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História Utopia - Chat échaudé craint leau froide


Escrita por: caulaty

Capítulo 9 - Chat échaudé craint leau froide


O círculo militar tinha uma sala de conferência que era, normalmente, para a comunicação com o mundo debaixo. Era um telefone especial, maior do que os domésticos, com uma linha específica para conectar Utopia ao resto do país. Somente os militares tinham telefones dessa natureza, que eram de madeira (carvalho, em geral) com um gancho de metal. Stan tinha um desses em seu escritório, como os homens de hierarquia superior, enquanto os aviadores – como Kyle – precisavam usar o da sala de conferência. Só era permitido para questões de trabalho. O acesso a qualquer coisa fora daquela cúpula imensa que era Utopia sempre foi dificultado, então era fácil enganar a população sobre o que acontecia lá embaixo.

-Ordnung. - Kyle disse para o homem alemão do outro lado da linha, com seu pesado sotaque americano. - Wir werden Sie kontaktieren.

Qualquer aviador precisava conhecer pelo menos cinco línguas principais com certa fluência. Era uma profissão exaustiva e exigente, tanto pelo físico quanto pelo psicológico. Para ser um aviador, era preciso caber em um molde muito restrito. Resolvia questões com um embaixador alemão sobre a entrega de caixas de pólvora importadas; enquanto Capitão, era ele quem costumava lidar com as relações internacionais diretamente quando dizia respeito aos aviadores. Enquanto conversava com o homem, Kenny e Craig entraram na sala uniformizados e o loiro carregava uma sacola nas costas, que largou sobre a mesa logo ao lado do telefone. Tinha uma pasta em mãos. Foi por trás de Kyle, que estava sentado em uma cadeira com os cotovelos apoiados na mesa, e fez carinho no topo de sua cabeça, enrolando seus cabelos nos dedos. Na outra mão, segurava uma pasta. Estava sorrindo largo. Tinha esse sorriso característico de quando havia aprontado.

Kyle ergueu o indicador para pedir-lhe um momento enquanto se despedia do embaixador. Craig entrara de cabeça baixa, andou até a bancada e começou a se servir da jarra de café frio que um dos soldados fizera há umas duas horas. Kyle também tinha uma caneca quase cheia ao seu lado, mas foi tão envolvido pela conversa com o alemão que esqueceu-se de beber. Kenny começou a massagear a nuca do ruivo devagar, com sua mão grande e suave, aquela combinação tão boa entre a firmeza e a gentileza. Kyle encolheu o ombro um pouco desconfortável; a presença de Craig o deixava sempre inquieto. Não havia nada de errado com ele, embora fosse um homem sério e carrancudo que não parecia gostar de coisa alguma. O problema não era esse. Kyle preferia isso a pessoas excessivamente simpáticas, forçadas. Seu desconforto tinha uma natureza mais pessoal. Kyle sempre teve a forte impressão de que Craig sentia ciúme dele com Kenny, e que portanto desgostava dele mesmo que nunca tivessem conversado por mais do que cinco minutos. Craig era esse tipo de cara que não fazia questão de conversar amenidades com ninguém. Estava sempre encarando Kyle de canto, de olhos estreitos, as mãos nos bolsos, ignorando que ele estava ali na maior parte do tempo. Era mais alto do que todos eles, comprido, mais magro do que propriamente forte. Era branco como se nunca tivesse visto sol na vida, o que contrastava muito com seus cabelos negros. Próximo de Kenny, ele quase chegava a sorrir, embora nunca perdesse a cara de zangado. Era um homem bonito.

Quando Kyle desligou o telefone, recebeu um jeito úmido na bochecha de surpresa. Afastou-se um pouco irritado, empurrando a cadeira para trás.

-Kenny. - Resmungou, respirando fundo. Começou a massagear as têmporas e esfregar os olhos, cansado.

O loiro nunca usava a bengala no círculo militar, o que só reforçava em Kyle a ideia de que aquilo era muito mais por charme do que qualquer outra coisa. Por mais que o loiro realizasse todos os exercícios com maestria, insistia em dizer que tinha problema na perna. Ele largou a pasta que segurava na mesa de forma barulhenta e se inclinou, apoiando os cotovelos na superfície, sorrindo de canto.

-Você não devia tratar assim quem te traz um presente desses.

Sua atenção voltou-se imediatamente para a pasta transparente sobre a mesa. Não estava muito farta de papéis, mas havia uma pequena foto 3x4 típica de documento presa por um clips na primeira folha. O coração de Kyle por pouco não parou de bater dentro do peito. Voltou seu olhar para Craig, que agora usava uma colher de chá para mexer o açúcar dentro da caneca de café. Ele parecia um pouco suado. Kyle fez um longo contato visual com Kenny, que havia endireitado o tronco – a mão ainda apoiada na mesa – e tinha um sorriso orgulhoso na cara.

-Isso é...?

-Exatamente o que você acha.

-Kenny... - Repetiu o nome do outro em voz mais baixa, num tom de aviso, não tanto de reprensão. Seus ombros estavam tensos. Foi tomado por uma vontade de colocar a pasta debaixo do braço e desaparecer dali. A presença de Craig o incomodava profundamente.

-O quê? - O loiro respondeu em defensiva. Demorou para entender qual era o problema. - O Craig? Qual é, ele tá pouco se fodendo. Anda, abre. - Mas o ruivo não se moveu. Continuou encarando-o com os lábios entreabertos, incerto do que fazer. Kenny pôs a mão no ombro dele e apertou gentilmente, virando o rosto na direção de Craig. - Ei, Tucker. Você dá a mínima pro que nós estamos fazendo aqui?

-Não muito. - Ele resmungou em resposta com a caneca contra os lábios, recostado no balcão, o braço livre cruzado em frente ao abdômen. Não encarava os dois diretamente, mas Kyle podia sentí-lo espiando. Provavelmente isso não tinha nada a ver com os papéis sobre a mesa, mas sim com a mão de Kenny repousada sobre o seu ombro.

Não era muito comum ouvir a voz de Craig. Talvez algumas pessoas simplesmente não gostassem de falar. Isso, naturalmente, fez com que Kyle pensasse no Toupeira sozinho em casa. Toda vez que Kenny ia visitar, tratava-o como uma pessoa como qualquer outra, perfeitamente capaz; o loiro tinha uma destreza extraordinária com pessoas, respeitava o jeito estranho de qualquer um e não diminuía ninguém por uma característica ou outra. Talvez fosse tão gentil com o Toupeira porque também pensasse em Craig, no seu jeito reservado.

Ficava irritado com o quão descuidado Kenny podia ser, mas decidiu que era melhor agir como se não estivesse fazendo nada de errado. Esse era um dos princípios de esconder qualquer coisa. Tomou a pasta em ambas as mãos e a abriu cuidadosamente, como se fosse uma relíquia. Leu o nome em voz baixa, quase sem perceber que estava sussurrando: “Christophe DeLorne”. Repetiu devagar, deixando que o nome rolasse pela língua.

-Christophe DeLorne...

Falou baixo o bastante para que nem Kenny pudesse ouví-lo, lendo atentamente a ficha técnica que descrevia a altura, o peso, as condições físicas do homem que morava em sua casa há alguns dias. Ele havia chegado em Utopia há menos de três meses. O que os olhos de Kyle procuravam foi encontrado logo abaixo da idade dele (vinte e oito anos).

Nacionalidade: Francesa.

-Eu sabia. Eu sabia que ele não era americano. - Disse a si mesmo, sorrindo em satisfação. - Meu Deus, Kenny, como você conseguiu isso?

-Não fui eu. Você pode dizer o que quiser sobre o Cartman, mas quando se dá alguma coisa na mão dele, o viado faz direitinho.

Kyle soltou a pasta de repente. Segurar aquilo nas mãos parecia sujo, de alguma forma. Era um maldito relatório científico que tratava o Toupeira como uma cobaia, um bicho a ser estudado. Aquilo continha informações relevantes para um proprietário, alguém que o quisesse comprar. Era difícil imaginar como passou pela cabeça de Gregory que ele conseguiria tratar outro ser humano como um objeto dessa forma. Mesmo que tivesse passado a vida inteira em Utopia, ainda se esquecia de como o “comum”, o “normal” naquela cidade era doentio. Seu estômago doía só de pensar a respeito.

-O que foi? - Kenny perguntou. Quando Kyle se deu conta, o rosto do loiro estava muito próximo. Ele lia o relatório por cima do seu ombro. Havia outras páginas, e Kyle ass folheou brevemente, mas parou quando se deu conta de que eram fotografias do corpo do Toupeira. De Christophe. - Isso é bom, não é? Eu pensei que você ficaria feliz. Você não fala um pouco de francês?

-Falo. Quer dizer... - Ele fechou a pasta e se levantou, fazendo com que o outro se endireitasse também. A uns dois ou três metros, Craig bebia seu café de forma barulhenta, olhando para o chão. Kyle o encarou durante algum tempo antes de continuar. - Não muito bem. O suficiente, talvez. Eu vou tentar.

Não contou a ninguém sobre o que houve entre ele e o Toupeira. Parecia até diferente pensar nele agora que tinha um nome, uma identidade. Christophe DeLorne. Estava ansioso para ler aquele relatório com mais calma, mas também não teve vontade alguma de levá-lo para casa e correr o risco de que o Toupeira os encontrasse. Agora, ele subia em móveis. Dormia na cama, às vezes sentava no sofá, mas mesmo assim era de forma peculiar, todo encolhido, com as pernas pra cima, abraçando os próprios joelhos. Ele parecia ainda mais quieto do que de costume, se é que isso era possível. Andava bastante fascinado pela televisão. Não por algum canal ou programa específico; ele assistia a qualquer coisa sem realmente assistir. Estava mais interessado nas imagens.

Kyle também não queria ficar sabendo de nada através de uma ficha daquelas. Depois que o êxtase da curiosidade se diluiu, sentiu-se terrivelmente invasivo.

Os dois se distanciaram um pouco nos últimos dias. O Toupeira (Kyle ainda pensava no homem que conhecera até então como o Toupeira, como se Christophe fosse alguém que ele estava prestes a conhecer) nunca mais apresentou nenhum acesso de violência. Pelo contrário, mostrou-se recluso. Quando Kenny ou Stan foram visitar, ele desaparecia no andar de cima, fechado no quarto. E quando estavam a sós, ele não passava mais horas ao lado de Kyle enquanto ele trabalhava ou fazia alguma atividade doméstica.

Kyle tinha saudade dele. Não era apenas pela barreira lingüística que se tornava difícil faze-lo compreender que estava tudo bem.

Provavelmente porque, no que dizia respeito ao Toupeira, não estava. E mesmo que Kyle pudesse (agora podia), não queria dizer a ele como deveria se sentir.

-Eu não quero ficar com isso. Pode levar... Aliás, pode queimar se quiser. Isso já cumpriu o seu papel. - Foi o que disse a Kenny sobre os relatórios.

Sabia que o loiro provavelmente os entregaria de volta a Stan, que era fissurado por registros. Aquilo também era uma prova. O Coronel provavelmente pariria um filho albino pela bunda antes de deixar que se livrassem daqueles papéis.

Pensando bem, conhecendo Stan, ele já devia ter uma cópia própria.

Kenny não perguntou se havia algo de errado com ele, talvez porque soubesse que ele não diria nada na frente de Craig. Ele mesmo começou a se arrepender de não ter se livrado dele antes de ir à sala de conferência, mas Craig era tão desinteressado, tão respeitoso com o espaço alheio. E tão fiel com os poucos amigos que podia contar nos dedos. Kenny gostava de tê-lo por perto.

Kyle foi para casa ansioso, com pressa. Tentou repassar mentalmente, ao longo do caminho, todas as frases em francês que precisaria usar. Adentrou a casa correndo, surpreso em encontrá-lo ajoelhado no sofá. Seu coração estava agitado quando cruzou o olhar com o do Toupeira. Ele estava com uma barba rala e malfeita, bem diferente da camada grossa de pelos na sua face quando ele pisou naquela sala pela primeira vez. A barba aparada fazia com que ele parecesse mais jovem, com um aspecto asseado. Ele usava um suéter azul marinho e calças listradas, recém lavadas. Cheirava bem.

Ficou encarando Kyle durante um curto tempo, logo voltando sua atenção à TV. Vê-lo assim acalmou o coração de Kyle. Ele se obrigou a respirar fundo e deu um sorriso triste, mesmo que o Toupeira não o olhasse mais.

Ele estava com um dos joelhos dobrados e um braço apoiado sobre ele, sentado sobre a outra perna. Kyle deu a volta no sofá cuidadosamente para tocá-lo no ombro.

-Christophe. - Chamou baixinho.

Não sabia o que esperava que acontecesse quando verbalizasse aquele nome. Christophe levou dois segundos para reagir, virando a cabeça na direção de Kyle com os lábios repartidos, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa. Franziu a testa, confuso, contendo quaisquer palavras.

-Je sais qui tu es. - “Eu sei quem você é”, o ruivo disse calmamente, pronunciando tudo com um sotaque pesado. Não falava francês há muito tempo. As relações internacionais entre os Estados Unidos e a França eram muito estreitas. - Je sais d'où vous venez. Je veux tellement de choses à vous aider...

“Eu sei de onde você veio. Eu quero tanto te ajudar.”

Ele se sentou no braço do sofá enquanto falava, a língua se atropelando nas palavras, porque as mãos suavam. Aquilo era a coisa mais honesta que já disse àquele homem, carregado de esperança de que agora seria diferente. Aquele silêncio que sse estabeleceu entre eles era quase corrosivo. Queria tanto ouvir a voz de Christophe, ouvir o ritmo da sua respiração conforme as palavras saíssem de sua boca. Repousou a mão no braço dele, sentindo a camada macia de pelos por baixo, e apertou com aflição.

-Je vais te sortir. - Kyle disse com toda firmeza que pôde. “Eu vou te tirar daqui”, era tudo o que ele tinha em mente nas últimas semanas.

Christophe o observava com os olhos levemente arregalados; foi a primeira vez que o ruivo sentiu uma reação concreta dele. Todas as outras vezes, parecia que as palavras eram vazias, sem sentido. Agora, havia compreensão real. Havia choque, havia um processamento cognitivo das palavras, havia possibilidade de troca. Seus olhos, na luz artificial da sala, pareciam castanho-esverdeados com um dourado sutil pintando em torno das pupilas dilatadas. De repente, ele começou a rir.

Não foi um riso escandaloso. Começou muito baixo, como se ele estivesse tentando segurá-lo. Era surreal vê-lo rindo. Também era difícil dizer se havia alegria real ou se era um riso nervoso. De qualquer forma, foi a primeira vez também que Kyle viu os dentes dele abertos com um sorriso, o som bem nítido da voz ecoando pela sala, rouca e desacostumada. Nem parecia mais o bicho acanhado que até poucos dias nem subia em móveis. Parecia um homem.

O ruivo não pôde conter o sorriso. Perguntou “o que foi?” na língua materna dele, entretido com aquela risada esquisita, satisfeito por conseguir qualquer reação.

-Ce que c'était?

Christophe esticou um dos braços sobre o encosto do sofá para descansá-lo e o riso foi diminuindo aos poucos, até morrer na boca. Ele encolheu os ombros, encarou os olhos verdes de Kyle e disse, com um sorriso cínico:

-O seu francês é uma merda.



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