1. Spirit Fanfics >
  2. Utopia >
  3. Cidade flutuante

História Utopia - Cidade flutuante


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


A capa foi desenhada pela talentosíssima shiron2611 (esse é o user no deviantart pra quem quiser ver mais do trabalho dela) que satisfaz a minha fantasia desses meninos em Steampunk.

Essa história foi criada para o desafio de julho e agosto do Nyah! em 2015, sobre sci fi e seus subgêneros.

Pairings: Kenny/Kyle, Christophe/Kyle, provavelmente todo mundo/Kyle (brincadeirinha, mas outros pairings podem surgir, como sempre)

Capítulo 1 - Cidade flutuante


 -Os Utopianos não ferem. Não brigam, não destroem. Os Utopianos respeitam seu tempo, seu ambiente e todos aqueles que nele habitam. Os Utopianos não sentem ódio, jamais o conheceram, pois no céu não há sentimentos obscuros. Os Utopianos distribuem igualmente seu pão e seu vinho. Lá, não há religião, não há preconceito, não há julgamento, não há miséria, não há fundamentalismo, totalitarismo, não há estupro e violência. As crianças brincam pelas ruas, visitam o circo e os vilarejos, compram doces depois que o sol se põe e não correm perigo algum, pois em Utopia não há violência. Utopianos acenam para seus vizinhos, são simpáticos e alegres, nunca estão de mau humor. Não há sofrimento em Utopia. Não há morte em Utopia. Não há sujeira, só há respeito e igualdade. Você conhece a origem etmológica da palavra Utopia, meu amigo? Trata-se de uma combinação entre dois radicais gregos, “οὐ” e “τόπος”. Em uma tradução livre, isto significaria não-lugar. Utopia literalmente quer dizer um lugar que não existe. Pode acreditar nisso? Cada vez mais me convenço de que este lugar não deveria estar aqui. Nós deveríamos explodir tudo pelos ares enquanto ainda há tempo.

Quando Eric Cartman deu fim a mais um de seus longos monólogos acompanhados de rum em uma caneca de madeira, colocou-a violentamente sobre a bancada do bar, espirrando o líquido escuro pelos dedos e pela superfície limpa que o garçom já estava acostumado a limpar. Passou as costas da mão em frente à boca, a pele fina roçando contra alguns pelos que começavam a crescer pelo queixo, duros e pinicando. Mostrou os dentes amarelos em um sorriso sádico que já não assustava mais Kyle há alguns anos. Kyle o encarava de pé, os dedos finos e brancos batucando logo ao lado de um cinzeiro posto sobre a bancada. A outra mão descansava sobre sua cintura, cobrindo a textura de um grosso cinto de couro. Ele chupava um pirulito preso pelos lábios.

-Agora você só está divagando. - Comentou, retirando o pirulito da boca e alcançando o cigarro de Eric do cinzeiro para tragá-lo uma vez só, ignorando o olhar de reprovação do outro. A fumaça subia azulada, dançante, tão bonita sob a luz trêmula do bar que estava prestes a expulsá-los dali para fechar suas portas. A madrugada já havia chegado. - Dê-me logo o mapa e pare de enrolar.

-Caralho, ruivo, dá pra você se acalmar? O que estou dizendo aqui é importante.

Cartman debruçou-se para arrancar o cigarro da mão dele. Era um homem grande e pesado, de cabeça pequena e mãos enormes, prepotente verbal. Alcançou por dentro do paletó escuro para entregar-lhe um mapa em papel de pergaminho enrolado, preso por um elástico que Kyle arrancou para dar uma boa olhada, como se afim de conferir que tudo estivesse em ordem. No silêncio do bar praticamente vazio, podiam ouvir através da janela um cachorro latindo, um zepelim passando logo abaixo e milhares de pés marchando. Kyle franziu a testa por um segundo, distraído pelo som, mas seus olhos continuavam firmes no papel que segurava. Era a planta baixa da sede do governador.

-Quer que eu vá com você? - Eric se ofereceu em um tom mais cordial do que costumava usar. Utilizava um lenço amarelo-mostarda em torno do pescoço e uma corrente dourada presa no casaco que quase fazia com que ele parecesse um cavalheiro.

-Está brincando? Bêbado desse jeito? Todos o ouviriam.

-Não há ninguém lá, sua vadia ignorante!

Kyle brincava com a língua pelo pirulito vermelho enquanto oferecia um sorriso quase malicioso, enrolando o mapa novamente sem se preocupar em prendê-lo com o elástico, afastando-se da bancada de madeira. Lançou um olhar breve para o garçom loiro que secava copo atrás de copo do outro lado do balcão. Ele vestia uma gravata borboleta ridiculamente grande e seu colete azul marinho apertado sobre a camisa branca desajeitada, manchada por licor, tudo contrastando com sua pele branca como a de um boneco e seus cabelos de loiro platinado. Kyle sempre achou que ele se parecesse muito com um pequeno boneco de ventriloquismo. Acenou em direção a ele, e o garçom retribuiu com um sorriso largo, jogando a toalha de louça por cima do ombro e gritando entusiasticamente:

-Já vai, Kyle?

O sino da porta tocou quando Kyle a abriu. Cartman bufava de sua banqueta, ajeitando-se com os dois cotovelos sobre o balcão, agarrando sua caneca. O ruivo respondeu ainda com o pirulito entre os dentes.

-Vou, Butters. Tenho assuntos importantes a resolver. Tenham uma boa noite.

Enquanto Kyle fazia sua caminhada despreocupada pela madrugade de Utopia, talvez fosse um momento oportuno para desenhar visualmente a cidade em questão. Como o indômito discurso de Cartman deu a entender, Utopia é uma cidade construída nos céus, acima das nuvens, às vezes tomada por elas, pois nem mesmo o mais brilhante dos homens pode controlar o movimento da natureza. Nas cidades da terra, diz-se que Utopia foi um verdadeiro milagre. É, também, o centro e modelo político que tem influência em todo o funcionamento do mundo novo. Utopia é o exemplo a ser seguido. Fiquemos fora das questões político-sociais da prestigiosa cidade para atemo-nos à arquitetura especial de uma cidade construída nos céus. Kyle caminhava sobre a plataforma do distrito A sem qualquer deslumbramento, visto que aquela era a sua cidade natal. A vista era, sem dúvida, fantástica. As luzes quentes do mundo lá embaixo sempre produziam um brilho alaranjado na noite de Utopia, cortando através das nuvens, e sobre sua cabeça, o céu era feito de uma eterna aurora boreal que mesclava a imensidão azul marinho com verde e roxo, as estrelas tão vivas e acesas que produziam holofotes de luz divina a banhar a cidade. Por toda a Utopia estavam espalhadas pontes finas que conectavam uma plataforma à outra, em níveis diferentes. Do distrito A, o mais alto, onde membros do governo e do exército residiam, podia-se enxergar o mar de luzes brancas das outras plataformas, os lagos e árvores artificiais. As casas camponesas eram altas e tortas, cercadas por pinheiros, feitas de pedra e madeira.

A arquitetura de Utopia fora cuidadosamente planejada para causar conforto e maravilha em quem nela pisasse. Tudo era bastante iluminado, mesmo naquele horário. Ele atravessava uma belíssima praça imensa com uma fonte que jorrava água cristalina dia e noite, os postes de ferro preto guiando seu caminho, flores e arbustos enfeitando por onde ele passasse. Um casal namorava em um dos bancos da praça, a mão do rapaz subindo pela coxa da moça, que ria mas não protestava. Eles estavam distraídos demais para ver Kyle passando. Era um costume popular tirar o chapéu quando um membro do exército passava, pois em Utopia, qualquer membro que servisse ao governo era um verdadeiro herói dedicado à proteção do povo contra intrusos da terra.

As coisas não iam tão bem no andar debaixo. Mas não estraguemos uma noite tão bela com preocupações irrelevantes sobre aqueles que vivem no solo. Os problemas da terra de nada importam para o céu.

De qualquer forma, voltemos nossas atenções a Kyle Broflovski e seu caminho pelo estreito corredor que liga a praça pública do distrito A à grande sede do governador, como uma ponte de pedra que atravessa sobre um abismo. Kyle analisava o mapa levemente amassado enquanto caminhava, umedecendo os lábios distraidamente, segurando o pirulito com a mão livre. Seus sapatos faziam barulho a cada passo sobre o piso de mármore do longo corredor. A planta baixa estava riscada de vermelho com o caminho que ele deveria seguir, as entradas possíveis da sala de arquivo e onde os guardas noturnos estariam posicionados. Kyle revirou os olhos por já ter todas essas informações guardadas em mente e, mesmo assim, Cartman fez questão de registrar como se ele fosse um incompetente. Kyle mordeu o que restava do pirulito e jogou o cabinho no chão.

A sede do governador era uma imponente construção que remetia à antiga Casa Branca de Washington, na terra, destruída muitos anos atrás, quando Utopia tornou-se a nova capital do país. Era uma longa caminhada para atravessar seu pátio, repleto de estranhíssimos arbustos em forma de animais. A sede não servia mais como morada do reitor máximo da nação, como era a Casa Branca, mas sim servia como uma importante casa de arquivos, reuniões, registros, onde importantes decisões sobre o futuro da República eram tomadas. Kyle era sempre o escolhido para esse tipo de trabalho sujo por ser o mais rápido e esguio de todos os envolvidos de seu pequeno grupo.

Revisitaremos a natureza de tal grupo, seus membros e sua ideologia mais tarde. Isso não é importante no presente momento. A humanidade tem uma terrível tendência a olhar sempre para frente ou para trás, nunca para o agora.

O coração de Kyle palpitava com força dentro do peito e ele não podia ser visto. Os enormes arbustos de animais auxiliam nessa tarefa. Ele se movia como uma raposa que pode farejar a quilômetros de distância uma janela semi-aberta que lhe desse acesso à casa, dando a volta até o quintal dos fundos. Não era a primeira vez que Kyle executava aquela tarefa e, certamente, não seria a última. Deveria saber o caminho de cor àquela altura, porém, a construção era grande demais e seus corredores por dentro eram como os de um labirinto, propriamente arquitetados para confundir a pessoa que não devesse estar caminhando por eles. Seus pés revestidos por botas cor de caramelo tocaram delicadamente o chão de madeira, sem fazer ruído algum. Ele ajeitou o chapéu de aviação que não tivera tempo de tirar ainda, que protegia e esquentava seu escalpo, o cabelo um tanto úmido de suor. Estava mais seguro agora; não havia ninguém dentro da sede, os guardas costumavam fazer rondas somente do lado de fora. Era uma medida básica de precaução, afinal de contas, em Utopia não havia ladrões.

Kyle sorriu pela ironia do pensamento, puxando as luvas de couro uma de cada vez para secar as mãos suadas na própria calça, olhando em volta. Estava dentro da biblioteca. Cogitou se aproveitar da oportunidade para roubar alguns livros daquela imensa e generosa coleção, mas não acreditou ter tanto tempo assim para escolher propriamente. Era difícil encontrar livros naquele tempo; os educadores de Utopia acreditavam que livros eram uma forma maligna de lavagem cerebral, pois tudo o que estivesse escrito e impresso em páginas era tomado como verdade. Como um aviador oficial do Presidente, Kyle ainda tinha mais acesso a alguns seletos tipos de livro quando se esforçava muito e entrava em contato com as pessoas certas. Praticamente todos os exemplares que seu pai possuía foram queimados em praça pública quando ele era apenas uma criança, como todos os outros livros de Utopia. Não demorou para que a nação seguisse o exemplo. Os que não foram queimados estavam ali, guardados na biblioteca da sede, empoeirados.

“Quem sabe na saída”, Kyle pensou consigo mesmo enquanto colocava suas luvas e corria sorrateiramente para fora da biblioteca, abrindo a porta com toda a cautela como se alguém pudesse realmente ouví-lo. O silêncio da casa era tão assombroso que o mero ranger da porta se abrindo soou como um estrondo terrível. O corredor em que se encontrava era tão imenso que parecia não ter fim, toda a parede do lado direito era tomada por uma sequência de janelas que deixavam a baixa luz externa entrar e formar sombras estranhas na parede oposta e no chão revestido por um tapete vermelho e azul, as cores do orgulho americano. Kyle teria revirado os olhos e se perguntado se aquela casa poderia ser mais brega, mas isso somente se ele tivesse parado para prestar atenção em detalhes tão sutis. Não era o caso daquela noite. Ele estava preocupado demais em chegar ao fim do corredor, passando despercebido pelos olhares atentos dos retratos pregados na parede, um verdadeiro hall da fama de todos os grandes Presidentes que Utopia já conheceu, em tamanho real. Ele realmente se sentia observado.

Kyle verificou o mapa duas vezes sob a luz que vinha da janela para se certificar de que estava seguindo a direção certa do corredor, de tanto que o maldito demorou para chegar ao fim. Ele dava para o saguão principal, cujo teto era tão amplo que ecoava cada passo de Kyle em direção à escadaria, que se dividia em duas sob um arco barroco. No meio delas, havia um busto de cobre do Presidente. Era no topo da escadaria que ele encontraria umas tantas portas divisórias que dariam para cabinetes de conferência com lareiras extravagantes, estátuas intimidadoras de fantasmas de Governos passados, salões com pianos e lustres de cristal, mesas longas em madeira italiana onde importantes reuniões eram realizadas. Após uma última consulta no mapa e um resmungo baixo sobre o garrancho que Cartman chamava de letra, ele finalmente encontrou a porta de madeira vermelha talhada em detalhes dourados.

Era uma saleta muito menor do que as outras. A parede que a separava de uma sala de estar era feita de vitral, com ricos desenhos em art-nouveau, uma pequena mesa de canto redonda sobre a qual encontrava-se uma estátua de anjo ou de fada; um ser mitológico de asas em uma posição de dança, a mão charmosamente posta em frente ao rosto, lindos cabelos crespos presos em um coque. Kyle enxergava somente a silhueta da estatueta em frente ao vitral, devido à luz que provinha da outra sala, dando uma tonalidade rosada ao cômodo inteiro. O papel de parede era azul e um branco envelhecido que parecia amarelo, em damasco. Logo ao lado da estatueta, em uma mesa de centro em frente à namoradeira vermelha e antiga, havia uma gaiola dourada com um rouxinol azul de peito branco dentro. O pássaro eriçou as penas quando se deu conta de que havia alguém na sala lhe fazendo companhia. Kyle esqueceu-se do que estava fazendo ali por um instante, aproximando-se da mesinha de centro até ajoelhar, pondo as duas mãos sobre a superfície lisa de madeira, trazendo o rosto para perto da magnífica gaiola.

-Olá, amiguinho. - Disse ao pássaro com um largo sorriso. - O que você está fazendo aqui sozinho?

O rouxinol continuou imóvel, seus pequenos olhinhos de jabuticaba brilhando intensamente. Kyle aproximou o dedo da portinha da gaiola e começou a assobiar. O pássaro virou-se para ele, sacudiu as asas e cantou baixinho, como uma resposta apressada. Kyle abriu a gaiola do animal e delicadamente deslizou a mão para dentro, esticando os dedos médio e indicador para oferecer a ele, assobiando mais uma vez. O pássaro teve um momento ou dois de desconfiança, como era natural, mas pássaros em geral não pareciam capazes de resistir à energia de Kyle. E vice versa.

A pequena criatura pôs-se tímida sobre os dedos dele, cantando com mais confiança. Kyle tentava cuidadosamente puxar a mão para tirá-lo de dentro da gaiola, mas um som veio do outro lado da porta da saleta, assustando ambos. O rouxinol bateu suas asas atrofiadas pelo aprisionamento e afastou-se de Kyle o quanto pôde; ao mesmo tempo em que Kyle arrancava a mão de dentro da gaiola e virava-se em direção à porta com o coração acelerado. Nunca ouvira um barulho de passos humanos dentro da sede do Governador no meio da madrugada.

Havia uma sombra do outro lado do vitral. O ruivo se abaixou rapidamente e engatinhou em silêncio para o outro lado da mesinha de centro, oposto à porta, buscando um possível esconderijo para que não fosse necessário assassinar um homem naquela noite. Seria terrível ter que lavar sangue daquelas luvas, elas eram seu par preferido.

Não havia muitos móveis dentro da saleta atrás dos quais ele poderia se esconder.

-Merda. - Murmurou baixinho, tateando o próprio corpo para encontrar o canivete que Stan lhe dera. - Merda. - Cuspiu com mais ênfase.

Já não havia mais o que ele pudesse fazer. A porta já estava aberta e um homem já estava pondo os pés dentro do cômodo, um homem... Trajando calças brancas, um cinto de couro marrom afivelado com um relógio de bolso dourado, um colete preto por baixo de um sobretudo marrom escuro, uma encharpe listrada em torno do pescoço, uma cartola. Ele estava mascarado. Somente quando Kyle pôs os olhos naquela maldita máscara de corvo, de olhos assustadoramente redondos e um bico longo, é que seu coração voltou a bater normalmente. Ele caiu sentado com as pernas de lado, levou a mão ao peito e respirou fundo.

-Seu filho da puta. Você me assustou.

Uma gargalhada familiar, alta e desinibida, tomou conta do ambiente. Pelo volume da risada, ele parecia ainda mais certo de que não havia ninguém por perto para escutá-los.

-Desculpe por interromper seu momento com a ave. - O rapaz loiro disse em seu tom naturalmente sarcástico, tirando a máscara para revelar o rosto escultural de Kenny McCormick. - É por isso que eu não te deixo fazer nada sozinho.

Kenny se aproximou do outro para oferecer-lhe a mão, envolta em uma luva branca, para que Kyle se levantasse do carpete cor de vinho. A oferta foi aceita com resistência. Assim que se pôs de pé, Kyle bateu com as costas da mão com força no peito do loiro, mordendo o lábio inferior. A coisa toda só fez com que Kenny jogasse a cabeça para trás e proferisse uma risada ainda mais alta, com mais deleite.

-Que merda você está fazendo aqui afinal?!

-O que você acha, Kyle? Eu disse que viria com você.

-E eu me lembro muito bem de dizer que você só iria me atrasar. - O ruivo ajeitou o chapéu no topo da cabeça e passou as mãos na própria bunda para limpar a poeira, observando enquanto Kenny movia-se graciosamente pela sala, o piercing em seu nariz reluzindo pela luz sinuosa que passava pelo vitral, apoiando-se na bengala que sempre carregava consigo. Kenny alegava que precisava da bengala por um defeito de nascença na perna esquerda, mas Kyle sabia que ele usava o fato de ser levemente manco como desculpa. A verdade era que Kenny achava a bengala charmosa, quase como uma parte do seu ato constante de ilusionismo.

O loiro prendeu a máscara no cinto e começou a vasculhar pela estante repleta de pequenas estátuas, todas cobertas em poeira. Pegou uma em sua mão, de um garotinho brincando de bola com seu cachorro, e sacudiu o bibelô próximo ao ouvido ao mesmo tempo em que dizia, de costas para Kyle:

-E eu me lembro de dizer que você estava errado.

-Foi o Cartman que te mandou, não foi?

Kenny negou com a cabeça, largando a estátua e inclinando-se um pouco para olhar na prateleira debaixo.

-Stan, na verdade. Ele diz que você tem se rebelado um pouco contra as regras.

-Isso é ridículo!

-É?

Kyle levou as duas mãos à cintura e suspirou fundo.

-É, bem, nós seríamos executados se fôssemos pegos aqui. Achei que desobedecer regras imbecis fosse justamente o propósito do que fazemos.

-O que você quer dizer com “executados”? Ninguém executa ninguém em Utopia. Essa é a cidade dos sonhos, criatura inocente. - Foi então que Kenny se virou para ele com um sorriso sarcástico, oferecendo uma piscadela antes de voltar sua atenção à estante, analisando uma por uma as pequenas estátuas com os olhos.

-Isso não é engraçado, Kenny. Eu ouvi que eles trouxeram mais uma leva de estrangeiros lá debaixo para serem escravizados.

-É claro que trouxeram, Kyle. - Seu tom, enfim, parecia sóbrio e cansado. Ele segurava uma pequena estatueta de bailarina em uma mão, apoiado com a outra em sua bengala. - Stan tem a cópia dos papéis de posse. É isso que eles fazem, se aproveitam do inferno que é lá embaixo para convencer as pessoas de que é aqui que elas querem viver, a terra da liberdade. Elas não sabem que aqui elas são animais. É o que vai continuar acontecendo se você não me ajudar a encontrar a estátua certa. Agora vamos.

Kyle apenas deu a volta na mesinha de centro para sentar-se na namoradeira e cobriu o rosto com as duas mãos. Kenny já estava agachado a essa altura, olhando nas primeiras prateleiras da estante.

-Caralho, quantas estátuas esse doente coleciona? - Resmungou baixinho, mas Kyle não o escutou.

-Eu estive pensando, Kenny. - Disse enfim, após uma longa pausa, unindo as mãos sobre as coxas. O outro não parou de procurar para ouví-lo. - Nós... Nós, aviadores, somos as únicas pessoas com acesso, dentro e fora de Utopia. Talvez eu e você pudéssemos...

-Não. - A resposta veio imediata, em uma voz muito mais rígida do que ele costumava usar. Kenny endireitou-se e virou em direção ao outro, seu rosto agora carregado de compaixão. - Você acha que eu já não pensei nisso? Em tirar gente daqui com os nossos planadores? É muito arriscado. Stan ficaria louco só de te ouvir falar isso.

-Ele nunca precisaria saber. Poderia dar certo.

-É? Tudo bem, digamos que você salve meia dúzia de pessoas com essa ideia idiota, aí você é pego. Morre você e mais quanta gente junto? Tem outras formas.

Diante do silêncio de Kyle, Kenny voltou a procurar por outra estante. O ruivo permaneceu com a cabeça baixa, as pernas unidas, imerso em pensamentos paralisadores. O que lhe trouxe de volta àquele plano de realidade foi o som do rouxinol se movendo pela gaiola. Kyle fez contato visual com o pequeno pássaro durante algum tempo antes de debruçar-se sobre a mesinha de centro para fechar a portinha da gaiola. O som chamou a atenção de Kenny.

-Você não vai soltá-lo?

-Não. É inútil. Olhe as asinhas dele, ele já não saberia mais voar mesmo. Não sobreviveria longe daqui.

-Nossa. Que analogia fodida.

Kyle franziu a testa em irritação e voltou seu olhar ao chão durante um momento. Kenny chegou a apoiar a bengala na parede de tijolos antes de prosseguir com sua busca, o que começou a irritar o ruivo.

-O que você está fazendo?

-O que parece?! Stan não disse que era uma porra de uma estátua que abria a passagem?

-Kenneth, por favor... É esta aqui. - Levantou-se da namoradeira de veludo vermelho para alcançar a estátua de anjo que louvava os céus. A maldita coisa deveria ter sido construída em uma época em que esse tipo de símbolo religioso ainda era aceitável. Não precisou vasculhar muito a estatueta, apenas torcê-la para a direita algumas vezes, aproximando o ouvido até escutar o clique. O mecanismo por dentro da parede soltou a tranca de uma porta no teto, fazendo com que uma escada de madeira caísse de cima, causando um estrondo desagradável. Kenny agarrou sua bengala em defensiva, encolhendo-se de susto.

-Ora. - Endireitou-se, cobrindo a boca para tossir pela poeira que a revelação ergueu. - Se você sabia que era essa, por que não falou antes? Me deixou procurando que nem um idiota.

-E não era óbvio?!

Kyle não esperou resposta; dirigiu-se à escada e a inspecionou cuidadosamente, desconfiando de sua segurança. Pôs o pé no primeiro degrau, segurando-se nos degraus acima antes de soltar todo o peso sobre a madeira frágil. A escada rangeu, mas sustentou. Kenny pigarreou antes de colocar-se atrás dele para subir, resmungando baixo.

-Óbvio demais. Não pensei que Gregory seria tão estúpido de colocar uma estátua tão evidente como chave pro compartimento secreto dele.

-Você desconfia demais do que está bem à sua frente.

O cômodo acima era muito semelhante a um sótão, embora não ficasse no último andar. Não havia janelas; era um quarto pequeno com um arco que dava para um corredor estreito, revelando outro cômodo exatamente do mesmo tamanho, com as mesmas características. O teto era baixo o suficiente para que eles precisassem se curvar, como se fosse apenas metade de um andar. Por todos os lados que se virassem, havia pilhas e mais pilhas de papéis, envelopes amarrados por barbantes, cartografias secretas e mapas de Utopia.

-Caralho, como fede a mofo aqui. - Kenny sussurrou, como se agora estivessem mais expostos do que lá embaixo.

-Aqui. - Kyle foi quase engatinhando a uma caixa, com dificuldade de andar rápido e curvado ao mesmo tempo. Retirou uma das diversas teias de aranha com a mão antes de abrir a caixa de papelão; era como se a cada passo que dessem dentro daquele abafado cômodo, os restos de madeira corroídas por cupins caíssem. Sacou seu canivete para abrir a fita isolante que mantinha a caixa fechada e começou a despejar seu conteúdo ao chão. Papéis amarelados, as pontas quase alaranjadas, a tinta da impressão desbotando.

Apressado, Kenny puxou do casaco dois sacos de pano e ajoelhou-se ao lado dele, tomando alguns calhamaços em mãos para tentar analisá-los. Era difícil ler no escuro. Aproximou o papel dos olhos estreitos.

-Tem certeza de que é isso que Stan queria?

-Tenho. - Mentiu. - E se não for, de algo servirá. Gregory não guardaria nada em um compartimento secreto se não lhe comprometesse de alguma forma. A ele ou ao seu pai moribundo. Ande logo, Kenny.

O loiro obedientemente começou a socar em seus sacos de pano tudo o que conseguisse identificar com o carimbo dourado de Gregory. Talvez seja uma hora pertinente para esclarecer o que está sendo feito aqui. Gregory de Yardale, filho do Presidente da nação, conduz a delicada rede governamental desde que seu pobre pai caiu de cama, abatido por uma cólera não identificada. Na realidade, Utopia era tomada por uma espécie de epidemia de doenças desconhecidas do mundo debaixo. Era uma infeliz ironia que o velho Presidente fosse vítima de doenças que, aos cidadãos da terra, não passaria de uma mera gripe; a maioria deles já desenvolvera uma imunidade a determinadas doenças com as quais os Utopianos jamais tiveram contato.

-Você viu a quantidade de retratos que aquele bostinha pendurou de si mesmo pelos corredores dessa casa? - Kenny comentou, fechando um dos sacos pela cordinha. - Narcisista do inferno. Aposto que ele está é contente, torcendo para que o velho morra logo.

Kyle não havia reparado nisso, mas também não se importava. Ajudou Kenny a carregar um dos sacos pesados, cheios de papéis amassados de obras superfaturadas, desvio de verba, contas secretas em países do subsolo (pois sim, nações foram construídas também embaixo da terra, nas áreas em que a poluição tornou o ar impossível de respirar. Boatos corriam de que o subsolo era a verdadeira terra de ninguém, tomada civilizações selvagens). No fim das contas, Kyle deu-se conta de que não teria sido capaz de segurar tudo aquilo sozinho e que Kenny não era tão lento quanto parecia. Os dois homens não tiveram dificuldade de passar despercebidos pelos inúteis guardas noturnos que dormiam em seu turno, pois o que um cidadão de bem faria vagando de madrugada, arrombando sedes governamentais? E Utopia tinha somente cidadãos de bem.

Kenny soltou uma gargalhada enlouquecida quando estavam longe o bastante, correndo para atravessar a ponte até a plataforma do exército. Kyle mandou que fizesse silêncio, preocupado em não accordar os oficiais, mas também tinha um sorriso imenso no rosto. As nuvens corriam lentas por baixo deles, como um borrão macio de tinta cinzenta no céu escuro, aceso de estrelas. Ao longe, na vila militar, podiam ver a pequena casa do general; a luz da sala estava acesa. Stan os esperava.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...