Angelina
Melros atravessam o céu pálido. É uma manhã fresca de Outono quando retorno a universidade. Estou feliz por estar de volta. É um novo começo. De certa forma, posso imaginar que estou começando na faculdade agora. Essa é a primeira vez que piso aqui e só conheço Alyssa e ninguém mais. É minha chance de tentar esquecer tudo e pensamentos do tipo ”não vou conseguir” estão sendo evitados, embora eu esteja pensando tanto em evitar, que acabo pensando… droga.
— Tudo bem? — pergunta Alyssa, segurando meu dedo mindinho delicadamente. Ela franze a testa, os olhos claros em uma mistura de preocupação e amor.
— Estou, Aly — digo e liberto meu dedo. Meus lábios se partem em um sorriso. — Estou ótima, de verdade. Foi só uma perna quebrada, um braço também. Super normal — pisco só um olho. — Irado no gado.
Alyssa continua me olhando daquele jeito cheio de compaixão e eu tenho vontade de xingar e mandá-la me deixar em paz, mas estou me esforçando, afinal, não posso ser uma vaca com a última pessoa confiável em minha vida.
— Olha, baby, você sabe que comigo não precisa fingir, né? — sussurra.
— Estou bem, já falei — rolo os olhos.
— O.k — Alyssa me puxa para ela, me abraçando com força. Traz a boca para perto de meu ouvido. — Qualquer coisa, digo, qualquer coisa que precisar mesmo, me procura. Desde maconha e testículos à musiquinhas para pegar no sono. Beleza?
Dou uma risadinha vazia e fico encostada na porta de meu quarto observando minha melhor amiga se distanciar cada vez mais pelo longo corredor.
— Você é a melhor! — berro, sorrindo.
Ela se vira, mas sem parar de andar.
— Sei disso, querida! — pega o corredor da esquerda e some de vista.
Entro em meu quarto. Alguém o arrumou, limpou e encerou. Devo ficar grata? Sei que estou quebrada e que se ninguém organizasse para mim ficaria um zona pelas próximas três semanas, mas realmente não estou agradecida. Odeio que mexam em minha bagunça. Coisa de gente problemática. Expiro lentamente e sento na cama. Meu coração e minha mente travam uma guerra dentro de mim.
Não. Não faça isso. Não pense que não vai conseguir. Não pense. Esqueça. Não pense que não vai conseguir. Não pense.
Nathaniel. O que será que ele está fazendo agora? Nesse instante?
Não. Não faça isso, sua idiota. Esqueça-o. Você consegue.
Odeio ele, de verdade, mas gostaria conseguir parar de amá-lo.
Esqueça, Angelina! Esqueça! Você consegue!
Nesse instante ele deve estar….
Você é mesmo uma estúpida.
O pior, é que o coração vence facilmente.
Nathaniel
Mas qual luz abre a sombra deste balcão? Eis o oriente é Julieta, e o sol!… Oh, e a minha mulher e o meu amor!
Fecho o exemplar tirado só para mim, ainda um pouco transtornado. É muita informação para o processador um pouco lento que é meu cérebro. Depois de admirar a capa até meus olhos se cansarem com a cor, guardo-o na mesinha de cabeceira e desabo na cama.
Agora que tudo parece estar resolvido, eu não vejo alternativa de seguir a diante como se tudo não tivesse acontecido.
Amy morta, suicídio. Confere.
Peter e eu descobertos. Confere.
Amy e eu descobertos. Confere.
Jesse e eu nos odiando mais ainda. Confere.
Livro publicado. Confere.
Angelina me odiando. Confere.
Dar um tempo de tudo nunca fez tanto sentido. Estudar e só estudar. Todo o resto está deletado da minha vida temporariamente.
Momentaneamente.
Porque minha história com Angelina ainda não teve seu ponto final e não finalizo uma história com vírgulas ou reticências. Também não coloco ponto final até a última frase ser de felicidade.
Jesse
Bato na porta e me sinto um pouco idiota.
É claro que ela não abrirá, está toda quebrada. Então suspiro e rodo a maçaneta. A porta abre com um rangido e irrompo no quarto, resignado. Aí também penso que entrar no quarto de uma garota sem permissão não é muito legal, mas pensando melhor, a situação exige, então que se dane.
Ela está em pé, em frente a cama e a janela semi-aberta que varre o quarto com pequenas frestas de luz. Seu cabelo levemente ondulado esconde parte do rosto. A franja comprida escorre, bate no nariz arrebitado. O vestido florido combina com sua pele acobreada, o que não está certo ali é o suporte de ligas no braço e na perna. Os pés descalços apresentam unhas pintadas em um rosa claro delicado. Pela primeira vez paro para perceber a importância da mulher em si. Os cabelos grandes, o cheiro de baunilha, as curvas dos seios e dos quadris, os traços finos e suaves, a feminilidade que o vestido dá, a graça das flores e seus raminhos. Uma vez li um poema em que o poeta falava que tudo estava interligado, e que quando um dos fios se partia, a completitude se desfazia, levando consigo tudo que um dia unia o especial. Vendo Angelina ali, faz sentido.
— Morena — digo.
Ela põe a franja atrás da orelha e me espia sem demonstrar muita coisa.
— Oi — fala, sua voz está doce e aveludada. — Desculpe, sabe, por tudo.
— Tudo bem — digo, porque drama nunca foi meu forte. — Algum dia pretendia me contar?
Desvia o olhar, fixando-os no canto.
— Talvez, não sei ao certo — as orbes voltam a fitar-me. — Podia mentir, dizendo que “sim”, mas eu realmente não sei. Entende? Eu só tinha medo, de machucar você. Fui egoísta.
— Medo é a desculpa universal para tudo — minha sobrancelha se ergue.
— Foi o que eu tive — ela dá um passo para trás e senta no beliche de baixo. — Espero que algum dia entenda.
— Já entendo — afirmo.
Porque é verdade. Eu entendo. Às vezes, as pessoas travam e se fecham em seu próprio casulo do “eu”. “Como eu me sentiria se fosse ele?’ é uma das perguntas. Não generalizando, porque isso é difícil de acontecer na sociedade atual, mas quando se trata de segredos… bem, segredo é uma coisa complicada ainda mais quando envolve três pessoas. O segredo que estou falando, agora não é mais segredo, agora é uma verdade aterradora demais, e que causou em mim o efeito que Angelina esperava, que temia, que provocou sua falta de atitude. Dor.
Ela impulsiona o corpo para trás e encosta na parede. Ergue a perna boa que balançava continuamente antes e abraça o joelho. Angelina bate com a mão no espaço vazio ao seu lado, um convite silencioso para me sentar ao seu lado. E é o que faço.
— Sabe qual seu problema, Jess? Você cria afeto por uma pessoa e pensa que ama. Não. Você não ama. Não amou Amy, nem por um instante — a voz dela não é acusatória, nem rancorosa. É o tipo de voz que uma pessoa usa para anunciar o que temos de almoço.
— Você diz isso com base em…
— As circunstâncias — vira o rosto em direção ao meu. — Porra, o que tivemos juntos foi incrível e você nem sentiu culpa. Amy era uma doente embaixo do seu nariz e você nem notou.
— Sei disso — e coloco minha mão em cima da dela, fechando como um bracelete em sua palma.
— Mas sabe?! Um velho ditado diz: quem vive de passado é museu — ela sorri e tenta tirar a franja que cai em meu rosto, jogando-a para trás, porém não tem solução, a franja volta como um imã ligado a minha testa. Depois toca na minha barba por fazer, em um gesto não romântico, mas afetuoso. — Tem coisas importantes lá, mas outras, cedo ou tarde, acabam virando pó. E cá entre, nós, a essa altura Amy é quase isso. E na sua mente? O que ela é?
Engulo em seco e chego a uma conclusão, uma triste conclusão.
— Acabou, Amy não é mais importante — meus olhos se perdem no assoalho. Então viro a cabeça e minhas orbes encontram as de Angelina. — Mas pó? Não, em minha mente ela nunca chegará ao pó, ao esquecimento. É impossível. Já marcou, fez sua desgraça e puff.
— Puff — murmura.
Ficamos em absoluto silêncio. Os minutos passam, e o ponteiro do relógio corre. É meio que um estupor, cada um com seus pensamentos. Olhos vidrados, piscando. Corpos lado a lado e uma cama desconfortável embaixo. Calor das mãos e meu dedo batucando involuntariamente em seu indicador.
Relanceio o olhar para a janela e noto pela primeira vez que está escuro. Tudo escuro, um breu completo. Não distinguo mais Angelina na escuridão. E isso me tira do estupor que faz me recordar o segundo motivo que me levou ao quarto.
— Ei, tenho maconha, quer? — pulo da cama e acendo a luz. Meus olhos ardem inicialmente e eles se semicerram até acostumar.
Angelina dá aquele sorrisinho malandro, aquele que quebra toda a imagem de boa garota que resplandece dela e me faz ter certeza que ela só não é mais perva porque seu lado puritano compete.
— Santo Deus, fazia tempo que não ouvia uma pergunta tão maravilhosa assim antes.
Angelina
A fumaça sobe ao teto em semicírculos. A cabeça de Jess toca na minha, mas não é uma sensação que noto realmente. É indiferente.
Prendo o cigarro no lábio e trago. E trago, trago, trago.
— Ei, quer ouvir uma piada? — pergunto. — O que o cérebro disse ao coração ferido?
Jess fica em silêncio, então vira a cabeça em minha direção, com a testa franzida.
— O que o cérebro disse ao coração ferido? — repete.
— Dá próxima vez, me use — tento fazer anéis de fumaça mas não consigo.
Jess ri, ri e ri. Estirado no chão ri. Aí do nada a risada cessa.
— Nossa, que bosta de piada — diz, finaliza o cigarro e puxa o meu.
— Sim — admito. — Mas vamos concordar que faz sentido.
Ele traga meu cigarro e me devolve. Solta uma risadinha e dessa vez acompanho-o.
— Principalmente para a gente — completa.
— Que bosta — xingo.
— Ei, e se deixássemos tudo isso?
— Tudo?
— É, você sabe, tudo.
— Hm… — ponho o cigarro na boca, ainda sem entender direito.
— Você lembra? Uma moto, viajar e viajar.
— Sexo o dia todo — sussurro, porque esse é o nosso segredinho.
— Então?
A ideia me parece imbecil. Ainda estamos em aulas, não podemos abandonar tudo, mas pensando melhor, o semestre acaba semana que vem, o natal está próximo. Além disso, Nathaniel ainda é uma lembrança constante em meus pensamentos, é praticamente como se ele habitasse o ar que respiro. Porém, algo parece se encaixar melhor entre mim e Jess. Não nos amamos, somos amigos, mas sinto que eu poderia viver com ele para sempre, senti-lo em mim eternamente, não seria errado e eu não estaria infeliz. E sei no fundo do meu âmago que o mesmo acontece com ele, exatamente igual, Amy habita-o.
Só que, do mesmo jeito que sei disso tudo, sei que quem vive de passado é museu, e sei também que se Jess e eu nos encaixamos, podemos formar algo, algo legal, algo bonito.
— Combinado — murmuro.
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