Sempre estava tocando o mesmo tipo de música naquele café. Ou era Ella Fitzgerald, ou Ray Charles, ou alguma coisa melódica e antiga de New Orleans (na terra debaixo), lugar onde Nichole nascera. Ela também tinha uma voz sensacional, mas só a mostrava distraidamente cantarolando enquanto passava panos nas mesas ou levantava as cadeiras, enquanto Token só sabia assobiar. Mas assobiava muito, em compensação, batendo o pé. Eles eram um casal bastante musical. O cheiro do estabelecimento era sempre maravilhoso, cheiro de café recém-passado e de pão fresquinho. Durante a tarde era muito lotado, e Kyle ficava feliz por eles, mas optou por ir no início da noite, quando já não havia quase ninguém.
Havia dois homens bebendo café preto na varandinha dos fundos, local mais agradável e reservado do café. Dentro, uma senhora gorda comia um brioche e sorriu para Kyle quando ele passou. Todos em Utopia pareciam ter satisfação em cumprimentar estranhos. Ele se obrigou a sorrir de volta, sem um pingo de sinceridade.
Nichole e Token conversavam no balcão. Ele atrás, visto que fazia o serviço de caixa, e ela à frente, com a mão na cintura segurando um pano. Era uma das mulheres mais bonitas que Kyle já conhecera. Tinha os cabelos crespos amarrados em dois coques, um em cada lado da cabeça, como sempre usava para trabalhar (ficava ainda mais bela de cabelo solto). Usava um avental por cima do vestido camponês amarelo claro, um lenço amarrado no pescoço. Token tinha os dois cotovelos apoiados no balcão, usava um colete preto por cima da camisa branca. Foi ele quem viu Kyle primeiro. Ergueu as sobrancelhas, não fez questão alguma de sorrir. Kyle o adorava por isso.
-Boa noite. - Token disse. Nichole se virou com o charme de sempre, esperando ver um cliente em vez de um rosto conhecido de infância. A expressão dela mudou completamente em menos de um segundo.
-Olá. - Ela disse, estudando-o de cima abaixo, a mão ainda na cintura. - O que vai querer?
Eles não estavam felizes em ve-lo, é claro.
-Eu gostaria de falar com você. - Kyle respondeu de forma simples e honesta.
A mulher deu uma gargalhada elegante, incrédula, pendendo um pouco a cabeça para trás. Jogou o pano por cima do ombro e pegou a bandeja vazia que estava sobre o balcão.
-Essa é muito boa. Você nem lembra que tinha amigos pobres e agora aparece pra bater um papinho? Eu tenho mais o que fazer, Kyle.
-Nichole, por favor. Eu sei que faz muito tempo, mas não tem nada a ver com isso.
-Os homens do governo sempre se acham bons demais pra falar com a gente. - Token disse, e começou a passar um pano úmido no balcão de mármore. Ele não parecia furioso, era como se estivesse apenas constatando um fato.
Kyle hesitou por um momento. Aquelas duas pessoas tinham sido seus amigos de infância. Eles se afastaram naturalmente, como era esperado de todas as relações adultas, mas piorou muito quando eles decidiram se alistar para as forças aéreas. Nichole e Token sempre apresentaram um espírito de resistência fortíssimo, e o fato de Kyle fazer parte do círculo militar ainda era um rancor muito grande, uma traição. Nichole ficou especialmente sentida com ele porque sempre foram muito próximos. Seu passado fazia com que o rancor por aquela cidade e seus governantes fosse ainda mais forte.
Ao mesmo tempo em que isso o atrapalhava, era a maior esperança de Kyle no momento. Descobrir uma maneira de usar a raiva de Nichole para que ela colaborasse.
-Vamos, diga logo o que você quer. - Ela disse, segurando a bandeja debaixo do braço. - Estou trabalhando, não tenho o dia inteiro.
-Eu não posso falar aqui. Nós não podemos ir para os fundos?
Ela riu novamente e aquilo já começava a se tornar um pouco irritante.
-Você é mesmo folgado.
Kyle cogitou apenas ignorar a mulher com o brioche, mas teve a impressão de que ela estava com os ouvidos bem atentos, interessada na troca de grosserias perto do balcão. Aquele tipo de coisa não poderia ser ouvido por qualquer pessoa. O capitão deu dois passos à frente e cochichou no ouvido dela:
-Preciso da sua ajuda para libertar um escravo.
Os olhos negros de Nichole reluziram. Token endireitou o tronco, olhando desconfiado para os dois. Provavelmente não ouvira e não estava gostando nada daquela história.
-Do que você está falando, Broflovski? - Nichole perguntou sem se afastar dele. Colocou a bandeja em frente ao peito, visivelmente perturbada.
-Se você puder me acompanhar... - Fez sinal para a porta atrás do balcão. - Eu explico tudo.
Silenciosamente, Nichole deu a volta no balcão e largou a bandeja e o pano pelo caminho. Kyle a seguiu. Os sapatinhos de madeira dela faziam barulho contra os azulejos do chão. Token também os seguiu, mas foi interrompido antes que pudessem passar pela porta do escritório (que funcionava também como depósito).
-Alguém tem que ficar aqui e atender os clientes. - Ela disse ao marido, repousando a mão no peito dele. Mulheres sempre sabem onde colocar a mão para não zangar alguém, Kyle pensou.
-O que foi que ele te disse? O que está havendo?
-Fique aqui, benzinho. Por favor.
E ele ficou. Com o rosto fechado, insatisfeito, mas ficou. Token era um homem muito resiliente. Kyle ficou se perguntando se ela contaria a ele sobre o que conversaram ou não, e mais importante, se deveria se preocupar com isso.
Assim que a porta vermelha do escritório se fechou, Nichole acendeu uma pequena luminária sobre a escrivaninha e cruzou os braços logo abaixo dos seios. A salinha era pequena, cheia de prateleiras com produtos alimentícios, e cheirava um pouco a mofo. Não havia janelas.
-Me conte essa história direito. - Ela exigiu.
E ele contou. Contou sobre a intimação de Gregory, a "homenagem", o " presente". Fez questão de detalhar o quanto fosse possível o comportamento do Toupeira para que ela sentisse uma compaixão imediata por ele. Disse que era um homem profundamente traumatizado do subsolo que não havia pronunciado uma palavra sequer. Em algum momento no meio do seu relato, Nichole sentou na superfície da escrivaninha.
-Nós achamos que talvez a coleira tenha algo a ver com o fato de ele não falar. Wendy vai tentar tirar aquilo dele, mas... Ela não sabe como ainda e ele mal deixa que ela chegue perto. Eu não sei ao certo se ele entende...
-Ele entende. - Nichole sussurrou baixinho, encarando o chão, a voz cheia de amargura. Seus olhos estavam pesados.
-O que é essa coleira exatamente? É isso que faz com que ele aja assim?
Ela respirou fundo como se fosse obrigada a falar sobre algo que não quisesse. Há uns bons anos ela não tocava nessas feridas.
-É uma coleira de controle. Eu não sei como elas são hoje em dia... Mas elas servem para que você nunca se esqueça da sua condição, de onde você veio. E elas detectam qualquer alteração de euforia ou raiva. Se o escravo se rebelar, o choque é... - Sua voz falhou por um instante. - É forte o suficiente para você saber que aquela coisa pode te matar. Você não tem permissão nem de sentir.
Kyle não se sentiu confortável para acrescentar nada ao que ela dizia porque aquele relato vinha de uma experiência tão profunda e pessoal que ele jamais poderia alcançar, como alguém nascido e criado em Utopia. Era diferente com Nichole. Seus pais foram arrancados de sua terra sob a promessa de uma vida melhor no mundo de cima, porque as pessoas que saíam lá debaixo o faziam por livre e espontânea vontade, sem qualquer ideia dos horrores que enfrentariam. Pelo menos era assim na época. Quando Nichole foi trazida com seus pais, não tinha mais do que quatro anos. Em partes, ela foi o real motivo pelo qual Stan e Kyle se juntaram ao exército com a ideia de transformar o monstro de dentro para fora. Nunca puderam fazê-la entender isso. Demorou anos até que ela contasse sobre seu passado a eles, pois quando se conheceram (com dez), ela já não usava mais a coleira e não servia a ninguém. Uma criança daquele tamanho não tinha grande utilidade, foi o que ela contou. Seus pais foram separados e ela permaneceu com a mãe durante dois anos servindo a um velho senhor que tinha como família somente uma filha que o desprezava. Foi essa filha que propôs à mãe de Nichole: “eu posso dar uma vida de verdade a essa menina, deixe-a comigo”. Ela se tornou a mãe que Nichole realmente conheceu, pois não podia ter qualquer contato com sua mãe biológica. Fizeram o velho acreditar que a criança tinha morrido. Não era como se ele realmente se importasse. Mudou de nome, de endereço e teve sua coleira removida secretamente por um cientista contratado por sua nova mãe.
Foi assim que Nichole se tornou uma verdadeira cidadã de Utopia.
Seu nome de nascença era Abony. Token e Kyle eram provavelmente as únicas pessoas, além de sua mãe, que sabiam disso.
-Mas não foi a coleira que o transformou nisso que você conhece hoje. - Ela prosseguiu, os olhos vazios e opacos. Falava muito baixo. - Tem coisa muito pior do que isso. Você ainda pode falar, tecnicamente, a coleira não te impede disso. O que te impede é o medo. Você esquece que é uma pessoa. Eu vi isso acontecendo com a minha mãe, pouco a pouco. Quando tiraram a minha, sete anos. Eu passei meses dormindo dentro do armário e cavando buracos no quintal para me esconder. Morria de pavor de estranhos, vivia esperando pela pessoa que daria com uma vara de bambu no meu rosto. Você demora muito tempo pra acreditar que isso realmente não vai mais acontecer com você.
Kyle sentiu um aperto tão forte no coração, tanto por ela quanto pelo homem estranho que agora estava em sua casa. Passara a noite anterior bastante inquieto, é verdade, esperando que o Toupeira abrisse a porta do seu quarto com a faca que lhe fora dada para cortar o bife do jantar. No entanto, nem pôde ouví-lo andando de madrugada (teve certeza de que ele não dormiu, pelo seu aspecto naquela manhã); Ele realmente se movia tão silencioso quanto um predador. Mas não era nada disso. Sentiu-se terrível por ter medo de alguém assim tão frágil, tão destruído.
Admirava Nichole profundamente pela sua força, desde que eram mais jovens. Ela nunca teve medo de coisa alguma, provavelmente porque já tinha visto muito pior do que todos eles podiam sequer imaginar.
Junto com essa força, vinha também um aspecto rude que estava sempre em seu rosto, um semblante de mulher que suja as mãos pelo que for preciso, de mulher sofrida e melancólica, que não abaixa a cabeça para nada. Kyle podia ver perfeitamente porque Token se apaixonou por ela. O próprio ruivo, enquanto criança, acreditou que sentisse uma paixonite platônica por ela; não demorou para entender que aquilo era admiração, antes mesmo de experimentar paixão de verdade. Paixão de verdade era algo que ele sentira somente por homens, pelo menos até então.
-Talvez… Se você quiser falar com ele, talvez ele confie em você. Nós precisamos dele, Nichole.
Ela ergueu as sobrancelhas como se tivesse sido arrancada de um transe, e a expressão em seu rosto não parecia satisfeita.
-”Precisam”? Ele não é uma coisa, uma peça a ser encaixada no joguinho de vocês. Para que precisariam dele?
-Justamente para que ninguém mais precise passar por isso! - Kyle gesticulou com as mãos ao falar. Usava luvas de couro que deixavam os dedos de fora. Cerrou os punhos por um instante. - Nós… Olhe, eu não posso contar tudo. Esse tipo de coisa é muito confidencial. Não é que eu não confie em você, eu só não quero que os capangas do Gregory consigam vir até você caso aconteça alguma coisa com a gente. Eu não quero que você saiba de nada porque esse é um fardo que você não merece. O importante é que Stan tem contatos importantes com os governantes da terra e eles sabem que tem alguma coisa muito esquisita acontecendo aqui, eles só precisam de provas pra derrubar o Gregory e o pai moribundo dele. E o Toupeira provavelmente sabe o bastante.
Ela desceu da escrivaninha, mas continuou apoiada contra a superfície de madeira, os braços cruzados. Umedeceu os lábios carnudos e respirou fundo. Uma fragilidade incomum transpareceu no rosto dela, expondo uma mágoa profunda que ela vivia tentando esconder. Kyle quis abraçá-la quando seus olhos começaram a ficar vermelhos, mas não se moveu. Ela também não permitiu que o choro viesse.
-Vocês acham que…? Acham que conseguem?
-Eu não sei, Nichole. Aquela família tem um legado que parece maior do que todos nós. Eles mandam no país, fazem de Utopia o que querem. Mas nós vamos tentar. Não estamos sozinhos.
-Não é o que parece. Não é? Parece que o mundo acontece lá embaixo e nós vivemos nessa fantasia doente, que nós é que somos a terra esquecida. Essa cidade inteira é construída pelos caprichos da família do Gregory. - Sua respiração estremeceu. - Eu sempre quis voltar. Mas… Não há como sair de Utopia. E eu não tinha mais nada lá embaixo.
-É isso que é mais difícil de entender. Não há como sair de Utopia. São só os aviadores que têm acesso ao mundo lá embaixo, mas mesmo dentro da força, nós nunca descobrimos como eles transportam as pessoas.
Nichole coçou a cabeça, abaixando um pouco o queixo, piscando demoradamente como se tentasse forçar a memória. Era inútil. A maior parte do que ela viveu antes de chegar em Utopia estava completamente bloqueada. Era pequena demais.
-Eu realmente queria poder ajudar. - Disse em um tom frustrado.
-Você pode. Se você ainda tiver a sua coleira… Eu sei que é horrível te pedir isso, eu nem quero te fazer lembrar dessas coisas, mas você não sabe o quanto ajudaria.
Da mesma forma que fez antes, quando estava irritada, ela soltou uma risada um tanto quanto trágica. Era assim que ela lidava com desconforto e dor: rindo. Dessa vez, o riso veio triste e contido. Ela cobriu a boca com a mão. Por um instante, pareceu de novo que estava prestes a chorar.
-Nichole? - Kyle chamou baixinho diante do silêncio dela.
-Desculpe. É só que... - Seus olhos estavam úmidos. Ela desencostou da escrivaninha e se virou de lado, limpando as mãos no avental. - Eu ainda a guardo sim. Você diz que não queria me fazer lembrar dessas coisas, mas pra ser honesta, eu nunca consegui me desapegar daquela coisa pra nunca esquecer quem eu sou. De onde eu vim. É irônico, não é?
Ela ria e chorava ao mesmo tempo. Não era nada exagerado, mas as lágrimas continuavam transbordando pelas suas bochechas. Kyle sentiu-se mal de repente. Não soube o que dizer a ela, então continuou ali parado, tentando não invadir o momento.
Nichole secou embaixo dos olhos com os dedos indicadores e respirou fundo. Fez uma pausa longa, encarando o chão. Sua mente estava longe, isso era claro. O ruivo engoliu seco e pigarreou.
-Eu vou dá-la a você. - Ela finalmente respondeu. - E vou falar com esse homem. Eu vou fazer tudo o que eu puder por vocês.
-Muito obrigado por isso.
Enfim, ele a abraçou. Ela não gostava de ser abraçada, mas ele não estava disposto a respeitar isso no momento. Ela ficou bastante contente por essa invasão.
Tudo havia saído muito melhor do que ele esperava. Token até lhe ofereceu um sorriso de canto quando ele saiu da salinha, e quando Token sorria, era honesto. Despediram-se brevemente e Kyle se apressou para ir ao mercado, pois queria estar em casa antes do escurecer. Tinha uma ideia que precisava ser executada com um pouco de sol. Combinara com Nichole que ela entregaria a coleira (que deveria ser terrivelmente pequena) diretamente a Wendy e que passaria em sua casa assim que possível para tentar tirar alguma coisa do Toupeira. Kyle se perguntou o que o homem teria feito o dia inteiro.
Comprou coisas muito básicas. Leite, pão, ovo, queijo, carne, tudo o que pôde pensar que sustentaria aquele corpo troncudo. O Toupeira não era magro, não parecia desnutrido ou coisa do gênero. Kyle tinha uma alimentação extremamente regulada pela condição física que seu trabalho exigia. Qualquer aviador precisaria gozar de perfeita saúde física e mental. Eram as galinhas dos ovos de ouro de Utopia, de fato.
Chegou em casa com os braços cheios de sacos de papelão com as compras. Largou tudo no balcão da cozinha. Já havia chamado o nome do Toupeira (estava tentando se acostumar a usá-lo), mas nada dele. O desgraçado era muito bom em se esconder despretensiosamente, sem nem mesmo tentar. O colchão na sala que fora arrumado para ele dormir continuava ali, intocado. Ninguém se deitou sobre aquele lençol. Kyle começou a ficar preocupado quando olhou em todo o andar debaixo e não o encontrou. Chamou mais alto. O coração começou a bater mais rápido dentro do peito quando olhou no quintal dos fundos e ele também não estava lá.
-Merda. Merda, merda, merda.
Kyle subiu as escadas estreitas correndo, tropeçando na metade. Ele não podia ter fugido. Não podia. Chamou mais alto, agora com um palavrão.
-Cadê você, seu filho da puta?
Encarou o corredor. Até a noite anterior, o Toupeira não tinha subido nem mesmo no sofá. Era difícil acreditar que ele teria subido as escadas. Kyle quase se esquecera de que ele também era um bípede.
Olhou no banheiro de visitas. A casa era de madeira, qualquer barulho podia ser ouvido de qualquer cômodo. Tudo estava muito silencioso, com exceção o vento que soprava pela janela entreaberta no fim do corredor, erguendo as cortinas brancas. Kyle mal podia respirar a essa altura.
Abriu o quarto de hóspedes com um estrondo, acendendo a luz bruscamente. O homem estava encolhido sobre o tapete em frente à cama (que estava sem colchão, com o estrado à mostra), dormindo. Ele pulou de susto e levou um choque que o fez gritar de forma gutural, caindo com o tronco para frente. Kyle encostou-se ao batente da porta e colocou a mão no peito, respirando aliviado.
-Meu deus. Eu sinto muito... - Disse, aproximando-se cautelosamente do Toupeira, que virava de lado no chão com os olhos apertados, o rosto inchado de sono, fazendo uma careta de dor. - Eu achei que você tivesse... Puta merda. Você quase me matou do coração.
Quando Kyle se ajoelhou ao seu lado e pôs a mão no braço do homem, levou um empurrão violento. Ele não chegou a rosnar como fez com Wendy, parecia genuinamente apenas um ser humano enfurecido, não tanto um bicho. Sua posição, é claro, continuava torta e não-civilizada. Isso era interessante demais a respeito dele. O corpo de todas as pessoas em sociedades civilizadas eram condicionadas a uma posição vertical e repressora, uma persona social que se mantinha automaticamente, pois todos eram polidos para isso. O Toupeira parecia livre de quaisquer padrões sociais. Seu corpo era tão expressivo e elegante, até mesmo quando ele andava de cócoras ou engatinhando. Parecia um corpo livre. Como se ele fosse capaz de andar sobre as duas pernas, mas optasse por explorar outras maneiras.
-Me desculpe. Eu não quis te machucar. - Kyle disse, o coração ainda acelerado, sentindo-se tão culpado pelo choque. Lembrou-se imediatamente do que Nichole lhe contara. - Ou te acordar.
O ruivo deu alguns segundos para que ele se orientasse. O Toupeira chegou a se sentar, encostando as costas na cama, esfregando os olhos. Parecia exausto. Kyle se levantou, encarando-o por algum tempo.
-Olhe só, eu trouxe comida. Vou fazer algo para você e depois nós vamos te dar um banho, certo? Lá fora. Vai ser divertido.
Pela primeira vez, o Toupeira fez contato visual com ele e sustentou por um bom tempo. Novamente, Kyle acreditou que haveria uma resposta. Mas não houve. Devagar, ele apenas virou a cabeça para frente de novo.
Kyle já havia entendido algo sobre aquele homem; não adiantava esperar uma reação imediata. Deixou o Toupeira naquele quarto e desceu as escadas para preparar o jantar, dando-lhe o tempo que fosse para vir engatinhando escada abaixo, espreitando todas as coisas em volta, encarando desconfiadamente até para os quadros na parede. Para sua surpresa, o homem apareceu na porta da cozinha de pé. Kyle não podia ver seu corpo, metade estava atrás da parede, apenas parte do tronco e a cabeça apareceram, espiando, cheirando o ar. Kyle sorriu. Não sabia como chegou a ter medo daquele homem.
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