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História Valente - Parte I - Capítulo IX - Revisado


Escrita por: Aella

Notas do Autor


Voltei, pessoal! Esse capítulo vai ser muito bom, ou pelo menos acho que a maioria vai gostar ;)
Aproveitem!

Capítulo 9 - Parte I - Capítulo IX - Revisado


Fanfic / Fanfiction Valente - Parte I - Capítulo IX - Revisado

 

Becca

 

Acordei com a fraca luz da manhã, penetrando sorrateira pelas cortinas da janela. O lindo tecido branco das cortinas da casa do Alfa esvoaçava mansamente pela fresta que havia sido esquecida por nós na correria da noite anterior. Inspirei fundo, preparando-me para enfrentar minhas escolhas.

Demorei alguns minutos para ter coragem de me levantar. Eu não queria acordá-lo, portanto ponderei por bastante tempo simplesmente ficar imóvel e fingir que nada havia acontecido. Fingir que se eu apenas fechasse meus olhos conseguiria voltar no tempo e dar uma bronca em mim mesma.

Não havíamos... ido até o fim, na noite anterior. Mas o problema persistia. Eu acendi uma chama de possibilidade em Mathias, uma chama que não deveria estar acesa. Ao menos, em mim não estava, e era injusto fazê-lo achar que ela ainda existia.

Infelizmente, eu sabia que não podia desfazer o que eu havia decidido, totalmente lúcida, fazer na noite passada. Respirando fundo, levantei-me da cama devagar e com cuidado para não perturbar o sono profundo do lobo. Mathias estava deitado de barriga para baixo, sua cabeleira cobrindo quase que completamente seu rosto, deixando-me na dúvida se ele conseguia, de fato, respirar enquanto dormia.

Desisti de tomar um banho, pois tinha medo de acordá-lo. Faria isso depois. Apenas me arrumei e saí para o corredor, sempre muito quieta e sorrateira. Entretanto, assim que pisei para fora do quarto, fui atingida. Não por uma arma, não por um ataque, mas por uma lembrança. Um cheiro.

Eu havia sentido falta, percebi, do aroma de pinho e flores silvestres. Parecia que eu não sentia esse cheiro há anos. Eu não sabia como não o havia percebido no dia anterior, mas estava presente por toda a casa e logicamente estaria. Aidan morava aqui. Engraçado que, mesmo humana, conseguia captar o cheiro do meu Alfa. Tamanha intensidade parecia quase um perfume.

Havia uma concentração maior do aroma, que levava até o fim do corredor. Levava até uma porta que, recordei, era do quarto de Aidan. Olhei pelo corredor e espiei dentro dos outros quartos ao redor, certificando-me de que não havia ninguém por perto. Quando percebi que, no andar de cima ao menos, só tínhamos eu e Mathias, decidi saciar minha curiosidade e abrir a porta.

Sua suíte era grande, mas não era de tamanho muito maior do que os outros quartos de hóspedes. As paredes estavam vazias, sem quadros nem pinturas. Havia uma poltrona, um guarda-roupas e armário, uma mesa com um laptop e alguns livros. Sua cama estava impecável, com uma roupa de cama verde clara que era muito convidativa, parecia muito macia e aconchegante. Em cima das mesinhas de cabeceira havia porta-retratos dele com outras pessoas que eu não conhecia. Supus que fossem sua família e, ao ver de perto os porta-retratos, senti-me triste. Triste por ele.

Aidan, como a grande maioria dos lobisomens, teve de deixar a família para trás. Era muito complicado conseguir conciliar família e licantropia, principalmente porque o mundo não sabia da existência de lobisomens, pelo menos não ainda. Mas o fato de que ele mantinha aquelas fotos antigas ao lado de sua cama… demonstrava a importância que ele um dia havia dado para sua família. E, certamente, a falta que ele sentia deles.

Finalmente decidi que estava invadindo demais a privacidade do meu Alfa. Eu não deveria ter ido até lá, não havia sido convidada, mas a curiosidade “matou a loba”. Bem, pelo menos a parte humana da loba, de qualquer forma.

Desci as escadas, grata, ao menos, por já sentir o cheiro de café da manhã invadindo a casa. Alguém tinha dormido aqui além de nós e estava fazendo a comida. Dei passos apressados até a cozinha. Depois de ter passado minha primeira noite consciente após vários meses com um cara, e na manhã seguinte eu ter invadido o quarto de mais outro cara, eu precisava de companhia externa. Qualquer companhia seria bem-vinda. Eu sentia que precisava conversar com alguém.

Encontrei Clayton debruçado sobre o fogão, as costas viradas para mim, fazendo panquecas. Peguei dois pratos de um dos armários e da geladeira peguei mel e xarope de Bordo. Sentei-me na bancada, colocando um prato para mim, de frente para o fogão, e outro para Clayton, de modo que ele poderia comer enquanto cozinhava se quisesse.

– Bom dia, boneca. – Largou a espátula por tempo suficiente para colocar as mãos na cintura e me examinar. Com aquele sorriso brilhante de sempre, disse: – Para alguém que estava inconsciente até ontem, você me parece bem disposta. Talvez até demais, eu diria.

Seu olhar perdurou no meu rosto, como se ele estivesse apenas esperando que eu reagisse a alguma coisa. Desviei meu olhar, pois eu sabia que Mathias havia deixado seu cheiro em mim enquanto nos divertíamos na noite anterior.

– Ah – Grunhi, cruzando meus braços sobre a mesa e enfiando meu rosto envergonhado dentro deles.

Clayton riu, mas senti o calor da panela se aproximando à medida que ele foi estocando meu prato de panquecas. Levantei minha cabeça apenas o suficiente para conseguir espiar o quanto de comido ele havia me oferecido. Três.

– Não esquenta, vai vir mais. Pode deixar que, com essa sua cara, já percebi que você tá precisando mais dessa comida até do que eu.

Lobisomens, diferentemente de humanos, precisavam de uma grande quantidade de comida para se manterem satisfeitos e com energia o suficiente para lutar ou simplesmente se manterem saudáveis. Lobisomens famintos eram mal-humorados e perigosos, pois sabiam que sem as calorias necessárias, tornavam-se mais fracos ao longo do tempo. Obviamente no momento eu não estava sofrendo das questões biológicas de um lobisomem. Porém, eu como qualquer fêmea humana aceitaria comida gostosa para melhorar o humor. E colocaria bastante mel para adoçar a vida.

Assim que Clayton voltou a mexer no fogão, avidamente cortei minhas três panquecas em pequenos cubos e fui enfiando-os goela abaixo. Enquanto comia, resmungava várias coisas ininteligíveis para Clayton, que apenas me encarava de cenho franzido, mas segurando a risada, enquanto remexia as coisas na panela.

– Boneca, eu não estou entendendo quase nada do que está dizendo. Coma essa primeira leva e respire fundo. Daí me conte. Só consigo entender um “mihmias” que só posso supor que seja sua tentativa de pronunciar o nome de nosso hóspede profundamente adormecido lá em cima.

Emburrada e envergonhada, fiz como havia sugerido, comendo com um pouco mais de velocidade do que seria educado, até mesmo para uma loba. Assim que terminei de raspar os restos de mel e xarope do prato, tentei mais uma vez comunicar-me com Clayton, dessa vez de forma mais sucinta.

– Não era minha intenção fazer qualquer coisa com Mathias – esclareci, limpando-me com um guardanapo e já olhando, de forma gulosa, as panquecas que estavam ficando prontas.

– Sério mesmo? – Clayton perguntou, em deboche. – Certamente não foi a impressão que eu tive quando vocês voltaram de seu passeio. Ficaram colados um no outro a noite toda, até que resolveram se pegar no quarto.

– Clayton! – protestei, mas tive que rir um pouco da situação. Clayton era, de longe, o mais engraçado e, ao mesmo tempo, digamos, assanhado dos lobos.

– E estou enganado, por acaso? – Fiquei quieta. – Passei a noite aqui, Becca. Por ser lobisomem, consegui ouvir claramente o que fizeram, e deixaram de fazer. – Arqueou uma sobrancelha, demonstrando curiosidade sobre essa escolha em particular também, mas eu sabia que ele jamais perguntaria diretamente. – E, é claro, consigo sentir o cheiro dele por todo o seu corpo, assim como, quando ele acordar, o seu estará carregado nele.

– Clayton! – protestei novamente, desta vez realmente envergonhada e parando para refletir sobre como eu deveria ter pensado mais a respeito do que eu fiz antes de fazê-lo. Céus, eu morava com lobisomens. – Eu não pensei na hora. Eu, eu só quis-

– Boneca, não nasci ontem – cortou-me. – Sei que essas coisas às vezes fogem de nosso controle. Mas, olha, se sua intenção for manter sua vida pessoal com algum pingo de privacidade, te digo que não vai ser dessa forma.

Sei que ele não estava, de fato, incomodado, nem me dando um sermão. Estava apenas tentando tirar com a minha cara e ao mesmo tempo me alertar de algumas coisas com as quais eu deveria me acostumar.

– Clayton, eu honestamente não queria ter nada daquilo. Quer dizer… – Ele me encarava com uma duvidosa enquanto reabastecia meu prato. – Na hora, me parecia uma boa ideia – confessei. – Mas agora, em retrospecto…  

– Está tendo dúvidas? – perguntou, enquanto agora preparava finalmente um pouco de comida para si.

– Não, não estou em dúvida, Clayton. Pior é que já sei a resposta, e me sinto culpada. – Suspirei, pegando o xarope e espremendo um pouco nas minhas novas panquecas. – Fui egoísta ontem, estava assustada e queria aquele conforto que só uma ligação íntima daria. Só que agora me meti em uma situação que detesto.

– E qual é?

– Tenho que falar com ele. – Soltei mais um longo suspiro e apontei para o teto.

– Nossa, coitado do rapaz.

Encarei meu prato sem me mexer para comer, apenas refletindo. Eu e minha loba, na verdade principalmente minha loba, havíamos nos interessado, e muito, em Mathias. Ele era um cara bom, mas não era para nós. Talvez fosse porque eu agora estava separada de minha loba, mas estava claro como cristal em minha cabeça que a combinação que formávamos não daria certo a longo prazo. Acho que talvez tenha até sido essa realização, atuando em meu subconsciente, que não permitiu que ultrapassássemos aquela linha perigosa ontem a noite. Caso tivéssemos, meu trabalho hoje seria ainda pior, e eu estaria me sentindo literalmente o maior lixo humano sapiente por ter usado Mathias dessa forma com o intuito de me confortar.

– Tem certeza de que quer passar essa mensagem para ele, Becca? – perguntou-me Clayton, após eu ter ficado um tempo sem falar. – Quando vocês voltaram da viagem, bem, correram boatos…

– Boatos? Quais boatos? – indaguei de cenho franzido.

– Ah, que você e o solitário estavam tendo um rolo.

– Uhn – grunhi, pondo a mão na cabeça.

– Superou o rolo? – questionou-me, sobrancelha novamente levantada, observando-me pelo canto do olho enquanto cozinhava.

– Não é bem assim, não me pinte de malvada – murmurei. – Eu gostei de Mathias, gostei bastante. Gostei de verdade, mas por um tempo. Não que eu vá simplesmente esquecer-me dele para sempre.

Parei e Clayton também permaneceu em silêncio, esperando-me sentir confortável o suficiente para continuar.

– Eu estava confusa em Las Vegas. Talvez, um pouco influenciada pelo que o Mathias representa.

– E o que ele representa, Becca?

Terminei de mastigar o pedaço que tinha na boca e olhei fixamente através da janela da cozinha. Mathias representava tanta coisa… tanta coisa agora proibida para mim.

– Ele é como eu – falei, por fim. – Ao menos, como eu costumava ser. – Pela expressão de Clayton, percebi que ele havia compreendido; não era necessário eu adicionar que me referia a como eu era antes de entrar na alcateia. – A maior parte de mim já mudou, e está satisfeita com a mudança. Mas ainda existe uma parte de mim que não quer deixar quem eu era completamente para trás.

– E por isso você se apaixonou por ele?

– Me apaixonei pelo que eu achei que ele podia fazer por mim, pelos buracos na minha vida que ele podia preencher. Mas vi que não é bem assim.

– Não é outra pessoa que deve preencher os seus buracos, nem influenciar quem você é. Quem deve fazer isso é você mesma. – Clayton desligou o fogão e apoiou seus cotovelos em cima da bancada, olhando-me fixamente nos olhos. – E não existe somente um jeito de sentir-se livre, boneca.

– Eu até entendo – reclamei. – Compreendi agora que não posso querer ser alguém que já deixei de ser. Tenho de olhar adiante. Mas ainda existem buracos, Clay. Lacunas profundas que acho que não vou conseguir preencher nunca mais.

Clayton sorriu, mas dessa vez um sorriso doce e não travesso, como de costume. Aproximou seu rosto do meu, sussurrando:

– Confie mais nos seus instintos, boneca. Vá atrás daquilo que você secretamente quer, mas não percebe.

– O que quer dizer? – perguntei, pois realmente não estava entendendo o que ele estava tentando me dizer, de forma tão misteriosa. – Você parece uma bolacha chinesa da sorte, falando desse jeito!

Clayton levantou-se da bancada, com um sorriso no rosto, mas balançando a cabeça negativamente, inconformado. Fez seu prato de panquecas e pôs-se a comer, fazendo-me perceber que ele não me responderia quanto a isso. Após uns cinco minutos de silêncio, enquanto eu mesma terminava meu prato e o lavava, o lobo decidiu dirigir-me a palavra novamente.

– E aí, gostou do tour pela casa?

– O quê? – Quase me engasguei com minha própria saliva.

Ele olhava para seu próprio prato, brincando com a comida, parando para me encarar apenas por um breve segundo.

– Como sabe disso?

– Eu ia subir, mas quando ouvi você abrindo a porta de seu quarto e começar a perambular, decidi espionar.

– Você é um babaca.

– E você uma intrometida.

Hm, eu não tinha com o que retrucar.

Eu estava me sentindo melhor, apesar da constatação de que Clayton me viu no quarto do Alfa, mas ainda sentia que precisava de um tempo antes de sentar e conversar com Mathias. Ao menos eu havia tirado um pouco do peso de minhas costas pelo que fiz. Decidi pegar o casaco de alguém que tinha sido jogado no sofá da sala e o vesti.

– Vou dar uma saída – avisei Clayton.

– Espera aí, boneca. Aonde você vai? Está muito frágil para sair por aí desacompanhada.

Revirei meus olhos para meu amigo.

– Não estou frágil. E além do mais, se eu não me exercitar, nunca vou voltar ao normal. – Argumentei, e ele pareceu concordar. – Clayton, eu preciso sair dessa casa – acrescentei por fim, meus olhos certamente demonstrando meu desespero.

– Tudo bem, concordo que te faria bem. Mas quero saber onde você vai, assim, se você demorar muito, aciono a polícia lupina.

– Vou dar uma passada na minha casa, ver o estado, e depois talvez dar um pulo num café. Depois de tanto tempo entre a vida e morte, acho que desenvolvi um desejo por frapê. – Sorri para ele, o que me fez sentir culpada por ter que mentir. Eu queria apenas paz, sossego, e não queria ter um toque de recolher.

Eu tinha mesmo que falar com Mathias, sobre tudo, mas não queria ter de fazer isso assim tão cedo pela manhã. E principalmente não depois de passar tanta vergonha na frente de Clayton. Eu torcia para que Clay não mencionasse nenhuma das coisas que conversamos ao Aidan quando ele voltasse. Nem sobre o lobo adormecido, nem sobre minha visita a seu quarto.

Decidi que até o velho bosque, visto que, nada fazia eu me acalmar melhor do que aquelas árvores. Além disso, quanto mais eu caminhava, mais eu exercitava minhas pernas. Seria bom para mim. Havia algumas florestas em Columbus, mas aquela já carregava tantas histórias... Antes de eu me juntar à alcateia, eu a considerava minha, até dar de cara com um certo lobo Alfa. Depois que me juntei, os demais lobos passaram a caçar nela em grupo, ao invés de outra que utilizavam. A floresta era nossa, e seria meu refúgio mais uma vez.

 

~X~

 

Scarlet

 

Os olhos fundos e sem vida de Yenila me encaravam, estreitados. Bexi continuava ao meu lado, ao lado de onde o corpo de Rebecca tinha estado, até que eu consegui, com a ajuda da loba, tirá-lo daqui e, com sorte, acordado Becca de seu coma no mundo material.

Yenila estava desconfiada, isso eu já estava percebendo. Estava um tanto brava que seu novo lobo de “estimação” parecia gostar mais de mim do que dela. Estava desconfiada de que eu iria tomar o lobo dela e, bem, ela estava certa. Eu só não sabia como tirar Bexi dali sem ser a força.

Ela podia estar desconfiada, mas eu estava irritada. A maldita Yenila havia debochado de mim o tempo inteiro, como se já não bastasse minha frustração por ter sido privada de tantos aprendizados por não ter crescido com outros Selvagens. Sim, mesmo com tal deficiência, consegui tirar a parte humana de minha amiga do mundo espiritual, mas ainda faltava Bexi. E não seria essa tonta que ia manter Bexi prisioneira.

– Esse lobo não pertence a você – falei finalmente, após o que parecia ter sido uma disputa para ver quem desviava o olhar primeiro. Não havia sido eu.

Yenila virou sua atenção para Bexi, que permanecia imóvel no lugar onde estava. Eu sabia que ela não conseguiria, sem minha ajuda, sair do mundo espiritual e, muito menos, do controle do espírito.

– E quem é você para dizer isso? – indagou, ficando mais irritada comigo a cada segundo que se passava.

Ela não estava, claramente, feliz em me ver desafiando-a. Ela era, afinal, uma certa autoridade naquelas terras desoladas do mundo espiritual. E eu era apenas uma visitante.

– Posso ser apenas uma Selvagem, e ainda assim uma Selvagem aprendiz. Entretanto, pelas poucas lições que já aprendi, sei que nossa função é conciliar os espíritos do mundo espiritual. E ainda por cima, sou amiga do espírito lupino que você está tentando aprisionar – revelei. – O nome dela é Bexi, ela é um lobisomem e, para sua surpresa, ela é uma fêmea. Nem isso você conseguiu decifrar, o que me leva a duvidar ainda mais de suas habilidades de sequer cuidar dela. – Yenila me fulminava com o olhar. – Além do mais, sua parte humana está esperando por tempo demais para se juntar a ela novamente.

A guardiã daquelas terras respirou fundo e examinou-me de cima à baixo.

– O que eu não entendo, sua intrometida, é como você pretende forçar-me a libertar sua amiga. Selvagens não são famosos por sua força. Afinal de contas, não foram extintos já em boa parte do mundo?

Aquilo havia doído. Eu havia me sentido muito aliviada de saber que não era mais a única de minha espécie, mas era verdade que havíamos sido quase dizimados. Era uma raça inteira quase assassinada pelas bruxas. Memórias e cultura quase enterradas para sempre.

Entretanto, Yenila tinha um pouco de razão. Eu não conseguiria lutar contra ela, um espírito antigo e com imenso poder. Teria de barganhar.

– Posso não ter força o suficiente para te derrotar sozinha, mas tenho outras qualidades como Selvagem.

Os olhos antigos e sem vida dela brilharam.

– Está querendo fazer um acordo? – Ela riu para si mesma. – Só há um tipo de acordo que se pode fazer quando se lida com espíritos. Só tem um tipo de moeda para transacionar no mundo espiritual.

Encarava-a atentamente, pendurando-me a cada palavra que ela proferia. Talvez não fosse a coisa mais esperta a se fazer, mas eu não ia deixar minha melhor amiga sofrer por ainda mais tempo. Com Becca acordada, sua agonia em estar separada deveria estar sendo ainda maior.

– Caso realmente queira ver esse espírito livre, – falou, referindo-se à Bexi, que me encarava chocada, prevendo minha decisão. – precisa oferecer a mim outro espírito de igual valor. Ou seja, algum espírito sobrenatural. Querendo ou não, eu capturei essa loba quando a vi perambulando por meu território. A menos que alguém a tire de mim à força, o único jeito de ela sair daqui será sob forma de troca.

– Scar… – Bexi começou a falar, mas o olhar determinado que dei a ela a fez se calar.

– Bexi, essa é sua chance, e eu não irei deixá-la desperdiçá-la. A escolha, no final, é minha. – Minha voz não carregava dúvida. – Será temporário. Eu darei um jeito de sair daqui. Se não conseguir, tenho de confiar que Fernando dará um jeito de me ajudar, Gutierrez virá, ou Aidan fará alguma coisa. Alguém terá de vir, Bexi. – Dei uma pausa, observando meu redor, as rochas e a areia daquele deserto depressivo. – Se, mesmo assim, ninguém conseguir vir, sei que terei tomado a decisão certa, e então terá valido a pena.

– Scarlet…

– E então, pequena Selvagem? Tomou sua decisão? – pressionou-me Yenila. – Tem algum espírito para me dar em troca de sua amiga?

Cerrei meus punhos, tanto por estar cem por cento convicta de minha escolha, quanto por raiva da guardiã por me forçar a tomar esse caminho.

– Pra falar a verdade, tenho sim. – Yenila encarou-me duvidosa, mas logo um grande sorriso esboçou-se em seu rosto à medida que fui terminando de explicar. – Possuo meu próprio espírito. Cedo meu próprio espírito a você, Yenila, em troca da liberdade de Bexi, o espírito lupino que está ao meu lado.

O espírito gargalhou, não como alguém satisfeito, mas simplesmente como alguém que estava se divertindo muito com o que se passava. Com um dispensar de sua mão, senti meu corpo tornar-se mais pesado, como se estivesse carregando a clássica bola de ferro presa ao meu tornozelo.

Virei meu rosto para ver Bexi, e consegui vislumbrá-la um segundo antes de ela partir. Seus olhos azuis como gelo carregados de lágrimas, prestes a escorrer por seu alongado rosto lupino, e seu corpo, assim como o de Becca, tornando-se cada vez mais transparente até desaparecer por completo em um feixe de luz.

 

~X~

 

Becca

 

Ainda estava fresco, pois ainda estava cedo. Agradecia mentalmente por isso. Não sabia com precisão o horário que acordara, mas sabia que havia deixado Clayton na cozinha e saído da casa do Alfa em torno das oito da manhã.

Eu já havia dado algumas voltas lentamente pela mata e acabara parando para descansar perto do riacho que ali havia. Era um riacho raso, mas sempre muito bem vindo pela alcateia quando vínhamos correr e caçar. Eu molhava meus pés descalços na água, balançando-os para frente e para trás, depois em movimentos circulares, divertindo-me com o frescor e observando os peixes, assustados, desviarem seu percurso para passarem longe de mim.

Minha cabeça, apesar da aparente tranquilidade que meu corpo exalava, estava a mil por hora, preocupando-se com tantas coisas.

Primeiramente, eu queria estar com meus outros amigos. Queria ter podido me despedir de Corrie e Christian, de tê-los abraçado e agradecido por ajudar em Las Vegas. Eu havia ligado, antes de fazer besteira com Mathias, para Corrie no dia anterior. Mas nós duas sentíamos a necessidade de um último carinho. Carinho este que eu não sabia quando poderíamos nos dar.

Além do mais, todos que foram à Cidade do México foram por minha causa. Eu entendia que era impossível eu ter ido, afinal estava em coma e seria muito perigoso transportar-me de um lugar para o outro. Além de que, certamente não faria nenhum sentido, visto que eu desacordada não traria benefício algum a eles. Mas eu odiava ficar apenas na espera, sem fazer nada, aguardando que outras pessoas resolvessem meus problemas em meu lugar. Sentia-me inútil, sem minha loba e sem poder ajudar.

Segundamente, não conseguia pensar em um jeito menos ruim de conversar com Mathias. Eu não podia simplesmente deixá-lo no silêncio, fingir que nada havia acontecido. Não havia sido nada casual, havia sido um momento carregado de sentimentos, eu havia estado carregada de sentimentos. Mas agora eu já sabia com certeza quais eram. Eu havia decidido que, assim que voltasse para casa de Aidan, iria encontrá-lo e iria mostrar minhas cartas para ele. Seria doloroso? Sim, mas estava me esforçando para pensar em um jeito gentil e doce de dar a notícia para ele, ou ao menos um modo que não resultasse em ele me odiar para o resto da eternidade.

Terceiramente, havia Aidan, meu Alfa. Aquele que, eu tinha de reconhecer, continuava a se ferrar por culpa minha. Honestamente, ele estava arriscando muito por mim. Teoricamente, ele não precisava ter ido pessoalmente para o México. Não precisava nem ter enviado Trevor, seu Beta. Mas, conhecendo-o tão bem, ele quis ir, e quis levar, também seu Beta para se certificar de que tudo daria certo e para proteger a minha amiga Selvagem. Com isso, ele estava gastando tempo, energia e pondo sua alcateia em um estado frágil, sem necessidade. Sem necessidade, mas porque ele se importava.

Mesmo com os reforços de Seattle – que eu desprezava – e os solitários de Mathias, o fato perdurava: o Alfa e o Beta não estavam na cidade. Era uma notícia perigosa de ser espalhada e já estavam fora há algum tempo. Tempo esse tão longo, novamente, por minha causa.

Eu não sabia o motivo de Aidan fazer tanto por mim, mulher que havia se mostrado tão ingrata e teimosa no passado. Eu não esperava tanta gentileza e atenção de qualquer Alfa, mas Aidan não era, de fato, um Alfa qualquer. Ele era excepcional.

E, sem querer, quando eu pensava em Aidan e em como ele era excepcional em várias coisas, acabei tomando um rumo totalmente diferente de pensamento. Memórias começaram a fluir em minha mente como um dilúvio. Memórias que eu havia repreendido, forçado-me a esquecer.

Em Las Vegas, no Sweet Sleep Motel, no dia anterior a minha captura. Eu e Aidan, juntos.

Um calor começou a tomar conta de mim e comecei a me sentir desconfortável. Molhei minhas mãos no riacho e lavei meu rosto, tentando me refrescar. Aquela tarde com Aidan havia nos rendido uma tremenda briga e uma situação muito desconfortável entre nós. Além disso, tinha sido por causa do ocorrido naquela tarde que eu havia tido a brilhante ideia de fazer Roman pagar de qualquer forma, e sozinha. Custou-me minha loba.

Tinha, além disso, resultado em uma tremenda preocupação para mim. Preocupação esta que me fez ter uma das conversas mais desconfortáveis de minha vida, com Christian Barnett. Eu temia ter engravidado, ou pelo menos gostaria de saber quais as chances de isso ter ocorrido. Entretanto, os médicos de Robert, que tinham ficado encarregados de me cuidar enquanto estava inconsciente, asseguraram-me de que todas minhas funções biológicas haviam funcionado como o esperado. Todas.

O que, francamente, tinha sido um alívio para mim e certamente seria para Aidan, apesar de que ele não deveria ter pensado muito a respeito disso, já que deveria estar mais acostumado com a biologia e reprodução lupina do que eu. Para ser honesta, Aidan havia sido o primeiro lobisomem com o qual eu já tinha dormido – e talvez por isso tenha causado tamanha impressão sobre mim. De qualquer forma, apesar do que nos aconteceu, não havia esse tipo de ligação entre Aidan e eu, e eu não iria querer que uma criança fosse inserida em um meio como esse.

Deitei-me no chão, ponderando cochilar por alguns minutos, mas assim que minhas costas encostaram na grama, ouvi o barulho de folhas farfalhando e senti um peso enorme cair sobre mim.

Os olhos castanho-claros de Maxwell, parecidos com os meus, fitavam-me com malícia. Suas mãos, calejadas e fortes, prendiam-me pelos pulsos contra a grama. Seus joelhos, em cima de minhas pernas, impossibilitavam qualquer movimento meu da cintura para baixo. Seus caninos, alongados, escaparam sobre seus lábios, que se contorciam em um sorriso predatório.

– Ora ora, que cheiro é esse que eu sinto no ar? – perguntou-me em um sussurro.

Tentei me debater, mas sua força era tanta que nem isso eu conseguia fazer direito. Amaldiçoei-me por não ter força, como humana, contra ele. Amaldiçoei-me por ter saído sem companhia, mesmo que fosse com Mathias. Amaldiçoei-o por ser um filho de uma égua, no caso, em voz alta.

– Esse é o espírito, Rebecca. Me xinga. Me xinga mais. – Enterrou seu rosto em meu pescoço, apenas cheirando-me e acariciando-me com o nariz, ao menos por enquanto. – Sei que está excitada. Estava seguindo seu cheiro desde a estrada, e seja o que for que estava pensando nos últimos minutos, estava te deixando doidinha.

– Saia de cima de mim, Maxwell, não estou brincando! Quem pensa que é para falar comigo desse jeito? – Eu estava irada, mas, infelizmente, minhas palavras eram minha única arma naquela situação.

– Sou um velho amigo, oras. Me impressiona que você não tenha sentido saudades de mim. Justo eu, que sou tão igual a você.

– Você não é nada igual a mim! Você é um infeliz, valentão, que só sabe tentar se mostrar e oprimir os mais fracos.

– A vida me deu limões, eu fiz minha limonada, querida. Estou apenas utilizando os artifícios que a licantropia me proporcionou. – Tirou seu rosto de meu pescoço para que eu pudesse olhar em seus olhos. – Não fiz nada maior do que você também fez, assassina.

Respirei fundo antes de respondê-lo.

– Confesso... – comecei. – Confesso que, nos meus primeiros meses, eu era muito mais impulsiva e até sanguinária do que deveria ter sido. Confesso que fiquei cega pelo novo poder que eu tinha, que exagerei, não era preciso eu ter tirado a vida de meu amante. Mesmo sabendo o que ele era, eu poderia ter abordado a situação de forma diferente.

Aquelas palavras, percebi, estavam entaladas dentro de meu coração desde o dia que matei Bernard. Se Maxwell não servia para nada, ao menos havia servido para me fazer desabafar sobre meus erros passados.

– Mas você – continuei. – Você nunca irá mudar. É desse jeito há anos, e ainda se vangloria de ser assim. Você e seus amigos desprezíveis.

– Oh, Rebecca, não pense tão mal assim de mim. – Enfiou de volta o rosto em meu pescoço, mas dessa vez do outro lado, fungando meu cabelo e mordiscando meu pescoço. Minha pele formigava de um jeito terrível ao seu toque. – Depois do que vou fazer contigo agora…  passará a me venerar de joelhos.

Puxou um dos meus pulsos de encontro ao outro acima de minha cabeça, conseguindo segurá-los com apenas uma mão e ter a outra livre para se aventurar sobre mim. Afastou o rosto de meu pescoço apenas para refletir sobre o cheiro de Mathias, ainda fresco no me corpo.

– Vejo que não tem perdido tempo – zombou. – Acordou apenas ontem e já está com o cheiro de outro macho. – Engoli em seco. – Também sei deixar meu cheiro, Beccinha, mas acho isso tão monótono. Gosto mesmo é de deixar marcas.

Rasgou o zíper da jaqueta, que eu havia pegado do sofá e, portanto, nem sabia de quem era.

– O que você está fazendo? – gritei, alarmada, mas apenas arranquei uma terrível risada dele.

– O que parece que estou fazendo, Beccinha? Vamos lá, seja criativa.

E então fui atingida por um raio. Não literalmente, mas certamente a sensação que eu tive tinha sida a mesma. Meu corpo queimou, formigou, congelou, levitou, enrijeceu e relaxou tudo no intervalo de alguns segundos. E o silêncio aterrador em minha mente foi tomado por vida.

‘Olá, Becca. Estamos de volta.’

Maxwell, com a cara enfiada em lugares onde ela não deveria estar, não percebeu, mas eu senti. Senti minha força retornando, meus sentidos voltarem a se aguçar, meu espírito mesclando com o dela e voltando a ser uma mistura. Meus olhos, ainda mais com a raiva que estava sentindo, sem dúvidas estariam azuis.

Esta é a última vez que você me toca, Maxwell – falamos, banhando-nos na alegria de ter nossas vozes conjuntas novamente.

– Mas, Becca – começou, mas congelou quando seu olhar encontrou o meu.

Ele não teve tempo de reagir. Não acho que ele teria sentido medo de me ver com minhas habilidades novamente, mas no mínimo teria ficado surpreso.

Separei meus pulsos de sua mão e finquei minhas unhas em seus ombros, satisfeita ao ver seu sangue escorrer por onde eu o havia perfurado. Consegui livrar minhas pernas de seu peso e o chutei para longe, fazendo-o voar alguns metros e cair no riacho. Levantei-me e posicionei-me já na defensiva.

– Você voltou… – ele falou, seu cabelo pingando e suas roupas todas apertadas por causa da água. – Como conseguiu voltar? – Levantou-se lentamente, tendo machucado um pouco o quadril com a queda.

– Eu não sei, só sei que eu e minha loba nunca mais vamos nos separar.

‘Bexi, meu nome agora é Bexi.’ – ela falou em minha mente, e meu coração se encheu de alegria com tal informação. Então meus amigos na Cidade do México a haviam batizado.

– Bem, não importa. Na verdade, isso torna as coisas até mais interessantes.

– Não se atreva – ameacei.

Mas ele não me deu ouvidos. Correu em minha direção novamente. Fiz força contra o tórax dele, conseguindo nos desacelerar enquanto ele nos empurrava para junto de um tronco, mas não consegui parar-nos.

Colocou sua mão sobre meu pescoço, quase estrangulando-me. Olhava-me de cima, com ar de superioridade. Queria mostrar dominância, mas éramos de níveis parecidos demais. Nenhum de nós conseguiria sair dali sem uma luta. Uma simples demonstração de dominância não iria dar certo dessa vez.

– É tão divertido, Rebecca, fazer essas coisas com você – ria enquanto me examinava de cima. – Eu até tenho uma fêmea me esperando na alcateia, mas não tem a mesma graça – contou, e imediatamente senti pena dela. – Ela é parecida com você, chata, cabeça-quente, mas tem algo de tão especial em te irritar e te ver indefesa… não sei dizer o que é, mas me deixa louco.

Aproximou-se de meu pescoço e mordeu-me. Não de forma sexual, mas predatória. Talvez ele gostasse disso de alguma maneira diferente da sexual, uma forma de demonstração de poder.

Gritei de dor, logo em seguida xingando-me mentalmente por ter dado esse prazer a ele. Reunindo todas as minhas forças, soquei-o repetidas vezes no estômago até ele me soltar e me xingar em voz alta. Sem deixá-lo ter tempo para pensar, meti-lhe um soco que certamente quebrou seu nariz, pois ouvi-o estalar.

– Fique. Longe. De mim – arfei enquanto o pegava pela gola da camisa e o levantava, fazendo-o ficar cara-a-cara comigo. – Entendeu? Suma, volte pra porra da Alcateia de Seattle.

Ele ia abrir a boca para protestar, mas fui mais rápida, jogando-o no chão.

Eu não tenho medo de matar, Maxwell. Você não seria o primeiro homem que eu já matei, como você mesmo adora me lembrar. – Bexi falava através de mim. – Só não te matei ainda pois não quero encrenca com Joseph. Mas, se você me forçar, eu o farei e com o maior prazer. Portanto, deixe-me em paz.

Certifiquei-me de que ele iria ficar quieto e se recompondo na mata para pegar o que restou da jaqueta e tentar me cobrir. Fiz meu caminho, com passadas rápidas, para fora da floresta.

Quando estava na última árvore, aquela que demarcava a fronteira entre floresta e rodovia, senti um bafo quente na minha nuca.

– Já entendi, Beccinha. Você quer que eu melhore meu nível? Pois é isso que irei fazer. Apenas aguarde.

Virei-me para enfrentá-lo, maldito lobo que não desistia nunca, mas ele já não estava mais lá. Não havia sinal mais de Maxwell na floresta.


Notas Finais


YAY Vamos todos festejar, porque esse capítulo merece festa, não é verdade? *O*
Mas, não é mesmo preocupação, também, tanto por causa de Scar e de Maxwell. O que vocês acham que vai acontecer com a Scar? E com Max, o que será que ele está planejando?

Os JORNAIS VOLTARAM, galera! Isso aí, hoje já temos o primeiro jornal de personagens de Valente, aqui o link:
https://spiritfanfics.com/perfil/bruuhdt/jornal/personagens-dominante-xxiv-maxwell-kentner-8588582
Confiram e não deixem de me dizerem o que acharam *O*

Obrigada demais por lerem pessoal. Estou tão animada com Valente e espero que vocês também estejam <3 Beijos e vejo todos nos comentários!


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