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História Utopia - Devedor de lata


Escrita por: caulaty

Capítulo 2 - Devedor de lata


 As luzes de Utopia nunca se apagavam. Era sempre uma cidade iluminada, o que fazia com que até mesmo o mais boêmio dos cidadãos – não eram muitos, verdade seja dita – se sentissem seguros de andar pelas ruas a qualquer horário. Da vila militar da Aeronáutica, era possível ver a cidade com o privilégio de um camarote na Ópera. A casa do Coronel, em especial, tinha uma das melhores vistas do Distrito A. Não é preciso dizer como um Estado tão nobre trata os seus fiéis servidores, é? Utopia só precisava de um competetente e preparado grupo de homens e mulheres para usufruir de todo o céu como seu campo de batalha, caso fosse necessário. Os membros da Aeronáutica eram tratados como reis, e os quatro protagonistas de uma possível rebelião eram, ironicamente, fiéis superiores das forças aéreas de Utopia.

A casa do Coronel era uma das mais altas, mais imponentes, o que em absoluto não combinava com a personalidade retraída do Coronel Stanley Marsh, o quarto e último homem a ser apresentado. Ele mantinha os braços atrás das costas, uma mão enluvada agarrando o pulso da outra, virado para a imensa janela de sua sala de estar. Não era confortável ou meramente semelhante às salas das outras casas de Utopia.

Em frente à imensa janela, havia uma escrivaninha de madeira escura, o computador de madeira sobre ela junto a uma pilha semi-organizada de papéis, uma pequena caixa revestida de couro aberta, por dentro revestida por veludo vermelho, guardando quinquilharias de valor sentimental. As paredes eram painéis escuros de tom chumbo, quase preto, escurecendo bastante o ambiente. Havia um lustre no teto alto, mas ele não estava aceso. O que iluminava a sala eram luminárias, a mais forte dela sendo uma de mesa, acoplada a um relógio enferrujado. No meio da sala, havia duas poltronas grandes de couro marrom com apoio para os pés, uma delas com um panos ocre envelhecido com franjas jogado sobre seu braço. Havia também muitas estantes que preenchiam o ambiente com um cheiro característico de mofo, mas os livros que Stanley tinha eram todos relacionados ao seu trabalho como Coronel. Não seria apropriado que ele lesse qualquer outra coisa.

Havia uma vitrola desligada, um globo terrestre e muitas cartografias pelas paredes que expunham todo o mapa aéreo de Utopia. Havia lâmpadas por toda parte, nem todas acesas, dando alguma vida ao cômodo. Stan era fascinado por modelos de avião, por motivos óbvios. Colecionava-os.

O Coronel demorou algum tempo para reagir à presença de seus dois homens. Foi o mordomo que os deixou entrar, um pequeno robô de cobre movido a vapor com apenas um olho que movia-se por esteiras e precisava urgentemente ser trocado, mas a inteligência artificial não permitia que ele fosse visto apenas como um pedaço de lata. Seu nome era Oz. Stan tinha um apego emocional a ele.

Não era incomum que entrassem na casa do Coronel para encontrá-lo contemplando a cidade de cima. Kenny deixou os dois sacos de pano carregados de papéis sobre a escrivaninha e apoiou as duas mãos sobre a superfície, encarando as costas do seu amigo de infância. Stan tinha cabelos negros que pareciam quase azulados naquela iluminação. Seu paletó marrom escuro tinha uma corrente dourada que ligava uma extremidade à outra, as calças de linho eram pretas e bem ajustadas. Ele usava um colete com bordas triangulares num tom mais claro do que a calça, puxando para um verde escuro, com botões dourados. Estava sempre apresentável.

Quando virou-se, revelou os olhos infinitamente azuis reluzindo no escuro. Atrás dele, a vista turva de Utopia iluminada fazia com que uma sombra decaísse sobre ele.

Em silêncio, deu os quatro passos que faltavam até a mesa abriu uma das gavetas para tirar seu cachimbo, calmamente colocando o fumo antes de acendê-lo e fumá-lo. Ao mesmo tempo, começou a retirar com apenas uma das mãos o conteúdo de um dos sacos, analisando-os sem dar uma palavra aos dois homens presentes. Kyle já havia se sentado em uma das poltronas quando Kenny se afastou da mesa, retirando a cartola para passar a mão sobre os cabelos levemente umedecidos de suor. Aproximou-se do ruivo para colocar um braço sobre o encosto da poltrona em que ele estava sentado, apoiado em sua bengala usando a outra mão. Quando Kyle ergueu o rosto para enxergá-lo, Kenny piscou com um dos olhos e lhe mandou um beijo de longe. Kyle tentou conter o sorriso ao desviar o rosto novamente, sem muito sucesso.

-Alguém viu vocês?

-Não. - Foi Kyle quem respondeu.

Eles esperaram cerca de oito minutos até que Stan tivesse inspecionado com cuidado os documentos trazidos, fumando do cachimbo e folheando cuidadosamente para que nenhuma folha se desintegrasse em suas mãos, muitas delas já roídas por traças. Stan nunca tinha pressa para nada.

Kenny já havia sentado na poltrona ao lado de Kyle, com a cartola e a máscara de corvo em seu colo, a cabeça encostada para trás e os olhos fechados, a bengala apoiada na poltrona. Kyle aguardava olhando para o chão, imerso nos próprios pensamentos.

-Isso é inútil. - Stan disse de repente, quebrando o silêncio da madrugada.

O loiro abriu os olhos e virou a cabeça em direção a ele, ao mesmo tempo em que Kyle se levantava.

-Como assim?

-Não há nada no nome de Gregory ou do pai dele. Aquele filho da puta sabe esconder os rastros. - O coronel fumou do cachimbo, chegando a fechar os olhos para apreciá-lo antes de soltar um grunhido frustrado, liberando a fumaça. Fechou o punho para bater com ele sobre a mesa. - Vocês não leram nada disso antes de colocar debaixo do braço e sair correndo?

-E quem é que tem tempo pra isso? - Kenny respondeu.

Antes que ele pudesse continuar, Kyle começou a andar em direção à escrivaninha para estar mais próximo do Coronel, falando em uma voz macia:

-Nós não queremos abusar da idiotice dos guardas.

-Deveriam. - Stan disse de forma autoritária, como se explicasse uma obviedade. Chegou a cuspir um pouco ao falar, gesticulando com a mão que segurava o cachimbo. - Vocês estavam no lugar certo, pelo menos?! A sala das estátuas, com a passagem no teto?

-Sim, Stan.

-Tem que haver alguma coisa naquele lugar que incrimine esse filho da puta. Nós precisamos de documentos sobre os experimentos biológicos que estão fazendo em estrangeiros de baixo, sobre a aquisição de escravos... - Ele pegou a primeira folha sobre a pilha com a mão livre e amassou entre os dedos. - Provas! Vocês entendem?!

-Nós fizemos o que o senhor mandou. - Kenny disse, levantando-se, deixando a cartola e a máscara jogadas na poltrona. - Encontramos a maldita sala, abrimos a caixa, trouxemos tudo o que podíamos do conteúdo dela. Talvez o senhor devesse...

-Você já não tem documentos da transição de escravos? - Kyle perguntou ao Coronel, interrompendo o outro. Ele sabia exatamente o que Kenny estava prestes a sugerir (“talvez o senhor sair dessa sala macabra e ir sozinho da próxima vez”) e não estava disposto a permitir. - Isso não é prova suficiente?

-Não para provar que Gregory é o dono desse monopólio. Não tem nada assinado por ele, ele não faz o trabalho sujo.

Stan pareceu acalmar-se de repente, esfregando a mão sobre os olhos cansados, sentando-se na cadeira e apoiando o cotovelo sobre a escrivaninha, o cachimbo ainda aceso. Ele raramente era tão irritadiço, Kyle sabia, mas eram três horas da manhã e a exaustão era evidente no rosto do Coronel. Kyle foi tomado por uma vontade fortíssima de abraçá-lo. Não se moveu.

-Quem diria. - Kenny disse sorrindo, levando as mãos à cintura. - Ele tem mais talentos do que nascer em berço de ouro. Impressionante.

Kyle lançou a ele um olhar de reprovação, embora fosse muito sutil sob uma expressão usualmente rígida. Era difícil ler o rosto dele. Kenny respondeu com um encolher de ombros respreocupado, verificando a hora no seu relógio de bolso. Stan guardava o cachimbo apagado, respirando profundamente.

-Você quer companhia? - O ruivo perguntou ao Coronel enquanto Kenny voltava-se para a poltrona, ajeitando a cartola no topo da cabeça.

-Não. Está tudo bem, eu só preciso dormir. Vão descansar, vocês dois. Precisam levantar cedo amanhã.

Como todos os dias, o sino da vila militar tocaria às sete horas em ponto. Pensar nas poucas horas de sono que teria já fazia com que os olhos de Kyle ardessem dentro das cavidades. Assentiu com a cabeça, embora Stan não estivesse olhando para ele, concentrado em analisar os papéis novamente – ainda que já os tivesse classificado como inúteis. O Coronel tirou um pequeno par de óculos de leitura e estreitou as pálpebras; a penumbra certamente não o ajudava. Aquilo foi uma indicação certa de que Stan não descansaria tão cedo, por mais que seu corpo implorasse desesperadamente por algumas horas de sono.

Kenny bocejava enquanto recolhia sua bengala e se dirigia à porta.

-Boa noite, Stan. - Disse, despreocupado em utilizar denominações formais quando estavam a sós. Eram amigos a vida inteira, afinal de contas.

-Nós vemos amanhã. - Kyle murmurou, hesitante, mas Stan estava imerso demais no material para responder. Apenas acenou com a mão para indicar que o ouvira. - Durma. Não fique aí a noite inteira.

Oz os acompanhou até a saída, tropeçando no tapete do hall de entrada da casa. Kenny precisou ajudá-lo a desenroscar o tapete de sua esteira. Oz lhes desejou boa noite em sua voz mecânica, porém empolgada, batendo a porta atrás deles com mais força do que pretendia.

A noite estava surpreendentemente agradável. O clima em Utopia nunca era desagradável, é claro, mas a temperatura havia caído um pouco, o suficiente para que Kyle abraçasse o próprio tronco em uma tentativa de se aquecer enquanto os dois caminhavam pela rua de paralelepípedos, passando por uma série de casas idênticas que comportavam os homens e mulheres das forças aladas e suas famílias. Havia um ar extremamente urbano na vila militar, com as crianças brincando tranquilamente pelas ruas durante o dia, pessoas trocando receitas com seus vizinhos, passeando com seus cachorros. Kenny passou o braço sobre os ombros de Kyle e o puxou para mais perto enquanto andavam, descendo uma pequena ladeira.

-Eu te acompanho até em casa.

-Por quê?

-Você não quer a minha companhia?

Kenny gostava de perguntar retóricas com um sorriso charmoso, brincando com a cartola usando a mão livre, entortando-a propositalmente como se isso o tornasse irresistível. Ele realmente era, de alguma forma que Kyle não sabia explicar.

Passaram pela casa de Kenny, que não era tão imponente como a do Coronel, mas a posição de Major lhe rendera uma moradia tradicionalmente vitoriana de dois andares, com uma arquitetura excêntrica que cabia muito bem com a personalidade dele. Como havia dito, acompanhou Kyle até sua casa sem qualquer cerimônia, conversando sobre os vaga-lumes verdes que apareciam naquela época do ano por toda parte. Nenhum dos dois puxou assunto sobre o que acabara de acontecer na casa do Coronel.

Era uma curta caminhada de dez minutos até a casa de Kyle. Kenny o acompanhou até a varanda, estendeu a mão para colocar alguns cachos dele atrás da orelha e sorriu.

-Está entregue.

Houve um momento de silêncio. Kyle pôs um pé em frente ao outro, aproximando-se sem chegar a dar um passo, esticou o pescoço, que já era naturalmente longo, e selou os lábios nos dele. A boca de Kenny tinha um formato que Kyle sempre achara delicioso, o lábio superior bem definido e o inferior mais grosso, sempre úmidos pois o loiro tinha o hábito de passar a língua sobre eles constantemente. Kyle roçou a boca contra a dele por um ou dois segundos, sentindo-os antes de encaixá-los. A resposta foi imediata, mas não agressiva; Kenny levou a mão para cobrir a nuca dele, enroscando os dedos pelos cabelos alaranjados, cuja cor ele simplesmente amava. O contato entre as línguas foi muito sutil, mas quente, o bastante para que os corpos se aproximassem ao ponto de haver contato entre o abdômen, o peito, braços envolvendo, a respiração levemente alterada.

Kyle não se demorou a afastar o rosto em somente alguns centímetros, mantendo os lábios contra os dele em um toque tão leve que mal podia ser sentido. Por fim, sorriu também.

-Você não vai mesmo me convidar pra entrar? Eu te trouxe até aqui. - O loiro sussurrou próximo ao ouvido dele, escorregando a mão que não segurava a bengada pela parte inferior das costas dele.

-Boa noite, Kenneth. - Kyle respondeu sem poder conter a risada, empurrando-o de leve.

Abriu a porta de casa e adentrou, espiando uma vez para ver se o outro já começara a se afastar. Kenny bateu com a bengala contra a porta antes dela se fechar, rindo, fazendo ameaças em seu tom juvenil. Logo, a porta estava fechada. Porém, não trancada. Nenhuma porta em Utopia precisava ser trancada à noite.

Foi só ao acordar na manhã seguinte que Kyle se deu conta do envelope dourado que havia sobre a mesa de centro de sua pequena sala. O sol brilhava com tanta força, como de costume, seus raios invadindo as janelas estreitas e cruzando as cortinas brancas, iluminando todo o ambiente. O envolope chegava a reluzir quando os raios solares o tocavam, brilhando pelo canto dos olhos de Kyle. A Apesar do sol intenso, a manhã continuava fria. O rosto de Kyle ainda estava inchado; ele não havia sequer lavado o rosto ainda antes de descer para beber um copo de água. Nunca chegou à cozinha. Em vez disso, caminhou lentamente até a mesinha de centro e tomou o envelope nas mãos, reconhecendo imediatamente as iniciais do filho do Presidente em dourado fosco, como um slogan oficial que Gregory colocava em tudo o que pudesse. Dentro, havia uma carta.

 

“Querido Capitão Kyle Broflovski,

 

É com prazer que eu o convoco para uma visita – informal - à residência presidencial este fim de tarde, após concluídas suas obrigações. Estarei aguardando a partir das dezessete horas em meus aposentos, mas sinta-se à vontade para tomar um banho e relaxar após seu exaustivo dia de treinamento. Tenho conhecimento de que suas atividades são extremamente cansativas e ficarei muito feliz por me conceder um pouco do seu tempo, Capitão.

Mandarei um carro para buscá-lo se essa for a sua preferência. Mas o dia amanheceu tão agradável, não é mesmo? Sei como você gosta de caminhar pelas ruas de nossa gloriosa cidade. O ar de Utopia é muito saudável aos nossos pulmões.

Não me delongarei nesta carta sobre os motivos dessa convocação, não gosto de arruinar surpresas. Sinto que é chegado o momento de recompensá-lo pelo trabalho duro para defender nossa nação.

Por favor, venha sozinho.

 

Atenciosamente,

Gregory de Yardale”

 

A primeira coisa que Kyle fez foi se dirigir à cozinha para coar grãos de café, levando a carta consigo. Releu seu conteúdo duas vezes e então, quando estava com uma xícara fumegante de café puro em sua mão, telefonou para Stan. Leu a carta em voz alta para ele, segurando o telefone com o ombro, beberricando do café de vez em quando. Stan demorou algum tempo para dizer qualquer coisa. Quando falou, sua voz parecia rouca e cansada.

-Você sabe que precisa ir, não sabe?

-Mas o que ele pode querer comigo? Eu não entendo. Você sentiu o tom cínico dessa carta?! Eu posso ouvir a voz dele dentro do meu cérebro, o monotom bizarro dessa aberração.

Stan suspirou fundo.

-Eu não sei, Kyle. Você sabe como ele é.

-Você acha que ele descobriu? Que nós estivemos lá ontem.

-Você disse que ninguém viu vocês.

-Foi o que eu pensei, mas o que mais pode ser isso?!

O Coronel ficou alguns instantes em silêncio, deixando escapar apenas um som pensativo. Kyle pôde ouví-lo coçando a barba rala que começava a crescer no maxilar.

-Talvez não seja uma boa ideia você ir sozinho. Se ele diz que vai recompensá-lo, isso provavelmente quer dizer... - Interrompeu a frase no meio e umedeceu os lábios, respirando fundo. - Eu não sei, pode ser que ele esteja falando sério. Ele só parece cínico porque é o jeito sádico dele.

-Ele especificou que eu não devo levar mais ninguém.

-Eu sei. Isso me deu calafrios. Olhe só, nós nos encontramos no quartel logo mais, leve essa carta para eu dar uma olhada de perto.

-Você conseguiu descansar?

-O quê? Ah, consegui. Um pouco. Até logo, Kyle.

-Até.

Kyle tentou afastar a sensação de que havia algo sentado sobre suas costas, sugando suas energias, enquanto vestia sua farda para se dirigir ao quartel para mais um dia de trabalho. Disse a si mesmo durante todo o caminho que dormiria mais cedo aquela noite, se fosse possível.

Foi difícil conseguir um momento a sós com Stanley aquela tarde, entre a manutenção dos aviões, fazer descarga de mantimentos, repassar estratégias e assistir aos homens e mulheres marchando, em um misto de fascínio e tormento pelo som das centenas de pés. Stan fez sinal da janela do quartel para que Kyle fosse até ele na hora do almoço, quando finalmente houve uma pausa.

Pouco tempo depois do ruivo chegar no gabinete do Coronel e entregar a carta a ele, Kenny abriu a porta atrás deles de forma desnecessariamente estrondosa. Estava sem sua bengala, vestido em um uniforme oficial da Guarda, o paletó militar azul marinho com botões duplos e correntes douradas ligando o botão de um lado ao outro. No braço, havia estampado o símbolo do Império de Utopia, um círculo com nuvens como plano de fundo, uma coroa no topo e uma espada alada; as asas iam além do limite do círculo.

-O que aconteceu?! - Kenny perguntou, visivelmente alarmado.

-Acalme-se. Feche a porta, por favor. - Stan respondeu calmamente, sentando-se à mesa, fazendo sinal para que os dois se acomodassem. Kenny encostou a porta e aproximou-se da mesa, mas continuou de pé. Kyle também ficou imóvel. - Você por acaso recebeu uma carta de Gregory?

-Uma carta? Tipo... O quê, de baralho? Por que ele me escreveria?

Stan estendeu o papel de pergaminho para que ele pudesse ler por conta própria, em vez de dignificá-lo com uma resposta.

-Isso estava dentro da minha casa quando eu acordei hoje. - Kyle explicou, mordendo o lábio inferior em ansiedade.

O Major respirou profundamente antes de abaixar o papel e colocá-lo sobre a mesa de novo. Stan deslizou a carta pela superfície lisa da mesa para dar uma olhada nela novamente, franzindo a testa em curiosidade.

-Ele sabe? - Kenny perguntou. - Kyle. Isso é... Isso é muito fodido. Esse cara é doente.

-Eu sei.

-O que fazemos agora? Vocês mostraram pro Cartman?

-Pfff. - Stan soltou com uma expressão cética, de forma mais espontânea do que de costume. - Ele deve estar dormindo até agora, com uma ressaca do cão. O único motivo pelo qual eu lhe chamei aqui foi para saber se você recebeu algo parecido. Se algum guarda viu vocês, não faz sentido que ele só queira... “Falar” com o Kyle.

-Não necessariamente. Nós chegamos separados. - Kenny disse, levando o polegar à boca para roer a unha curta, como sempre fazia quando queria conter nervosismo. Kyle percebeu de imediato. - Bom. Você não vai.

-É claro que eu vou. - Kyle disse em uma voz mais fina do que pretendia.

-Ele sabe que você é um traidor! Olha essa merda, cara, “ não gosto de arruinar surpresas”?! “Sinto que é chegado o momento de recompensá-lo pelo trabalho duro”... Isso é doente.

-É, mas talvez... Ele não sabe o que eu sei sobre ele. Ele poderia ter mandado os homens dele cortarem a minha garganta enquanto eu dormia. Já entraram na minha casa essa madrugada mesmo. Por que ele se daria a esse trabalho se quisesse me matar?

-Porque ele adora esses joguinhos!

-Eu preciso saber o que ele quer. Isso pode ser uma chance.

-É, uma chance de perder uns membros, se é isso que você quer. Olha só, eu vou com você. Se acontecer alguma coisa...

-Se acontecer alguma coisa, morremos nós dois? Pare com isso, Kenneth.

-Stan! - Kenny gritou, alterado, voltando-se ao Coronel que estava com os dois cotovelos apoiados sobre a mesa, as mãos unidas em frente à boca, observando-os. - Você concorda com isso?!

O rosto de Stanley era ilegível, a boca em uma linha reta, os olhos brilhantes. Ele pigarreou, abaixando um pouco o rosto e deitando as mãos sobre a carta, tocando-a de leve.

-Eu não gosto disso também. Mas você não está sendo racional. Não vamos nos precipitar.

Kenny parou um momento para encarar Stan como se esperasse por mais alguma coisa, mas nada além disso saiu dos lábios dele. Encheu os pulmões de ar, assentindo com a cabeça como sua disciplina militar ensinara, levando a mão à nuca para esfregá-la, os ombros cheios de tensão.

-Eu tenho que trabalhar. - O Major disse finalmente, afastando-se dos outros dois, a bota pesada fazendo barulho conforme ele andava sobre as tábuas de madeira do assoalho. - Mais tarde nós conversamos sobre isso. Se é que a minha palavra vale alguma coisa.

-Kenny... - O ruivo chamou, mas não houve resposta.

Kyle fechou os olhos quando a porta bateu na mesma intensidade de quando ele havia entrado.

-Ele só está assustado. - Stan rompeu o silêncio que tomou conta do gabinete por alguns segundos. - Você confia em mim?

-É claro que confio. O senhor é meu Coronel. Eu faria qualquer coisa que o senhor dissesse.

Mas não foi exatamente assim que aconteceu. Kyle e Stan sempre foram melhores amigos, desde que usavam fraldas. A relação de hierarquia variava de acordo com a necessidade. Por vezes, Kyle respondia ao seu coronel. Por outras, respondia ao seu melhor amigo. Ele estava sendo verdadeiro ao dizer que daria a vida por uma ordem de Stanley, pois confiava cegamente no julgamento do outro.

Mas ele também era flexível com relação a regras. Não era o mais disciplinado dos soldados, nunca foi. Ficou acordado que eles se encontrariam quando acabasse o turno de treinamento vespertino, junto com Kenny, para discutirem uma forma de lidar com o convite. No fundo, Kyle sabia que não havia o que discutir.

Em vez de ir à casa de Stan, ele decidiu não estender mais sofrimento. Como já foi mencionado, Kyle era quem costumava ser mandado em missões por ser o mais silencioso, o mais rápido, com uma habilidade impressionante para desaparecer. Ninguém o viu deixar a sede militar, correr por ruelas que cortavam caminho em vez de seguir pela avenida principal, atravessar a ponte em plena luz alaranjada do fim de tarde até a sede da Presidência. Não era uma caminhada longa entre a vila militar e a plataforma política, todos no Distrito principal, o punho de ferro que regia Utopia.

A casa do Presidente não era cercada por muros, como todas as casas de Utopia. O quintal era imenso, verde e florido, com esculturas antigas tomadas por trepadeiras, uma enorme fonte de água no centro do pátio, bancos de madeira e uma mesinha redonda perfeita para um chá da tarde. Era uma construção de tijolos à vista, uma mansão semelhante a um castelo, com torres cercadas por janelas, um imenso relógio no topo. Kyle tinha certeza de que a casa pareceria assombrada durante a noite.

Tomou fôlego devagar, abrindo as costelas para a entrada de ar que pouco a pouco acalmava o seu coração palpitante. Passou cerca de dois minutos parado do lado de fora da porta larga antes de tocar a campainha. Encarou a maçaneta levemente enferrujada, redonda e trabalhava em detalhes ricos como galhos de uma cerejeira, que logo girou. A porta foi aberta.

Quem atendeu tinha o porte e o formato do corpo de um homem, mas era um ser mecânico. Sua cabeça era feita de cobre, o tronco parecia uma armadura de ferro com tiras de couro amarradas em torno da cintura, os olhos grandes e redondos com pequenas grades dentro. Kyle chegou a engolir seco, embora houvesse convivido com robôs sua vida inteira e raramente se sentisse intimidado por eles. A pequena gravata amarrada em torno do pescoço do robô-mordomo o acalmou. Sem dar-lhe qualquer palavra, a criatura adentrou a casa escura novamente e segurou a porta aberta para ele. Kyle umedeceu os lábios nervosamente antes de entrar.



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