O velho galpão nunca estivera tão frio, ou talvez fosse apenas a onda de tensão que dominava meu corpo a me causar calafrios, não saberia dizer. A única coisa em que eu conseguia pensar enquanto estava deitando o corpo desacordado de Alaizabel sobre saco de dormir de Suri era que estávamos num beco sem saída. Em uma cidade pequena tudo era mera questão de tempo.
— O que faremos agora? — sentei-me muito quieto e acendi uma fogueira para me manter quente e ocupado, enquanto observava Uriel arrancando os sapatos e abrindo a própria mochila num canto escuro do depósito. — Não vão demorar a dar falta da garota e aí saberão que os descobrimos.
— Estou pensando em alguma coisa — murmurou Suri de pé a alguns metros da fogueira, os olhos cintilando em tons de vermelho, refletindo a luz das chamas. Parecia calma, ainda que preocupada — Não consigo parar de pensar naquela mulher...
— Aquela era a mãe da Alaizabel — falei quase num sussurro.
— Ela estava tomando conta o corpo a filha, sem dúvidas — uma Uriel mais familiar às minhas lembranças voltou ao nosso campo de visão.
— Mas por quê?
— Talvez para que ninguém a levasse, tipo como fizemos? — a sobrancelha de Uriel se ergueu com seu sarcasmo.
— Não acho que seja isso — Suri continuava encarando o fogo. Quase dava para ver seu cérebro trabalhando através de suas retinas — Apenas os próprios membros da Seita conhecem a cripta dos rituais e acho difícil que haja traidores entre eles... Não... Há algo mais... Algo que não se encaixa...
De súbito rolei pelo chão quando Alaizabel ergueu-se diante de nós. Seus olhos arregalaram-se nas órbitas, vermelhos e úmidos. As olheiras negras e fundas se projetavam em seu rosto magro e pálido, dando-lhe um horrível aspecto cadavérico.
— Noah...? — Sua voz sibilada ecoou rouca e fraca dentro de minha cabeça. Ela franziu o cenho, como se tentasse puxar da memória qualquer traço de familiaridade entre nós.
— Alaizabel... — murmurei com cautela.
— Noah!
O medo deu lugar a um choro soluçado. Minha amiga agarrou-me num abraço forte e dava para ouvir seus lábios se abrindo num sorriso lenitivo.
— Onde estou? — Ela afastou-se e olhou a volta. — Quem são essas pessoas?
— Relaxa, somos boazinhas, eu juro! — Uriel ergueu as mãos em sinal de paz e fuzilei-a em silêncio.
Você quer ajudá-la ou assustá-la, sua maluca!?
— Noah, eu me lembro... Eu me lembro! — Bradou Alaizabel um tanto desnorteada. Ela agarrou meus braços com as duas mãos e começou a falar de jeito rápido e caótico. — Tudo está claro agora... Eles... Meu pai... Oh, Noah, é terrível, você não pode imaginar...
De repente ela se calou, os olhos espantados vidrados nos meus.
— Eu... Eu não... Não deveria estar aqui... Eu não deveria estar aqui! — gritou ela se afastando, as lágrimas desciam torrencialmente por seu semblante aterrorizado.
— Ei, Alaizabel, calma, está tudo bem... — arrisquei alguns passos até ela. — Nós podemos te ajudar...
— Não!
Não tivemos muito tempo para pensar em seguida. Alaizabel correu para a saída, gritando que precisava ir embora, e como se tivesse batido contra uma porta invisível, ela caiu para trás, gemendo e se contorcendo.
— Alaizabe...
— Não! — gritou Suri aproximando-se e observando minha amiga com atenção. — Deixe-a...
— Alaizabel... Deixe-me te ajudar... — implorei preocupado.
— Você... Não pode... Ajudar...
Abri a boca, mas não houve nenhum som. De repente uma sensação fria e apavorante consumiu meu corpo e minha mente. Pude enfim perceber que aquela diante de nós deixara de ser minha amiga. Quando? Não saberia dizer. A única coisa que eu sabia era que aquela voz que saíra dos lábios de Alaizabel — uma voz rouca, velha e cortante — definitivamente não era a dela.
— Essa menina está possuída — concluiu Suri.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Alaizabel, ou o que parecia ser ela, debateu-se e gritou enquanto a amarrávamos a uma cadeira velha do escritório abandonado do galpão.
— Por que temos que amarrá-la? Ela não é perigosa! — debati segurando os braços de minha amiga, que insistia em rosnar e a tentar se soltar de nós.
— Sim, ela é! — respondeu-me Uriel. Com força, ela conseguiu amarrar um dos pés de Alaizabel e estava começando a amarrar o outro quando virou-se para mim com impaciência. — Essa não é mais a sua amiga, campeão. Supere logo isso para o bem de todos nós!
Sentei-me encolhido junto à fogueira. Nada daquilo fazia sentido e a dor de perder minha amiga começava a latejar horrivelmente em meu peito. Aquele era o fim? O fim de Alaizabel, daquela menina meiga, linda e carinhosa com quem eu havia crescido?
— Ei, deixe-me cuidar disso — Suri sentou-se ao meu lado e segurou meu braço, fazendo-me voltar de meus pensamentos obscuros. Mal havia me dado conta de que estava sangrando.
— Obrigado — agradeci sem vontade.
— Esse espírito é forte — falou Uriel do outro lado da fogueira. Eu a vi olhar a sua volta, como se pudesse ouvir coisas que mais ninguém ouvia. — a aura dele está por toda parte. Precisamos interrogá-lo e saber quais são seus planos.
— Eu farei isso — disse prontamente.
— Fora de questão! — rebateu Uriel lançando-me um olhar fulminante. — Você está muito envolvido com essa menina e ele vai usar tudo contra você. É muito perigoso e você não tem experiência!
— Eles usaram a Alaizabel e eu quero saber o motivo! Eu vou! — berrei com raiva. Soltei-me de Suri e corri para a sala onde havíamos amarrado minha amiga sem esperar novos protestos.
Assim que entrei Alaizabel ergueu os olhos em minha direção e deixou a cabeça pender para um lado. Não havia nada em seu semblante, nenhum resquício da vivacidade que antes a fazia sorrir e brilhar como a luz do dia. Era um mero corpo frio, habitado por um ser que eu desconhecia.
— Estava me perguntando... Quando mandariam a primeira vítima — sibilou a voz melodiosa da antiga Alaizabel, que apesar de familiar, não me enganaria.
— O que você quer aqui? — Perguntei com cautela. Estava consciente de que meu corpo tremia e meu coração batia alardeado, mas talvez ela não soubesse daquilo. Precisava manter a calma.
— Então vamos manter as velhas formalidades? Que antiquado... — os lábios da garota se rasgaram num sorrisinho sarcástico. — Eu esperava uma recepção mais carinhosa de sua parte.
Respirei fundo e tentei controlar meus nervos fechando as mãos em punho.
— Você foi um falso amigo, Noah... — Alaizabel estreitou os olhos, seus cabelos caiam sobre seus ombros, sujos e desgrenhados — Você me seduziu e me usou... E no primeiro obstáculo... Trocou-me por outra!
Arregalei os olhos, revelando espanto. Como ela sabia? Como poderia saber?
— Você me traiu! — ela urrou ferozmente, sacudindo-se na cadeira como um bicho selvagem tentando se soltar da jaula. — Você é um traidor, Noah! Eu te odeio!
— Pare! — exclamei com aflição.
— Como pôde fazer isso comigo, Noah? — Finalmente ela parou de se debater e me encarou com tristeza. — Eu não era suficiente pra você? — Um soluço escapou-lhe por entre os lábios frêmitos. — Por que se envolveu com aquela nefilim imunda? Ela não é mulher pra você, Noah... Se... Se me soltar, garanto que tudo será diferente, eu juro... Seremos tão felizes...
— Cale a boca — murmurei angustiado, mal conseguia encará-la.
— Eu consigo ver através de você, Noah... Eu vejo tudinho — ouvi os lábios de Alaizabel se abrindo num sorriso — Sei que ainda me ama, mas aquela demoniazinha colocou coisas na sua cabeça... Coisas que agora te fazem pensar. Deixe-me então acabar com as suas dúvidas... Você nunca poderá tê-la...
— Chega de asneiras! — gritei num impulso que me pegou de surpresa. Meu peito subia e descia no ritmo acelerado de minha respiração. Ódio e impotência cresciam dentro de mim. Eu precisava silenciá-la e voltar ao rumo certo da nossa conversa antes que ela me enlouquecesse. — Diga logo o que você quer aqui ou não vai durar muito mais tempo...
—Asneiras? É como você chama? — ela suspirou alto num gesto claramente decepcionado. — Você não consegue ver, não é? É mesmo bem penoso. A Alaizabel está muito triste por saber sobre essa sua quedinha por aquela nefilim pecadora, sabia? Mas não se preocupe, eu já a tranqüilizei. Eu disse a ela que aquela vadia nunca poderá ter você de verdade...
— Eu mandei você parar! — Vociferei no ápice da raiva. Não aguentava mais, não podia mais ouvir sequer uma palavra venenosa dela.
Não estava raciocinando direito quando Uriel invadiu a sala e se pôs entre mim e Alaizabel. Ela segurou-me pelos braços, obrigando-me a olhar para ela. Havia preocupação em seu semblante pálido.
— Está tudo bem? — perguntou-me em tom estranhamente gentil.
— Olha quem veio socorrer seu príncipe encantado... — Alaizabel riu, agradada.
— Você precisa ir, Noah — a voz suave de Uriel ecoava distante em meio à tempestade de sentimentos que dominava meu corpo e minha mente.
— Sabia que estávamos conversando sobre você, menina nefilim? — Alaizabel parecia feliz — Falávamos sobre seus péssimos hábitos... Seus pecados... Pergunto-me por que não teve coragem de corromper esse garoto... Você é tão fraca...
Uriel lançou a outra um olhar que silenciaria até o mais perigoso dos homens.
— Do que ela está falando? — questionei de repente curioso sobre o rumo daquela conversa.
— Está plantando o mal nas nossas cabeças. Vamos, temos que ir, chega de papo por hoje — Uriel tentou puxar-me para fora, mas me desprendi dela e encarei Alaizabel.
— O mal? Plantando o mal? — a moça fez-se de decepcionada. — Assim você me ofende...
— Por que não fecha essa matraca? — rosnou Uriel, voltando a segurar meu braço na tentativa de nos tirar da sala. — Noah... Vamos embora...
— Do que está falando? — minha pergunta foi direta. Alaizabel esboçou um sorrisinho inocente nos lábios.
— Ela não te contou a verdade, não é? É — os olhos avermelhados da garota foram de Uriel para mim — Ela não teve coragem. Ela é uma mentirosa!
— Cale a boca, sua bruxa!
Mas antes que Uriel avançasse contra Alaizabel, eu a segurei como nunca havia feito antes. Ela virou-se para mim, espantada.
— Noah...
— Eu quero saber — respondi veemente. — Fale — ordenei encarando Alaizabel, muito contente em sua cadeira.
— A verdade é que a sua amiguinha nefilim é uma alma perdida. Ela nunca poderá ascender, sabia? Está condenada a esta terra para sempre! — Os pés de Alaizabel se balançavam para frente e para trás, enquanto ela desnudava o segredo mais profundo de Uriel com divertimento. — É uma pena, não é? Ela caiu em tentação só uma vezinha e veja o estrago que fez à própria vida. E agora ela decepciona vocês... É um grande peso morto preso à barra da saia da irmã... E tudo porque não quer ficar aqui sozinha...
— Chega! — Uriel lutou em meus braços para atacar Alaizabel, mas eu a segurei com força.
— Essa é a vida dela, Noah. Um pecadinho de cada vez... — sibiliou a outra rindo com desdém.
— Você vai voltar para onde veio, nem que eu mesma tenha que te levar até lá! — rosnava Uriel debatendo-se em meus braços.
— Mas tenho que admitir... Essa história de vocês é bonita, sabe? — refletiu Alaizabel. — Ela se apaixona por você e você mal sabe quem escolher, não é, Noah? Talvez agora conhecendo a verdade seja capaz de julgar qual de nós é melhor — naquele momento, Alaizabel lançou-me um olhar frio e obstinado. Quase pude enxergar através de seus olhos a verdadeira alma que comandava seu corpo e pensamentos. — Durma com ela... E terá o mesmo destino.
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