"Curiosidade mata, dependendo da proporção;"
O salto que a crioula utilizava açoitava o chão e o som agudo deixava nítido a todos que cruzavam-lhe o caminho que não interrompessem seu trajeto, caso contrário, lidariam com as consequências. Não que Clarisse fosse matá-los ou algo assim, nada disso, ela só não encontrava-se em seu melhor temperamento.
A cacheada era afável e simpática até demais, raramente se enraivecia; mas, quando acontecia, nada a segurava. Seu pai, dono do hotel, havia lhe pedido que não se intrometesse nos assuntos do Villas Hill, todavia, na concepção da mulher, se tornava inadmissível já que todos ignoravam o último e lastimável acontecimento.
Há um dia atrás um hóspede fora assassinado, mas Robert, pai de Clarisse, decidiu manter o episódio guardado as sete chave. A morena compreendeu o fato dele preferir poupar os outros clientes do hotel e, principalmente, a fama do Villas Hill; porém não iria desconsiderar a lista desmedida de problemas que acompanhava o evento. Afinal, se ocorreu uma vez, há de acontecer outra. Mas Clarisse, determinada, pretendia impedir quem quer que houvesse feito aquela atrocidade antes. Sentia-se enjoada ao relembrar aquela cena horrível no quarto onde o homem, Sullivan, localizava-se já sem vida e numa situação precária. Havia sangue espargido em todo o lugar, o corpo dele estava nu e, em seu pescoço, havia uma corda espessa a enforcá-lo. Cortes profundos distribuídos em seu corpo enfeitavam sua pele branca, mas ele já havia perdido quase todo o seu sangue, que agora inundava o quarto. Mas o pior foi ver o rasgo que começava em seu peitoral e ía até o pé da barriga, e, onde deveriam estar seus órgãos, um oco dominava a área. Seja lá que monstro esse assassino fosse, era um dos piores, pois além de matar roubou os órgãos da vítima.
Recordar era o mesmo que se torturar.
Havia sido recente e, nisso, nenhum hóspede notara o cheiro detestável. Robert exigiu que fossem discretos ao retirar o corpo do prédio e pediu, logo depois, que limpassem o quarto e o que fosse preciso para não se reparar que ali desenrolou-se um assassinato.
O proprietário do Villas Hill não arriscaria a reputação que tanto passou arduamente a vida para construir por um pequeno acaso.
Então Clarie estava sozinha nessa, já que não apetecia à ela inquietar Elise, sua mãe, para ameaçar seu pai a resolver a situação de uma vez. E a cacheada já havia discutido demais com Daniel, seu namorado, e ele não aprovava a ideia e até tentou impedi-la; o que é impossível. Não iria inserir ninguém na sua lista de "pessoas prováveis a me ajudar", só contaria com sua sorte para não ser o próximo alvo do tal assassino.
***
A mulata permanecia sentada naquele divã vermelho-sangue há muito tempo, no mínimo completavam-se cinco horas. Seu corpo cansava-se da mesma posição e já sentia suas nádegas formigarem, amaldiçoando mentalmente o seu convidado por não ter comparecido. Ela havia intimado um detetive para encontrá-la no lobby do hotel, para que pudessem argumentar sobre a questão em especial. Clarisse sacou o celular do bolso da calça e espiou os números vívidos que marcavam-lhe a tela, respirando fundo para não arremessar o vaso de porcelana que situava-se na mesa de centro.
Por fim, decepcionada, ponderou que o homem não compareceria. Desatou um suspiro frustrado que segurava a demasiado tempo e, ao ouvir alguns burburinhos, olhou ao redor; a maioria das pessoas que se encontravam no saguão lançavam seus olhares ao bar luminoso que existia ali. Clarisse, claramente e igualmente curiosa, acobertou-se em seus cheios e longos cachos, para assim espiar de canto de olho o extenso e bem elaborado bar.
O balcão era de uma madeira rústica, mas as luzes que aclaravam transferiam um ar aconchegante. As cadeiras eram vermelhas e, se bem a garota lembrava, havia sido ela a escolhê-las com a arquiteta do hotel.
O hall, assim como o Villas Hill inteiro, possuía um tamanho colossal, mas também disponibilizava um conforto indiscutível.
Ao finalmente observar os dois seres que ocupavam o bar, Clarisse arqueou as sobrancelhas, interrogando a si mesma. Não eram eles que surgiram antes dos assassinatos?
A mulher era definitivamente de uma beleza estonteante. Trajava um vestido de cor escarlate, semelhante ao batom que desenhava sua boca, e a sua pele era alva, dando liberdade as suas bochechas aderirem um tom rosado pelo frio que a noite proporcionava.
O homem, não tão diferente, era de extorquir o fôlego. O cabelos louros estavam penteados para trás, num ar elegante, e trajava um terno preto. Seu semblante, porém, passava um aspecto nada agradável. Dono de olhos azuis e uma estatura alta, um sorrisinho debochado domina-lhe os lábios.
Clarisse intrigou-se, buscando em suas lembranças o nome dos indivíduos. Porém não relembrava, mas conseguia ver vagamente quando Davis, recepcionista do hotel, lhe avisou sobre eles e citou seus devidos nomes.
Mais do que nunca, a morena se encontrava aflita, já que constantemente podia sentir os olhares que aquela mulher e aquele homem estavam dando à ela. É claro que podia ser paranóia sua teimar logo com eles, mas algo puxava-a diretamente para os dois.
Insegura do que fazer, Clarisse olhou para os lados e suas órbitas pousaram num assento à duas cadeiras deles. No bar.
Com um pouco mais de calma e, aparentemente, como quem não quer nada, Clarisse caminhou até o seu pequeno destino.
Ao sentar numa das cadeiras de frente para o balcão, os dois a examinaram de cima a baixo e ela, esperta, fingiu não notar.
— Uma garrafa d'água, por favor — solicitou, oferecendo, em troca, um sorriso amigável ao homem.
Apenas assentiu e se retirou, logo retornando com o pedido. Ela murmurou um "obrigada" e continuou ali, demonstrando que permaneceria por um pouco mais de tempo àqueles dois indivíduos que julgavam-na apenas com o olhar. Ainda simulando seu papel de moça-que-só-quer-uma-garrafa-de-água, puxou seu celular do bolso de sua calça, fingindo interesse por seja lá o que a mesma fuçava tanto. Eles então continuaram sua conversa, ignorando o infortúnio.
Espiou ligeiramente e direcionou a minúscula lente do celular para os dois, da forma mais discreta possível. Após surripiar três fotos, se endireitou e tomou longos goles de sua água, buscando aliviar o medo que sentia corromper seu peito. Depois tentou escutar de modo que fosse imperceptível para eles, apoiando o cotovelo no balcão e então a cabeça na própria mão. Era uma posição frouxa, em que a garota parecia desligada de tudo ao seu redor, mas era o total inverso. Ouvia algumas palavras jogadas no ar, mas não conseguia interliga-las e se viu frustrada consigo mesma, batendo de leve com o punho sobre a madeira rústica; o que chamou a atenção do homem e ela lhe lançou um olhar de desculpas, levantando o celular, como se colocasse a culpa no aparelho.
***
Já havia desistido e soltou um suspiro cansado ao vê-los erguerem-se, com sorrisos calorosos enfeitando-lhes os rostos.
Falhei, resmungou Clarisse em pensamentos, derrotada.
A mulher já havia se retirado do recinto, mas ela ainda sentia uma presença e um arrepio correu sua espinha dorsal. Ela mordeu o lábio inferior até senti-lo dormente, ou era loucura de sua cabeça por estar atormentada com o fato de permanecer no mesmo local com esse homem durante meros segundos.
A aglomeração que se fazia antes no saguão não persistiu, se desfez aos poucos e, se havia, no máximo, quatro pessoa ali era muito.
A mulata não desfrutava do horário exato, talvez 05:00am, ou mais tarde. As pessoas costumavam festejar muito lá, por isso tinham sumido, decerto se enfurnado num bar mais alvoraçado, numa balada, num quarto, e outras várias opções melhores. Não que o Villas Hill fosse ruim, era maravilhoso – com direito a tudo. Mas anda parado ultimamente, já que é terça-feira e Julie, organizadora de alguns eventos, vinha apenas amanhã.
Sentiu um movimento ao seu lado, no banco mais próximo. Era ele, o homem, que pediu algo ao barman que ela não pôde ouvir. Sem demora um copo de tamanho médio e com um líquido amarelo à enchê-lo foi posto na vista dela. Parecia ser um coquetel, por ser a bebida típica e mais querida do lugar, justamente com as frutas adereçando a borda do copo que denunciava. Ela encarou o remetente ao seu lado, rindo nasalado para não revelar seu desconforto com a situação e não vislumbar a mal-educação com que gostaria de recebê-lo efetivamente.
— Eu não bebo, obrigada — pronunciou as palavras com certo cuidado.
— Não vai negar um presente de uma cavalheiro, vai? Não irá lhe fazer mal — insistiu, dando um pequeno empurrão na bebida em direção à Clarisse.
— Olhe só, eu realmente não quero. Não insista, por favor — ela manteve o contato rígido de sua voz com seu olhar, para deixar claro que não precisava de brincadeirinhas no momento.
— Tudo bem, não sabe o que está perdendo — disse, levando o canudo a boca e ingerindo boa parte do licor.
— Certo...
— Mas — seu tom tornou-se sério e sombrio quando o mesmo aconselhou a mais nova. — Mas eu sei o que você está perdendo. A sua vida.
Por um momento o pequeno universo de Clarisse desabou, sua respiração se tornou entrecortada e procurou desesperadamente por um porto seguro onde agarrar-se. Seus olhos, arregalados, esbarraram com os dele, azuis e amedrontadores. Se sentia horrorizada. O que se passava em sua cabeça? Ele queria matá-la?
— Como? — indagou, incrédula.
— Pare de brincar de detetive, Clarisse — intimou. — Porque o assassino não está brincando de matar pessoas.
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