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História Utopia - Epílogo


Escrita por: caulaty

Capítulo 12 - Epílogo


No dia oito de maio de um ano qualquer no passado, a capital dos Estados Unidos ardeu em chamas. Utopia era seu nome. A nação inteira – e por que não o mundo todo? - parou para assistir em horror o fogo que se alastrava, consumindo a cidade dos céus. O caos era visível de diversos estados centrais, aqueles que viviam há anos sob a sombra da imensa capital. Havia gente na rua, de pés descalços no asfalto, de pijama, famílias inteiras abraçadas assistindo à luz vermelha que cortava acima das nuvens, a fumaça preta, Utopia pouco a pouco desaparecendo. Até mesmo aqueles que eram radicalmente contra o triunfo e o monopólio da cidade dos céus amanheceram de luto no dia seguinte. A televisão dizia que era culpa de um curto-circuito na rede elétrica, o rádio dizia que foi uma explosão na usina elétrica que se alastrou, a internet falava em conspiração governamental, mas ninguém podia explicar o que exatamente causou um fogo tão vasto que tenha consumido uma cidade inteira. Utopia era gigantesca e seu reinado foi infinito enquanto durou.

Dirigíveis foram enviados para tentar salvar a população e conter as chamas, mas quando finalmente chegaram acima das nuvens, aqueles que não foram queimados haviam morrido com a fumaça. Cento e vinte e duas pessoas foram salvas do fogo, uma parcela mísera da população utopiana. As construções majestosas foram abaixo, as estátuas espetaculares tornaram-se cinzas como se nunca tivessem sido outra coisa. O incidente ocorreu de madrugada e não havia praticamente ninguém acordado. O bondoso povo de Utopia era tão trabalhador e disciplinado, dormia muito cedo. Não eram treinados para acordar no caso de qualquer problema, pois não havia problema em Utopia. As pessoas dormiam tranquilamente, com suas portas destrancadas, quando foram consumidas pelas chamas.

Uma tragédia. Senhor, que tragédia. Era somente isso que o país repetia, abraçando seus próprios filhos, pois a única maneira de o ser humano sentir empatia é colocando-se no lugar do outro.

Era fato que a maioria da população americana tinha verdadeiro desprezo pela capital, mas ninguém desejou realmente que isso acontecesse. Ninguém poderia ser tão cruel. Aqueles que falavam em conspiração, “foi o governo”, “não há explicação lógica”, eram sempre tratados como loucos. Ninguém busca lógica diante da tragédia. Estavam ocupados demais lamentando por tantas vidas que desapareceram no ar.

Seis meses se passaram desde o incidente. O curso natural da vida urbana tomou conta de apagar a tragédia da mente dos cidadãos americanos. E não é assim mesmo que acontece? A pessoa está sempre preocupada demais com as notas do filho, com a roupa que tem que pegar na lavanderia, com a sogra que vem visitar, com o carro hipotecado, ninguém consegue ficar lembrando de uma desgraça cotidianamente durante muito tempo. Pelo menos quando esta não lhe atingiu diretamente. Muitos estados tiveram problemas na qualidade do ar, é verdade, precisaram usar máscaras durante um período de tempo, mas a vida voltava aos trilhos e ninguém falava mais de Utopia. Pouco a pouco, os destroços foram limpos. Os militares decidiram, por bem, cuidar dos rumos políticos da nação. Na pele, ninguém sentiu uma diferença muito grande. A América há muito não conhecia a democracia; era o próprio presidente quem daria o nome do seu sucessor, e este imperaria até o fim de sua vida ou até sua renúncia. Ninguém chorou a morte do velho presidente, que já estava contando os dias de qualquer maneira. Ninguém chorou a morte de seu jovem filho que era o rosto promissor para ser o novo punho de ferro que regiria os Estados Unidos. Muitos ficaram aliviados. Falava-se até mesmo de restaurar a democracia através do voto popular; mas parecia um sonho tão distante, tão utópico.

Eis algumas pessoas que ainda pensavam diariamente em Utopia:

Wendy Testaburger, que perdeu seu laboratório, seus inventos, seus livros, seus robôs, tudo aquilo a que dedicou sua vida inteira. Wendy tinha pesadelos quase todas as noites; isso quando conseguia dormir, pois sofreu de insônia a vida inteira. Em sua vida na terra, ela foi contratada pelo Núcleo de Inteligência Artificial de Washington, que aparentemente estava de olho em seu trabalho há um bom tempo. O governo ressarciu parcialmente sua perda financeira e ela pôde comprar uma casinha de madeira isolada, montou seu laboratório no sótão e adotou um cachorro. Estava deixando o cabelo crescer. Ligava para Stan todos os finais de semana, tentando manter alguma conexão com o mundo que conhecera antes.

Eric Cartman, que abandonou a carreira militar, mudou-se para Nova York e passou quase dois meses internado em uma clínica psiquiátrica. Quando falava com seus amigos de infância, dizia que estava gozando de perfeita saúde mental, que precisava de um tempo longe de toda a merda, algumas bagas fortes e um pouco de silêncio. “Além do mais, você tem cama e comida de graça. Eles não te deixam beber, é a única bosta”, disse a Kenny em mais de uma ocasião. Cartman sempre teve uma instabilidade mental violenta, mas isso piorou muito depois de perder sua mãe no incêndio. Ela não estava em casa quando ele foi buscá-la para partirem. Não conseguiu encontrá-la a tempo. Kenny teve que esmurrá-lo para conseguir colocá-lo no avião. Quando Cartman recuperou os sentidos, teve um ataque psicótico; mas já era tarde demais. Kenny e Kyle tentavam visitá-lo com o máximo de frequência possível, mas Nova York era muito longe e, no fundo, Cartman enxergava a pena nos olhos deles e seu estado piorava após essas visitas, mesmo depois que saiu da clínica. Dizia que ia começar a investir na carreira política, agora que havia botados de que o Estado se tornaria uma República. Kyle temia que ele estivesse falando sério; a última coisa que a nação precisava era de um novo ditador. Cartman era um homem bom, realmente era, mas não sabia lidar com muito poder.

Kyle e Kenny escolheram um mesmo destino. A verdade era que adaptar-se a uma possível vida fora de Utopia era difícil demais para qualquer um que tivesse nascido e crescido e criado-se como ser humano em um lugar tão isolado, onde não havia sujeira, miséria, crime, não diante dos olhos. Um lugar onde estranhos estavam sempre se cumprimentando na rua, onde crianças brincavam até tarde na rua e ninguém tinha medo de perdê-las, todos dormiam com as portas abertas. Não havia ratos, engarrafamento, multidões de pessoas indiferentes umas às outras, assalto, estupro, ar poluído, os problemas da cidade grande. Nunca conseguiriam se adaptar a um lugar como Nova York. Ao conhecer uma vida em terra firme, optaram por uma cidadezinha montanhesa no Colorado, isolada de tudo e de todos. Chamava-se South Park.

 

-Eles ainda não chegaram. Por que eles ainda não chegaram? - Kyle falava sozinho; parecia tão pequeno dentro daquele casaco marrom folgado, com bolsos enormes e baixos, cordinhas penduradas ao longo da abertura. Fazia muito mais frio lá no meio do nada, no aeroporto vazio do quartel miligar de Washington. Andava de um lado pro outro, o coturno preto cheio de fivelas fazendo barulho ao pisar nas poças de água, porque havia caído uma chuva fina há meia hora.

O ruivo verificava compulsivamente o relógio de bolso. Já começava a amanhecer, o céu era de um tom roxo escuro que gradativamente claerava para o azul; ainda parecia tarde da noite porque tudo estava coberto por nuvens. E as nuvens reluziam em laranja, um brilho que ganhava mais força a cada segundo. Estavam somente ele e o Toupeira, que permanecia agachado próximo ao chão com as mãos apoiadas nas coxas, a cabeça baixa, sonolento. Estava mal agasalhado, e Kyle queria poder fazer algo a respeito, mas não conseguia pensar em nada. Não conseguia parar. Seu coração batia tão forte dentro do peito que tinha certeza de que Christophe podia escutá-lo.

Já tinha feito preces a um Deus no qual ele sequer acreditava. Seu nariz escorria, pelo frio e pelo choro. Suas bochechas estavam coradas, os olhos fundos. Cobria o rosto constantemente. Christophe não dizia nada. Não respondeu a nenhuma das cinco vezes que Kyle perguntou onde é que eles estavam. O ruivo olhava para cima de forma tão íngrime que o pescoço começara a doer, mas não podia afastar seu foco do que acontecia lá em cima. Já havia começado. Tudo parecia acontecer em slow motion, como em um sonho, mas ao mesmo tempo, era rápido demais. Sacudia a cabeça negativamente, negando aquela realidade infeliz, maldita, impossível.

-Não. Não. - Repetiu baixinho, rolando os lábios por dentro da boca para não começar a chorar novamente. Pensando bem a respeito, nem conseguiria chorar se tentasse. Seu corpo estava em choque demais para reagir de forma tão primitiva. Um ser humano só chora quando consegue absorver o que lhe aconteceu. Kyle não absorvia absolutamente nada daquilo.

-E se eles não conseguiram? - Perguntou em voz alta, mas tudo o que saía da sua boca era uma materialização do que ele estava pensando. Christophe sabia que o ruivo não estava falando diretamente com ele. Kyle respondeu a si mesmo, por pensamento, que era uma viagem muito longa de Utopia ao solo a base militar de Washington. A demora era natural, especialmente naquelas condições climáticas.

Mas logo seu ouvido apurado reconheceu o som da turbina do avião; não era o de Kenny, era outro, muito maior; e a aeronave veio descendo daquele céu roxo e alaranjado, excruciantemente lenta, emitindo um barulho desgraçado para quem estava ali embaixo esperando. A máquina era belíssima, em um tom cobre e com asas semelhantes à de uma libélula, um bico comprido na frente, o símbolo das forças aéreas estampado. Christophe pareceu perturbado com o som, escorando-se um pouco para trás. Kyle só andava para frente. Quando o avião estava completamente parado, ele começou a correr; havia aterrissado longe, é claro, então ele tinha uma pista aberta inteira para correr na velocidade que as pernas pudessem carregar, o casaco levantando-se atrás com o vento que soprava por baixo.

Jamais se esqueceria da imagem de Kenny descendo daquele avião com as pernas trêmulas, coberto de suor, revelando os olhos vermelhos quando levantou os óculos redondos de aviação sobre a cabeça, por cima do chapéu. Usava um casaco de couro marrom e luvas grossas. Continuou parado no mesmo lugar durante um longo tempo, como se não conseguisse tirar os pés do chão por força alguma dessa terra. Quando Kyle chegou perto o suficiente para identificar sua expressão, sentiu calafrios por toda a espinha. Ele tinha olhos tão azuis e marejados, mas até então as lágrimas não escorriam. O peito subia e descia bruscamente, a face era de um homem que vira todos os horrores que o mundo tem a oferecer. Ele parecia muito mais em choque do que assustado, como se retivesse informações que destruiriam Kyle por dentro e não quisesse dizer nada, como se quisesse preservar alguma inocência nele. Tinha os lábios repartidos e trêmulos, mas não dizia nada. Kyle lançou o corpo contra o dele e agarrou seu pescoço para não soltar nunca mais; seus pés chegaram a sair do chão, tamanho foi o impacto. Prenderam-se um ao outro como se o mundo estivesse prestes a acabar, e realmente estava. O mundo que conheceram já não existia mais.

-Eu pensei que você estivesse morto. - Kyle murmurou com uma voz apertada, pressionando a boca contra o ombro do loiro, as lágrimas escorrendo sem que ele se desse conta. - Eu pensei...

-Kyle. - Kenny disse de forma tão fraca que o nome se dissipou no ar de repente. Agarrava a cintura dele com as mãos, apertando as pontas dos dedos na carne por baixo do casaco, coberta pelo tecido fino da camisa. Balançava a cabeça negativamente, a boca ainda aberta, mas palavras não saíam. - Kyle. - Repetiu baixinho, sem ar.

Quando o ruivo levantou a cabeça, Kenny estava chorando.

 

Nichole voltou para New Orleans, sua amada terra natal. Era muito semelhante a Utopia esteticamente, pelo menos em algumas partes. Token sentia-se bem lá, mas teria seguido Nichole ao inferno se fosse necessário. Era muito mais populoso, pensando no número de gente por metro quadrado, mas ainda preservava o ar de interior. Ele não tinha muito problema com isso. Gostava dos bondes e de estar rodeado de pessoas reais, que riam alto e cuspiam, sem medo de ser inconvenientes. Apaixonou-se rapidamente pela cultura. O fato de ser uma cidade movimentada ajudou muito quando decidiram abrir um café-restaurante. A economia estava fragilizada com o desaparecimento da capital e foi muito difícil nos dois primeiros meses. Parecia que as pessoas reconheciam que eles eram forasteiros, que sentiam neles o cheiro de Utopia. Mas a cidade os recebeu de braços abertos depois do estranhamento inicial; Nichole era, afinal de contas, uma nativa.

 

Ela usava um vestido listrado em preto e marrom rasgado na barra que ia até o meio das coxas, um espartilho apertado por cima, demarcando bem a cintura. Fazia frio, então ela lembrou-se de jogar um suéter bege escuro que caía largo em seu corpo, quase como um poncho. Sentia-se imunda. Não teve tempo de calçar sapatos quando Cartman foi buscá-los de madrugada, berrando atrocidades, dizendo que agarrassem o pouco que fosse importante e corressem. Token ofereceu diversas vezes seus próprios sapatos, mas ela recusou. Sentia o asfalto molhado da pista de avião sob os pés e, por qualquer motivo, a sensação lhe era agradável. Ela caminhou até o homem que estava agachado longe de todas as outras pessoas, a cabeça bem baixa. O homem ergueu o rosto um tanto assustado quando ela se aproximou o suficiente; seus olhos eram magníficos, duas esferas verde-amareladas hipnotizantes. Ventava. Ela colocou as mãos nos bolsos folgados do suéter.

-Você... Você é o Toupeira?

Nichole desejara visitar aquele homem desde que Kyle lhe contou sobre ele, mas nunca apareceu uma oportunidade apropriada. Ela notou a tatuagem que ele tinha em torno do pescoço, como arame farpado, e aquilo a deixou imensamente triste. Acima de suas cabeças, o céu ardia em chamas. Todas as pessoas que saíram vivas daquele avião deveriam ter estado lá em cima, queimando também. O sol nem bem havia nascido ainda, especialmente por conta da chuva que tinha voltado a cair. Era bastante fina, mas significativa. A pele tatuada (e colorida) do homem estava molhada, nua e exposta naquele vento maldito, mas ele não parecia se importar com isso.

Token havia percebido que ela se afastou do grupo, que mantinha-se muito próximo, relatando atrocidades em voz baixa. Sheila Broflovski não conseguia parar de falar, tremendo de forma preocupante. Cartman continuava dentro do avião. Stan continuava abraçado ao corpo de Kyle, os dois também um pouco afastados, e assim estavam há pelo menos dez minutos seguidos, o ruivo chorando baixo no ombro dele. Kenny estava sentado ao chão, no meio da pista, o rosto escondido nas duas palmas. De qualquer forma, Token observava a esposa de longe com os braços cruzados, cuidadoso, procurando não ser invasivo.

O Toupeira umedeceu os lábios, encarando-a como se não tivesse certeza do que responder. Assentiu lentamente com a cabeça, deixando bem claro na expressão que não estava confortável. Levantou-se de qualquer maneira, batendo a poeira da calça, um pouco acanhado, como se não soubesse ao certo como ficar de pé.

Nichole sentiu que não deveria invadir o espaço pessoal daquele homem, mas seu coração estava em carne viva e ela não conseguia pensar. Abraçou-o desesperadamente, encaixando-o em seus braços como faria com uma pessoa amada, apertando com toda a força que tinha nos membros. Christophe continuou imóvel, os braços caídos ao longo do corpo rígido, praticamente prendendo a respiração.

-Como é seu nome? - Ela perguntou baixinho ao ouvido dele, chorosa.

Ele soltou o ar dos pulmões devagar, relaxando um pouco os ombros. Pigarreou.

-Christophe. - Sussurrou sem voz.

-Christophe. - Ela repetiu sorrindo, mesmo com as lágrimas escorrendo pelas bochechas. Apertou-o mais forte. - Eu me chamo Abony. - Ela disse, e era verdade. Sentia que era verdade. Soluçou no choro espremido, escondendo o rosto no ombro daquele estranho. - Eu sinto muito por tudo o que fizeram com você...

Então ele ergueu as mãos pouco a pouco, até tocar as costas dela. Antes que se desse conta, estava-a abraçando também. E com força.

 

Stan foi o único que continuou com a carreira militar. Morava em Denver, para continuar prestando serviços à base, mas era próximo o suficiente de South Park para que continuasse vendo Kyle e Kenny com alguma frequência. Kyle morou com ele durante o primeiro mês de adaptação na terra, especialmente porque Stan mergulhou em uma depressão severa pela responsabilidade das milhares de vidas perdidas. Ele mal falava sobre isso, mas Kyle podia ver em seus olhos. Pediu centenas de vezes para que ele largasse o trabalho, que se tornasse qualquer coisa além de Coronel, mas Stan Marsh não sabia ser outra coisa. Kyle se manteve por perto porque sabia que Stan tinha uma tendência forte a afundar-se em álcool diante de qualquer situação dolorosa, mas o que eles viveram não poderia ser comparado com coisa alguma que tivessem passado antes. Stan ainda não conseguia falar sobre Utopia. Guardou aquilo em uma caixa e trancou em um armário no fundo da sua memória, indisposto a encarar as consequências da rebelião. Os militares da terra o tratavam como um herói pela queda do império de Gregory.

Kyle morou com sua mãe depois de sair da casa de Stan, porque continuava tendo ataques de pânico durante a noite e não conseguia ficar sozinho. Deu-se conta de que cuidar de Stan foi somente uma desculpa para ele mesmo não ter que lidar com sua própria mente. A convivência com Sheila não deu certo. No fim das contas, ele alugou uma casa pequena e Kenny passava a maior parte do tempo lá, em vez de no seu apartamentozinho minúsculo no centro. O loiro não precisava de muito espaço; nenhum deles precisava. Fazia um frio do diabo naquele lugar, o que tornava o calor do corpo de Kenny muito mais necessário.

Kenny jurava de pés juntos que nunca mais voaria em toda a sua vida. Continuava fazendo reparos mecânicos nos aviões de vez em quando e desenvolveu um fascínio por carros e seu funcionamento. Não havia muitos carros em Utopia. Também comprou um telescópio e criou uma relação profunda com os astros e corpos celestes, com tudo que havia fora da terra. Enquanto isso, Kyle continuava traduzindo documentos e trabalhando pelas relações internacionais, mas devidamente afastado da vida militar.

É tão simples explicar o que eles fizeram de suas vidas como se isso pudesse dar alguma dimensão de como lidaram com as sequelas, com os traumas. Kenny parou de usar a bengala. Kyle acordava sozinho na cama de madrugada algumas vezes para encontrá-lo no quintal dos fundos, dando com um pedaço de pau em pedras, na neve, no que conseguisse golpear. Bebia muito. Acordava de madrugada gritando o nome de Tweek, de Butters, das pessoas que ele precisou deixar pra trás quando teve que escolher quem colocar naquele avião. Kyle o abraçava forte enquanto ele chorava, repetindo um milhão de vezes “eu não tive tempo”.

E Kenny às vezes chegava em casa para encontrar Kyle sentado no banco do quintal, com seu casaco cinza de lã que mais parecia um cobertor, de meias e chinelo de pano, olhando para o céu e batendo os dentes de frio, mas ele nem sentia que estava quase congelando enquanto procurava por Utopia lá no alto.

Por fim, Christophe DeLorne.

Ele foi a maior preocupação de Kyle no começo. O ruivo tinha dificuldade de acreditar que ele se readaptaria a uma vida cotidiana social como todos os outros; oras, se cidadãos livres de Utopia já tinham dificuldade com isso, quem dirá um homem com tantas cicatrizes? Mas Christophe nem mesmo queria uma vida medíocre e adequada. Logo no primeiro mês, decidiu voltar para o subsolo, voltar à resistência e tentar encontrar seus irmãos de guerrilha. Kyle tentou convencê-lo do contrário, mas para ser honesto, não tentou muito. Aprendera a admirar tão profundamente aquele espírito que continuava inquebrado depois de passar pelo inferno que passou. Enxergava nele a necessidade de lutar ainda mais depois disso. Não era porque Utopia havia ruído que a terra do subsolo seria independente. A causa continuava de pé.

Então eles se despediram. Kyle foi com ele até a estação de trem, abraçou-o bem forte e fez seu melhor para não chorar. Ultimamente, pelo menos naquela época, sentia que já havia chorado todas as lágrimas quanto era humanamente possível. Não havia mais o que chorar. Isso não tornava mais fácil, porém, encarar aqueles olhos animalescos tão gentis e não sentir o aperto da saudade, mesmo antes dele ir embora. Christophe parecia diferente depois que Utopia desapareceu, como se uma pedra tivesse sido posta sobre uma época obscura de sua vida e ele nunca mais olhasse para trás. A resiliência daquele homem era a coisa mais extraordinária que Kyle já conheceu. Ele sobreviveria a qualquer coisa. Não precisava se preocupar com ele.

-Cuide-se, por favor. E dê um jeito de nos visitar.

Christophe segurou seu rosto com as duas mãos, ereto como um homem civilizado, aproximou o rosto e beijou seus lábios. Era um beijo de tchau, do tipo mais triste que existe, mas era como se o Toupeira tivesse reaprendido a beijar apenas para poder deixar esse gosto nos lábios dele. Foi calmo e lento, sem língua, apenas a sensação gostosa da barba roçando, do cheiro característico da pele do outro. Quando Christophe se afastou, ainda encarando seus lábios, Kyle soube que o amava. De qualquer maneira que fosse; isso sequer importava, era amor do tipo mais puro, mais livre que há.

Tinha certeza absoluta de que eles se veriam novamente quando Christophe virou por cima do ombro, pouco antes de embarcar no trem, e sorriu. E quando se encontrassem de novo, toda aquela escuridão estaria tão distante e Christophe não teria mais problemas em sentar em móveis e comer com talheres, num tempo em que o subsolo seria livre. Encontrariam-se em um boteco, dois anos depois, o Toupeira com uma garrafa de cerveja na mão, aparecendo sem avisar, com tatuagens novas e o cabelo raspado nas laterais. Mas isso é uma outra história.

 

* * *

 

Kyle continuava tendo insônia. Desenroscou-se do corpo magro de Kenny na cama quente, com todo cuidado para não acordá-lo, e vestiu um poncho de lã marrom escuro sobre a roupa amassada que usou para dormir. Arrastou os pés descalços para fora do quarto o quão silenciosamente pôde. A pequena televisão de madeira continuava ligada, no volume mais baixo, porque Kenny gostava de dormir com ela.

Eram três horas da manhã. A sala de estar estava imersa em escuridão, com apenas uma iluminação vagabunda dos postes da rua que mal passava pela cortina. Por conta disso, e pela lentidão do sono, demorou para que Kyle percebesse a silhueta sentada no divã em frente à janela. Só notou a presença de mais alguém quando já estava próximo demais. Levou as duas mãos à boca para não gritar. E continuou imóvel, com o coração martelando no peito, os olhos arregalados, acostumados à escuridão, tentando fazer algum sentido do que estavam bem à sua frente.

Quando o homem virou o rosto, já não estava mais contra a luz. Sua face parcialmente mecânica foi revelada, os tufos de cabelo loiro brilhando até mesmo no escuro. Ele não estava mais vestido daquela forma pomposa e extravagante como Kyle se lembrava, mas a pose era exatamente a mesma. Tinha as pernas elegantemente cruzadas, a postura impecável, as mãos repousadas na coxa. Kyle ficou esperando que ele dissesse alguma coisa, apenas para ter certeza de que não estava completamente louco.

-Ah, que agradável. Pensei que ficaria te esperando a noite inteira.

O ruivo não respondeu imediatamente. Sua respiração entregava o quanto ele estava nervoso. Detestava isso.

-Gregory. - Disse calmamente, dando um passo para trás.

-Fique tranquilo, meu pequeno. Eu não vim te matar.

Kyle teve medo de abrir a boca porque seu estômago revirava com tanta força que teve certeza de que gorfaria. Não estava em condições de enxergar as feições de Gregory; eis uma descrição imparcial da postura do cyborg: ele estava envolto por uma atmosfera tão triste, um olhar distante e uma voz muito baixa, características que jamais fizeram parte de sua figura em outra vida. Tinha uma perna cruzada sobre a outra e balançava um pouco o pé, como se ouvisse um jazz deprimente tocando em sua cabeça.

-Como...? - O ruivo deixou escapar, escorando-se à parede. A mão foi à boca mais uma vez, esfregando os lábios, o queixo, descendo pelo pescoço. - Como você...?

-Eu sabia que essa seria a sua primeira reação. Nem um olá, nem um “como vai você?”, absolutamente nada. Pois bem. - Limpou a garganta e esfregou as duas mãos, sua voz robótica tão densa e obscura. - Acho que é justo. Eu devo mais a Craig Tucker do que posso pagar em vida. Eu estava com ele quando... Bem, você sabe. Quando aconteceu. Estávamos discutindo. Ele queria extorquir mais dinheiro, sempre mais, aquele viadinho avarento. Então nós vimos, lá de cima, o fogo nascer. - Fez uma pausa. - Ele quis fugir. Eu paguei para que me levasse com ele. Naquele momento, eu soube que era o último bom uso que faria da minha fortuna. Ela de nada me vale hoje.

Enquanto ele falava, Kyle finalmente conseguiu despregar os pés do chão. Havia uma cômoda de madeira antiga, que pertencera a sua bisavó, logo ao seu lado na sala. Usava para guardar louça e toalhas de mesa. Mas na gaveta de cima, havia sua arma. O cano longo e dourado, a coronha de madeira. Nunca conseguiu se desfazer dela.

-O que vai fazer? Chamar o seu namorado? - Gregory perguntou com um sorrisinho amarelo, um deboche tão educado.

-Chamá-lo para quê, assistir enquanto eu estouro os seus miolos? - Kyle perguntou com um riso curto, maníaco, apontando a arma diretamente para ele. Mantinha sua distância segura. - Acho que não, obrigado.

Gregory continuou sorrindo. Não expressou reação alguma diante da arma.

-Sabe, Craig tinha uma quedinha por você. - Disse, como um amigo comentando uma fofoca no café da tarde. - É tão engraçado. Você sempre achou que ele tivesse ciúme do Kenny, porque eles são muito próximos... Eu acho que Kenny contou a ele que iriam pegá-lo. Acho que por isso ele estava com o avião prontinho pra partir de Utopia quando o fogo veio. Que amizade bonita, não acha?

-Que merda você quer aqui, Gregory?

O riso morreu aos poucos em seus lábios. Kyle podia enxergar seu rosto perfeitamente agora, o olho biônico ajustando-se para mirá-lo, uma luz vermelha atormentadora no lugar da pupila. Gregory umedeceu os lábios. Olhava para o nada (sem abaixar a cabeça) enquanto dizia:

-Eu quero saber como anda a sua consciência. O peso de todas aquelas vidas nas suas costas... Porque você se meteu onde não devia.

-Você é um monstro. - Kyle disse trêmulo, na voz e na mão que ameaçava com a arma, rangendo os dentes, começando a suar. - Como é que você pode me falar de consciência?!

O cyborg deu um suspiro dramático, abrindo a cortina para deixar mais luz entrar, encarando a janela.

-Eu sinto por todas aquelas vidas. - Murmurou em uma voz sonhadora, distante, que fez Kyle querer vomitar. - Cada uma delas. Você nunca vai entender. Conforme o avião subia, eu pude ver... Cada pedacinho da minha cidade sendo destruída, consumida pelas chamas. A cidade que meus antepassados cuidadosamente construíram, como um castelo de cartas. Era... - Ele suspirou novamente, levando uma mão ao peito e esfregando por cima do tecido da camisa surrada, apertando-o entre os dedos. - Era perfeito. Era absolutamente perfeito. E lá estava eu, como Cleópatra quando assistiu a sua fabulosa cidade afundando, acabando-se em água, tudo o que ela amava sendo arrancado do seu peito. Era assim que eu me sentia. Impotente. Eu teria dado minha própria vida se Utopia pudesse viver.

-Meu Deus. - Kyle murmurou com desprezo, franzindo os lábios, incrédulo. - Você está pouco se fodendo pras pessoas. Você não dá a mínima. A única coisa que te faz chorar é o seu ego megalomaníaco. Você tinha que ter queimado junto com aquele inferno.

-Ah, meu doce Kyle. Você sabe tão bem quanto eu que você não pode ser feliz na terra. Diga o que você quiser, mas você pertencia ao céu. Você pertencia a Utopia. - Gregory se levantou e começou a se aproximar lentamente, ignorando o cano da arma, estendendo a mão para tocar o rosto do ruivo. - Olhe só para você... Tão lindo. A estrutura óssea impecável, o rosto de um utopiano.

Kyle bateu com ódio naquela mão mecânica, machucando sua própria mão de carne, grunhindo como um bicho enquanto dizia bem alto:

-Não encosta em mim, seu porco! - Voltou a erguer o revólver, agora praticamente contra o peito de Gregory, o cano por muito pouco não tocando na carne dele. - Some daqui agora. Eu não tô brincando. Eu vou estourar a sua cara.

-Vá em frente. O que é mais um cadáver na pilha infinita que você já fez? Derrame mais sangue, se é isso que lhe satisfaz.

Mas Gregory não ficou parado esperando uma reação. Andou de costas até a janela, com as mãos levantadas como se estivesse mostrando-se desarmado. O sorriso doentio nunca deixou seu rosto. Kyle hesitou por um momento, mas abaixou o revólver devagarzinho. Enfim, Gregory deu-lhe as costas para abrir a janela.

-Sabe, - O loiro disse. - eu não estava mentindo quando disse que havia algo especial em você. Meu presente teve segundas intenções, é verdade, não posso mentir. - Ele virou somente o rosto para observar o ruivo por cima do próprio ombro. - Mas você sempre foi meu preferido. Mesmo sendo um menino tão mau.

-Eu nunca mais quero te ver na minha vida. - Kyle sussurrou com amargura, a arma apontando pro chão.

-Isso eu não posso garantir.

E com isso, Gregory pulou pela janela, elegante como um felino. Também não foi a última vez que eles se encontraram.



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