou se eu tava ocupado. E eu senti… Eu senti na voz dela. Eu disse que ia pra casa, ela falou que não precisava, que nada tinha acontecido. E eu… Eu tava de bicicleta, se eu tivesse ido de carro, eu teria voltado bem mais rápido. Mas era verão, a noite tava tão linda, eu quis pegar o ar fresco. Então eu fui de bicicleta. E eu levei quase quarenta minutos pra chegar em casa. - Ele narrava tudo em um tom semi-morto, sem qualquer variação. No máximo, fechava os olhos às vezes e deixava que as lágrimas descessem, não as limpava mais. - E eu vi a sombra dela quando eu parei a bicicleta na frente de casa. A silhueta dela na janela. Ela se enforcou no varão da cortina.

Kenny parou de falar durante algum tempo. Ele realmente desejou que houvesse uma garrafa de cachaça ao alcance; recuperava os sentidos, a noção de realidade, mas desejava continuar anestesiado. Ele apertou a testa como se a cabeça doesse. Kyle o observava praticamente sem piscar.

-Ela ainda tava viva… Eu acho. Eu nunca soube ao certo se foi alucinação minha ou se ela realmente ainda tava viva, eu só sei que eu arranquei aquela merda e levei ela pro hospital… No Fusca, aliás. Eu já tinha ele. E os meus pais tavam em casa, mas eu não esperei ninguém, eu não conseguia explicar nada pra ninguém. Quando eu cheguei no hospital, me disseram que ela já tava morta. Os meus pais apareceram logo depois, e… O meu pai começou a chorar. Que nem uma criança patética. Naquela noite, eu tive certeza que ia matar ele. Com as minhas próprias mãos. Eu só avancei nele e comecei a bater… E bater… E bater... Eu nunca perdi o controle daquele jeito, eu nem conseguia sentir… - Kenny abriu as mãos de forma torta e as encarou, a foto posicionada bem no meio da palma da mão esquerda. - Eu só queria que ele parasse de respirar.

Agora, ele tremia. E antes que ele escorregasse para outro estado de pânico, Kyle o envolveu em seus braços, falando com o corpo tudo aquilo que jamais poderia sentir em palavras. Queria, de alguma forma, conseguir absorver um pouco daquela dor, ajudar a carregar o fardo que ele arrastou sozinho durante tantos anos. Kenny desmanchou no abraço como uma criança faria, encolhido, mas não chorou. Foi se deitando pouco a pouco, os olhos sempre abertos, segurando o braço de Kyle que envolvia seu tronco, tentando controlar o tremor. Kyle passou a mão pelos cabelos loiros dele, abaixando seu rosto para roçá-lo no topo da cabeça de Kenny, expressando afeição de toda forma que poderia. Quando Kenny se deu conta, estava fechando os olhos.

Era a primeira vez em muitos anos que Kenny McCormick se sentia seguro.



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