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História Utopia - Et in Arcadia ego


Escrita por: caulaty

Capítulo 11 - Et in Arcadia ego


Christophe DeLorne nasceu na França, no subsolo parisiense. Quem o auxiliou na chegada ao mundo cão em que viveria foi uma parteira cigana do acampamento em que sua mãe residia. A comunidade cigana foi uma das primeiras a ser enxotada para as cidades do subsolo em todo o mundo, antes de as condições climáticas exigirem um êxodo de grande escala. Era uma forma de desaparecer com aqueles que incomodavam lá em cima. Quando a mãe de Christophe nasceu, a comunidade já estava estabelecida e com raízes fincadas no chão, o que mutilava um pedaço do que os tornava ciganos para começo de conversa. Ela nunca conheceu a vida andarilha. Não havia espaço para isso no subsolo. A sobrevivência era prioridade.

O homem que criou Christophe DeLorne não era seu pai biológico. Ele carregava o sobrenome da mãe, pois na comunidade cigana o nome do pai não era mais importante. Mas todas as coisas que um pai deveria fazer, Alfonse fez. Era um homem com um dente de ouro e cabelos encaracolados, olhos muito verdes e pele mais escura, como a maioria dos ciganos. Ele tinha tatuagens nos braços e a mãe de Christophe o amava profundamente. O pai biológico de Christophe, homem que lhe emprestara seu DNA e nada mais, era um homem da superfície. Um desbravador importante de cabelos dourados que gostava das mulheres ciganas. Com onze anos de idade, Christophe compreendeu que foi resultado de um estupro.

Mas nasceu com os traços dos ciganos, os cabelos escuros de sua mãe e os olhos castanho-esverdeados, quase amarelos, como os de sua avó materna. Christophe rejeitara a superfície até mesmo no corpo. Seu pai sonhava em conhecer o mar. Havia o mar artificial do subsolo em algumas regiões mais ricas, que investiam muito dinheiro em imitações climáticas de tudo o que havia lá em cima. Mas seu pai nunca quis ver o mar artificial. Sonhava em poder subir. Christophe nunca pôde compreender esse sentimento. Era muito semelhante à sua mãe nesse sentido. Era reservado e forte como ela. Seu pai já era um homem carinhoso e de sorriso fácil.

Cresceu em uma cultura que lutava para preservar tradições. Aprendeu malabares, era excelente com lançamento de facas, sabia dar um soco como ninguém. Seu pai lhe fez as primeiras tatuagens, ensinando como era importante desenhar sua história no corpo. Sua mãe nunca fez uma tatuagem na vida, talvez porque havia mais coisas que ela gostaria de esquecer do que se lembrar.

As coisas começaram a perder o rumo quando ele era adolescente. Demorou que as rebeliões atingissem os ciganos, que viviam marginalizados daquela sociedade de qualquer maneira, mas isso mudou quando muitos deles decidiram se unir à luta pela independência das cidades subterrâneas. Era curioso ver seu povo lutando por um pedaço de terra, isso nunca foi importante antes. Agora era, quando eles já não tinham mais para onde ir.

Seus pais também se tornaram guerrilheiros. Christophe cortou os cabelos de sua mãe com uma navalha aos dezesseis anos de idade. Foi o momento em que ele começou a compreender a guerra. Desde aquela época, ocorriam boatos de que estavam recrutando pessoas para trabalhar na cidade dos céus, com a promessa de uma vida digna. Sua mãe sempre disse que preferia morrer a ser levada voluntariamente para os Estados Unidos.

E, de fato, morreu em um confronto armado com os federais que eram enviados constantemente para "apaziguar" a situação. Levou dois tiros na barriga e um no peito. Os ciganos nunca seguraram armas de fogo, somente facas. Seu pai nunca mais foi o mesmo depois disso. Talvez tenha morrido de tristeza, depois de cinco anos definhando, mas o diagnóstico médico da morte do pai foi um vírus devastador que estava se alastrando no subsolo. As pessoas lá debaixo também serviam como cobaias de vacina para os cientistas de cima. Não era incomum que algo desse errado e uma doença nova surgisse, dizimando uma parte da população. Isso também tornava as pessoas do subsolo imunes geneticamente a coisas que matariam quem vivia lá em cima.

Alfonse viveu o bastante para fazer do seu filho um homem. Christophe teve certeza de que ele foi o único motivo pelo qual seu pai continuou vivo. Os dois se afastaram da resistência e mudaram de cidade, deixando para trás a comunidade cigana.

Foi somente quando o pai morreu que Christophe voltou às rebeliões. Estava completamente sozinho no mundo. Enterrou seu pai debaixo de uma figueira artificial. A pá que usou para enterrá-lo tornou-se sua principal arma. Decidiu ir aos Estados Unidos, o principal núcleo de resistência subterrânea. Era difícil viajar, ainda mais sem dinheiro, sem documento. Voltou a Paris para reencontrar os amigos de infância, os amigos de seus pais, quem estivesse vivo. Foi um Boliviano que arrumou uma viagem clandestina para os jovens que quisessem se unir à resistência. Não levaria ninguém com mais de trinta. Christophe tinha vinte e um.

Não havia governo lá embaixo, mas em cima era uma outra história; o Boliviano levou cerca de vinte jovens europeus (quatro destes eram amigos de Christophe) em um trem, depois um barco, depois um trem de novo. O primeiro trem era um de carga, que fazia um caminho secreto do subsolo para a superfície. Servia para levar suplementos. Eles foram escondidos entre várias caixas, dormindo e acordando. Christophe jamais se esqueceria da primeira vez que viu a luz natural do sol entrando pelas frestas do vagão. Quando chegaram ao seu destino e a porta do vagão abriu, pensou que ficaria cego. O sol ardia seus olhos de cigano e sua pele, e bem à sua frente havia o mar. Exatamente como seu pai sempre descrevera; não, maior, mais extraordinário, uma coisa azul que parecia viva e parecia não ter fim. Estavam num porto, com o dia recém amanhecido. Era como se seu pai estivesse ali ao seu lado dizendo que tudo daria certo. Vomitou todos os dias na viagem de barco. A comida de cima era estranha, o ar era estranho.

Nos Estados Unidos, ele aprendeu o que era segurar uma arma. A coisa era muito mais violenta por lá. Errava muito quem pensasse que os militantes eram selvagens; a organização dos resistentes mantinha as terras subterrâneas nos eixos. Christophe aprendeu inglês, aprendeu a matar como eles e a viver sozinhos nos seis anos que viveu transitando por cidades diferentes, sempre em condições precárias. Ainda carregava sua pá. Preferia matar com ela do que com armas de fogo.

-Como o senhor foi capturado? - O comandante perguntou, arrancando-lhe do estado de nostalgia.

Estavam em uma sala pequena, porém elegante, com um ventilador de teto sobre suas cabeças. Christophe detestava esse tipo de coisa pendurada que corre o risco de cair a qualquer momento. Parecia irresponsável. Kyle estava de pé um pouco atrás, de braços cruzados, com o uniforme oficial das forças aéreas. Estavam no quartel general de Washington, em terra firme. A coleira inutilizada de Christophe estava sobre a mesa do comandante, em um saco plástico.

Christophe estava sentado à mesa em uma cadeira vermelha e confortável, com os braços apoiados, as pernas abertas. Tinha os cabelos sujos, vestia uma camisa cinza rasgada no ombro e uma calça preta surrada, as roupas bem amarrotadas pela longa viagem no avião do capitão Broflovski.

-Ele não fala? - O comandante perguntou ao ruivo, que havia se escorado na parede.

O ventilador de teto fazia barulho.

Kyle respirou fundo e inclinou o tronco um pouco para frente.

-Christophe. Você está bem?

-Desculpe. - Respondeu de repente em seu sotaque francês carregado. - Qual foi a pergunta?

-Como você foi capturado? - Ele respondeu impaciente. O comandante era um homem gordo, alto, de cabelos que começavam a ficar grisalhos. Tinha um bigode bem farto que ainda era preto, com poucos fios brancos aparecendo. Parecia ter dois queixos. Cheirava a queijo. Suava muito dentro daquele uniforme, secava a testa com um lencinho e Christophe decidiu imediatamente que não gostava dele.

-Foi... Enquanto eu dormia. Muita gente vinha desaparecendo há um tempo, mas eles levavam vários de uma vez só. Nós dormíamos em alojamentos, os militantes. Eles invadiram durante uma madrugada, pela janela, silenciosamente. Eram profissionais. Eu só me lembro de acordar com outros gritando, mas eles jogaram uma bomba de gás que fez com que eu apagasse quase que imediatamente.

-Quem eram eles? Você viu o rosto de alguém?

-Não. Eles usavam macacões de borracha e máscaras de gás douradas com um bico, como se fosse uma ave.

Kyle estremeceu em silêncio só de imaginar a cena. Tinha os braços nas costas, segurando o próprio pulso. Assentiu com a cabeça para o comandante, que lançava olhares ao ruivo a cada cinco ou dez palavras que Christophe dizia, como se precisasse de reafirmação. Ainda não confiava nele. O Toupeira percebia isso, naturalmente, mas apenas umedecia os lábios e se ajeitava na cadeira para não dizer nada a respeito.

-O condor é o símbolo de Utopia. - Kyle disse baixinho. - Muitas máscaras e apetrechos do governo são confeccionados para parecer com um condor ou uma ave.

-E depois?

-Depois eu acordei pelado em uma câmara junto com mais dez companheiros de militância. Nós fomos torturados durante dias. Eu não sei quantos. - Sua voz saía muito rouca e sóbria, estremecendo na garganta arranhada, mas plana e sem emoção. Ele tinha as mãos entre as coxas, como se estivesse algemado.

-Onde era isso? - O comandante perguntou sem qualquer alteração, com uma frieza que incomodou Kyle profundamente.

-Nova York.

-E como o senhor sabe disso?

-Porque eu ouvi algumas vezes os guardas conversando. E eu vi a cidade de cima quando nos levaram pro avião. Só porque eu morei a vida toda literalmente em um buraco debaixo da terra não significa que eu não saiba reconhecer Nova York.

O comandante esfregou o queixo e soltou o ar de forma barulhenta. Sobre a mesa, havia um gravador rodando, uma luzinha vermelha acesa. Christophe tinha a coluna perfeitamente ereta, longe do encosto da cadeira, imóvel, o rosto apático encarando o outro homem de frente. Encarava-o quase sem piscar. Por um segundo, Kyle teve medo que o Toupeira avançasse sobre a mesa e arrancasse a orelha do comandante com os dentes.

-Certo. - Foi tudo o que o comandante respondeu, tomando algumas notas em uma folha rabiscada que havia à sua frente. Respirava muito alto. Christophe não gostava de gente que respirava alto. - E fizeram o que com vocês?

-Me acorrentaram pelos braços pra suspender meu corpo e usaram máquinas de choque, depois alicates, depois fogo. Descobriram que eu reagia mais aos cortes. Começaram a usar facas.

-Você via o rosto deles? - O homem perguntou, ainda escrevendo, sem levantar a cabeça.

Christophe fez uma pausa, engolindo o acúmulo de saliva na boca, mantendo os lábios em uma linha reta e os olhos reluzindo de raiva, as sobrancelhas levemente franzidas.

-De alguns. Não dos que torturavam, a maioria usava máscaras. Mas não os guardas.

-Certo. E o que exatamente queriam com isso?

-Informações. O governo não quer perder a propriedade sobre o subsolo. Estão tentando acabar com as rebeliões e instaurar uma ordem lá embaixo há anos.

-E você deu alguma informação? - O comandante só espiava de vez em quando, a boca carnuda levemente aberta o tempo inteiro, estudando-o com desconfiança antes de voltar a se controlar no seu papel.

Christophe sorriu com o canto da boca e caiu com a cabeça de leve para o lado, afastando assim o cabelo de frente dos olhos.

-Eu não disse uma palavra sequer. Aqueles homens nunca ouviram a minha voz.

O comandante só respondeu com um som afirmativo, balançando um pouco a cabeça. Kyle se desencostou da parede, andou um pouco pela sala estreita e começou a esfregar os olhos. Já era tarde da noite. Não havia muita gente no quartel. Fora daquela sala, tudo era silêncio. Começou a se sentir claustrofóbico ali dentro. Christophe podia ver gotas de suor descendo pela face do comandante. Kyle foi até a janela para tentar respirar melhor.

Christophe o observou nesse meio tempo, ajeitando-se na cadeira. Pigarreou e umedeceu os lábios devagar.

-Muito bem. Isso ainda em Nova York, você diz?

-É.

-Quanto tempo você passou nesse lugar? O que era, um galpão?

Christophe encolheu os ombros.

-Eu não faço a mínima ideia de quanto tempo. Talvez tenha sido um mês, talvez seis. Era menor do que um galpão, eles nos mantinham em uma sala apertada e nos tiravam de lá só quando fosse para a tortura. Éramos em onze quando chegamos, mas nem apenas cinco foram para Utopia. Eu sei que eles fazem transporte em números pequenos de pessoas para que ninguém desconfie.Três morreram em Nova York. Eu não sei o que houve com os outros três, se foram transportados depois ou... A impressão que eu tive era de que eles estavam, depois de um tempo, nos selecionando.

-Como assim? - Finalmente, o comandante abaixou o lápis e apoiou os cotovelos na mesa, unindo as mãos em frente ao rosto.

-Pelas perguntas que faziam, pela forma como conduziam a tortura. Acho que os três que não foram levados foram os que não aprenderam a obedecer. Eles faziam joguinhos psicológicos, diziam que parariam de te queimar se você fizesse determinada coisa. Eu acho que estavam... Nos condicionando. Selecionando quem se tornaria um bom escravo.

Naquele ponto, Kyle teve certeza de que iria vomitar. O tom inabalável da voz de Christophe era ainda pior, como se ele estivesse contando algo que não aconteceu com ele. Em seu corpo, era visível como ele retrocedia lentamente ao estado primitivo. Ele parecia tão desconfortável naquela cadeira, como se desse qualquer coisa para voltar ao chão. O ruivo queria por tudo tirá-lo dali.

O comandante esticou a mão para segurar a coleira dentro do pacote plástico transparente, analisando-a com curiosidade.

-E isto aqui?

-Colocaram ainda naquela câmara. Me sedaram com uma seringa, e quando eu acordei, estava usando isso. Foi um pouco antes de nos levarem para Utopia.

-E levaram você direto para a casa do presidente?

Christophe negou com a cabeça. Seu olhar estava caído, a boca enrugada como se estivesse prestes a vomitar. Mas respirou fundo e voltou a fitar os olhos do comandante.

-Gregory tem um pequeno aeroporto particular em um terreno baldio muito perto da sua casa. Tem tanta gente trabalhando pra ele... Tanta gente. Vocês nunca vão conseguir pegar todo mundo que faz parte disso. Aquela cidade é dele, o país inteiro é dele, todo mundo que vive na superfície deve algo a esse filho da puta.

-Por favor, rapaz. Atenha-se somente às perguntas. Deixe o resto conosco. - Por algum motivo, o comandante lançou um olhar preocupado na direção de Kyle ao dizer isso. Durou apenas um segundo. - Onde você ficou em Utopia antes de ser levado para a casa do Presidente?

-Bem. Me levaram para o porão de uma casa onde não mora ninguém, é só um lugar onde guardam documentos.

-Meu Deus. - Kyle murmurou baixinho, olhando pela janela. - A sede do governador?

O Toupeira virou o rosto para o ruivo e ficou encarando-o com uma expressão vazia, tentando entender o que ele havia resmungado. Sacudiu a cabeça sem força.

-Eu não sei o que isso quer dizer.

-É uma casa parecida com a antiga Casa Branca? Você viu de fora? - Kyle perguntou ansioso, desencostando-se da janela para se aproximar dos dois homens sentados à mesa. O comandante limpou a garganta e recostou-se na poltrona, alisando o queixo com o dedo indicador, observando um e outro.

-É. Exatamente. - Christophe respondeu com uma voz contida, parecendo quase perturbado pela reação repentina do ruivo. Era visível como estar naquele lugar lhe fazia mal. Kyle aproveitou a proximidade para repousar uma mão sobre o seu ombro, mas isso só pareceu piorar a tensão nas costas dele. - É no porão dessa casa. É uma casa velha, enorme, com um puta de um quintal. É lá que ficam os escravos novos, que Gregory ainda vai negociar.

O comandante voltava a tomar notas, incentivando com a cabeça para que ele falasse mais.

-E depois?

-Depois veio Gregory. - Ele respondeu com uma voz muito baixa. - Pessoalmente. Escolher quem ele queria da safra nova. - Um sorriso doentio brotou nos seus lábios. Ele desviou o olhar para o teto, sacudindo a cabeça de leve, rindo amargamente. - É sempre ele quem dá o nome novo aos novos bibelôs dele. Nos dias em que eu estive naquele porão, eu não conseguia parar de cavar. Eu não aguentava mais aquela merda, só queria voltar pra casa, então eu cavava compulsivamente. E isso chamou a atenção ele. Como eu estava entro de um buraco, todo sujo de terra. Ele disse que eu era igualzinho a uma toupeira e que me queria na sua coleção. Ele tem uma coleção. - Contorceu os músculos da fase em uma careta dolorosa, engolindo seco. - É assim que ele enxerga. Ele escolhe quem houver de mais peculiar, mais interessante. Como quem coleciona bonecas. Ele coleciona gente.

-Você ouviu algo enquanto morava na casa dele? Alguma informação crucial? Você passou o quê... Cinco meses com ele?

Christophe já estava com os ombros caídos para frente, curvando um pouco a coluna, contraindo o corpo como se quisesse se fechar em si mesmo. Olhava o comandante com fios castanhos de cabelo caindo sobre os olhos, com uma postura bem menos sóbria. Respirava pesado. Demorou um pouco para responder.

-Eu não sei quanto tempo. Ele me fazia limpar o chão. Era a única coisa que eu fazia naquela casa, eu limpava o chão. Mas ele não queria que eu trabalhasse, ele... - Interrompeu a frase pela metade, abaixando mais o rosto para esfregar os olhos. Parecia tão cansado, precisava tanto dormir. - O aviador que levava os escravos visitava com alguma frequência.

-Craig Tucker. - Kyle complementou, mas o comandante já tinha esse nome arquivado em sua gaveta. Ele apenas assentiu com a cabeça.

-Eu ouvi algumas conversas. Algumas negociações. - O Toupeira começou a esfregar as têmporas, apertando os olhos como se forçasse a memória. - Gregory dava muito dinheiro a ele. Toda vez que ele ia visitar. Mas eu não sei, Gregory era cuidadoso, nunca falava nada importante na nossa frente. Tinha mais de quinze escravos naquela casa, na coleção pessoal dele.

O comandante pegou o lápis enquanto ouvia atentamente, e o levou à boca para mastigar a borracha na extremidade, concentrado. Pela primeira vez, não pareceu apressado para fazer uma nova pergunta e obter uma nova resposta. Ponderava, alternando o olhar entre Christophe e o papel escrito sobre a mesa.

-E como você foi parar na casa dele? - Perguntou ao Toupeira, apontando com o lápis na direção e Kyle.

-Um dia, Gregory me disse que precisava dar uma lição em alguém. Que tinha alguém desafiando a sua confiança, se metendo onde não devia. E que eu era um bom ouvinte. Ele tem esse hábito estranho de elogiar e acariciar o nosso rosto enquanto fala... Ele sabia que o Capitão tinha mexido e tomado documentos dele e queria saber o que ele estava procurando. Então ele aparecia na casa do Capitão enquanto ele trabalhava, querendo coletar informação. Mas eu não respondia quando ele falava comigo. Acho que ele só não me batia para não correr o risco de deixar marca, para que Kyle não descobrisse que ele esteve lá.

Kyle levou a mão ao pescoço, o outro braço cruzado em frente ao abdômen, encarando o tapete vermelho no chão. Havia se esquecido de respirar. O comandante empurrou a cadeira para trás e ajeitou as folhas sobre a mesa, depois desligou o gravador. Secou a testa suada mais uma vez e guardou o lencinho dentro da farda. Fez um contato visual demorado com Kyle, até que o Capitão olhasse de volta. Depois, voltou-se a Christophe.

-Certo. Você me parece exausto, rapaz. Vá esperar lá fora um instante enquanto eu dou uma palavra com o Capitão Broflovski. Amanhã você volta, descansado, e conversamos mais um pouco, sim? Vá dormir.

Christophe virou o rosto em direção ao ruivo como se questionasse se deveria mesmo sair, mas não disse uma palavra. Retirou-se da sala abafada, aliviado quando pôs o pé para fora e respirou o ar mais limpo do corredor comprido e escuro. Sentou-se no chão – praticamente desabando sem perceber - cobrindo o rosto com as duas mãos, encolhendo-se com os joelhos dobrados, prendendo a respiração durante alguns segundos. Grunhiu baixo, arrastando-se um pouco pelo corredor até deitar próximo a uma porta fechada, virado para a parede, abraçando o próprio corpo. Tudo ali o incomodava. A sensação era a de um animal aprisionado, como se as paredes estivessem prestes a se fechar. Não queria estar ali, não queria dizer mais uma palavra, não queria entrar em um avião nunca mais. Fazia tantos anos que não chorava. Tinha vontade de vomitar, soluçava baixinho, mas os olhos continuavam secos, como se não fosse mais capaz de produzir lágrimas.

Kyle passou quase vinte minutos lá dentro ainda. O Toupeira ouviu Kyle gritando através da porta fechada, mas não conseguiu entender exatamente o que ele estava dizendo. E logo se conteve, como todo militar acaba fazendo uma hora ou outra. Quando a porta se abriu, de maneira quase violenta, e Kyle estava pálido como um cadáver. Sua expressão mudou quando viu Christophe no chão, como se tomasse consciência de uma coisa mais importante de repente. O Toupeira se sentou devagar, esfregando o rosto.

-Você tá bem? - Kyle sussurrou, ajoelhando-se ao lado dele. Tocou seu braço com cautela, e Christophe pôde sentir o quanto sua mão estava trêmula.

Assentiu com a cabeça lentamente, sem fazer contato visual com ele. Usou o corpo de Kyle como apoio para se levantar com cuidado, sentindo as pernas moles. Assim que se colocou de pé com firmeza suficiente, afastou-se ele como um bicho arredio. Kyle olhou para ele quase magoado, mas talvez houvesse uma outra coisa em seus olhos. Christophe não conseguiu perguntar a ele o que havia acontecido lá dentro.

Os dois ficaram em um hotel pequenininho cujo prédio era muito antigo. Stan se ofereceu para conseguir alojamento na sede militar, mas Kyle sabia que quanto mais privacidade naquela viagem estressante, menos complicado seria lidar com o Toupeira. Ele estava muito agitado no caminho até o hotel. Não quis comer nada ou tomar banho. Tirou a roupa assim que entrou no quarto, deixou apenas a cueca e se deitou no chão ao lado da cama, encolhido, abraçando o próprio tronco. Kyle tentou se aproximar dele, mas Christophe parecia ter voltado ao estado de não querer ser tocado de forma alguma, e no fim das contas, o ruivo queria apenas que ele dormisse. Ele se sentiria melhor assim. Deu a ele o travesseiro macio e o lençol, pelo menos. Eram duas camas de solteiro divididas por uma cabeceira; Christophe estava deitado ali entre elas. Kyle foi tomar banho. Quando saiu do banheiro, o Toupeira já estava dormindo.

Sonhou com os malabares que fazia na adolescência, com as três tochas de fogo que lançava ao ar como seu pai havia ensinado. Foi um sonho bom, leve. Seu pai não estava presente. Na verdade, Christophe estava em Utopia, fazendo malabarismo com as tochas sob aquele céu imenso e estrelado, no jardim enorme da sede do goverador. No sonho, usava apenas um colete de couro marrom, o peito nu, a calça que terminava rasgada no joelho como os ciganos se vestiam, sempre com pouca roupa porque no subsolo era muito quente. Quente como a sala do comandante.

No meio do sonho, queimou-se com uma tocha e acordou assustado, lembrando da sensação dos homens de Gregory queimando suas costas com ferro quente, com fósforos, gritando para ele contar onde seus amiguinhos se escondiam. O coração do Toupeira batia desritmado, martelando dentro do peito até que ele percebesse onde estava. Ele não se sentou. Continuou deitado de lado, imóvel, quase congelado no lugar. Estava quase embaixo da cama. Estava frio dentro do quarto, ele só se eu conta disso quando viu que Kyle o tinha coberto com um lençol. A boca estava seca. Havia alguém falando dentro do quarto, bem baixinho, num choro espremido. Christophe apurou os ouvidos para entender se aquilo era real ou ainda era parte do sonho.

Kyle estava sentado à mesa do quarto com um telefone conectado à parede, que trouxe consigo para que pudesse conversar com seus companheiros lá de cima. Não sabia se poderia contar com a ajuda dos militares de Washington para isso. Christophe não sabia com quem ele estava falando, mas sua voz curta estava carregada de pavor.

-Não, eu estou bem. Eu só me assustei. - Ele dizia baixinho para quem estava do outro lado da linha, tentando não acordar o Toupeira. - Foi horrível. - Agora ele estava literalmente chorando, com o cotovelo apoiado na mesa, cobrindo os olhos. A pessoa do outro lado da linha provavelmente o estava confortando, porque Kyle passou muito tempo sem dizer nada. - Eu sei. Eu sei disso... Olha, eu vou te contar uma coisa e eu preciso que você fique calmo. Kenny. É sério.

O Toupeira tentou fechar os olhos e ser envolvido pelo sono novamente, mas os ouvidos continuavam atentos.

-Eu preciso que você pegue o maior avião que você conseguir arrumar, enfie todo mundo que você conseguir e suma de Utopia. Os seus irmãos, o Stan, minha mãe, Nichole e Token, só... - A voz rompeu, trêmula. - Pelo amor de Deus, Kenny. Só faça o que eu estou dizendo. - Kyle fez uma pausa longa, hesitante, ouvindo o que o outro dizia. Quando abriu a boca novamente, teve dificuldade de manter a voz sob controle, batendo com a mão livre sobre a mesa como se fatiasse alguma coisa. - Eles querem queimar a cidade.

Christophe abriu os olhos novamente. Quase pôde ouvir a voz de Kenny de onde estava, e Kyle tentava não voltar a chorar por tudo que fosse mais sagrado.

-Eu não sei. Kenny. Eu não sei. O comandante só me disse que... Que nunca vai sair nada de bom de Utopia. Eles têm o povo americano ao lado deles, o ódio aqui embaixo está muito, muito inflamado. Ele disse que o povo nascido em Utopia nunca vai saber viver em outro lugar, que é um povo inútil e alienado. Eles só querem se livrar de Utopia. De tudo que a capital representa. De Gregory. Por favor, só saia daí e traga quem você puder junto. Antes do sol nascer. Agora que Christophe disse tudo o que sabia, eles não têm mais o que esperar. 



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