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História Vontade - Capitulo Único


Escrita por: NicholasVernett

Capítulo 1 - Capitulo Único


A maldade é resplandecente. O que mais brilha sempre é a escuridão. E a melancolia das nossas vidas é proveniente desta afirmação. Enquanto caminhamos rumo ao fim do labirinto que é a nossa vida, nos distraímos ao admirar a beleza de uma desgraça, e a volúpia de um egoísmo.
Apenas duas coisas guiam nossas ações, a vontade e o desejo. A vontade é a coragem, e o desejo é a fraqueza.

Então durante o percurso da vida, a vontade é o semblante da maldade. Render-se aos desejos é um capricho a que todos nos damos, e usamos como desculpa as nossas próprias naturezas.

Nunca me rendi perante a vida cotidiana e suas fatalidades. Minha mente sempre foi criativa e meu pensamento sempre foi rápido. E sempre acreditei que a mente tem poder de criar tudo aquilo que precisamos para sermos felizes.

Porém me rendi perante a vontade de dar um significado a tudo, e a agir apenas de acordo com meus próprios caprichos.

Um destes caprichos foi o que me levou a adquirir a fazenda e todo o terreno que se estendia ao redor dela, desta forma adquiri também o pântano e todas as formas de vida que nele habitavam.

O estranho nesta forma de pensar, é que quando nos rendemos a um capricho nosso, somos egoístas por ignorar totalmente a opinião daqueles que nos cercam. E quando colocamos o capricho dos outros acima dos nossos, então cedemos a fraqueza.

Sempre defendi então, que a única razão pela qual se vale ceder a fraqueza de nos render ao capricho de outro, é o amor. E por consequência isto é apenas mais uma forma de egoísmo.

Mas a minha vida sempre foi baseada nestas complexas dualidades, e delas jamais pude fugir. Adquiri a fazenda ignorando os caprichos daquela que estava comigo há anos e anos, de forma fiel e amorosa. E me sinto culpado por sempre ter usado desta lealdade de forma abusiva, me culpo também pelo intelecto elevado de minha parte, que sempre me permitiu saber como as outras pessoas reagiriam perante minhas ações, e a conhecer suas fraquezas para utilizá-las a meu favor.

Nunca me culpei pela minha imoralidade com os outros, mas com ela eu não devia ser assim. E por saber que não devia sê-lo, eu pelo menos devia ter conseguido vencer esta vontade. A vontade que sempre me fazia feri-la. A vontade de sempre estar certo.

Ah, a amada estava comigo havia tanto tempo. A lealdade que tínhamos um para com o outro era sem igual. A felicidade que nossa união trazia sobre nós podia suplantar a tristeza nascida deste mesmo sentimento. Todas as minhas conquistas pude com ela compartilhar. Todas as minhas lágrimas ela pôde secar. E em meus piores devaneios, ela me trouxe de volta a lucidez. Das mais amargas tristezas ela tirou razões para sorrir para mim, e com este sorriso sempre honesto e reluzente, ela conseguia sempre me fazer sorrir também.

Mas quando nos mudamos para a fazenda, que era observada pelo obscuro pântano, este sorriso lhe broxou. Nas salas empoeiradas e espaçosas ela não pôde encontrar inspiração para continuar a viver de forma plena. No grande vazio que possuíamos apenas para nós ela não conseguia encontrar sossego.

Reclamava volta e meia há respeito da ausência de sons que lhe lembrassem que estava viva. Sentia falta das vozes humanas que nos cercavam na antiga moradia. Do barulho dos automóveis que jamais cessavam o constante movimento.

E eu sempre lhe dizia que devia se acostumar. Que aquele sentimento seria passageiro. Que ela apenas não estava acostumada com a paz.

Para não me decepcionar ela sorria, mas eu percebia o seu desespero. E eu em meu infindável egoísmo, continuava a crer na ideia de que ela se acostumaria com a vida afastada de tudo.

O sofrimento dela continuava a aumentar, mas eu me perdia no meu próprio contentamento. Escravo de minha própria vontade que sou, não conseguia compreender a sua súbita derrota perante a fraqueza do desejo. Ela queria sair dali e me pedia isto de forma indireta, mas eu sempre lhe ignorava. E fazia questão de mostrar-lhe o quanto eu estava satisfeito por ali estar, de forma que a faria sentir-se mal em me contestar.

Ah, que gênio malvado eu era. Que gênio malvado eu fui. Utilizando do desenvolvido intelecto como arma, como é costume de todos os humanos. A primeira coisa que se pensa em fazer quando se descobre uma superioridade, é usá-la para subjugar.

Mas em nenhum momento meu amor por ela poderia ser questionado. Eu a amava de todo o coração. Desde o momento em que a conheci surgiu uma espécie de devoção. A necessidade de ver o seu sorriso me era um vício, e sem saciá-lo eu jamais estava contente. Mas meu pior vício era a vontade de estar certo e a vontade de ser agradado. Mesmo que eu acreditasse na ideia de que somente se vale a pena render-se a uma fraqueza por aquele a quem amamos de todo o coração, não fui capaz de pô-lo em prática em toda a situação.

Sempre que me deitava para dormir na nossa grandiosa e confortável cama, a olhar para o teto, e com ela ao meu lado, abraçada a mim, eu a ouvia falar e falar sobre suas paranoias e pensamentos há respeito do lugar. Falava sobre como se sentia estranha e solitária ao caminhar perto do pântano fétido todas as manhas e perto do anoitecer, e de como esta vontade lhe possuía de forma estranha.

Falava sobre a impressão mórbida que tinha ao observar o casarão lá de longe, com suas colunas envelhecidas e cinzentas, e suas janelas que pareciam olhos que a seguiam em suas perambulações. Falava sobre a sensação de tristeza que nela se abatera no momento em que adentrou aqueles terrenos e falava sobre os momentos em que esta sensação se tornava insuportável, quando estava sentada à mesa da cozinha observando o pântano através da janela.

E eu lhe perguntava o porquê de continuar a observar o pântano se isto lhe fazia tão mal, e a esta pergunta ela não sabia responder.

Claro que eu deveria ter levado em consideração que minha amada era uma mulher sensitiva demais, devido a sua empatia. Da tristeza eu tirava inspiração para a minha criação, mas ao contrário de mim, ela não criava nada com este sentimento. Ela apenas absorvia e se fechava, e cabia a mim alegrá-la novamente.

E naquelas noites, eu me limitava a rir de suas ideias a cerca do lugar. Me limitava a rir enquanto ela descrevia, rapidamente como falava, a propriedade inteira em seus mínimos detalhes, que ela havia guardado na memória melhor do que eu mesmo. Ela descrevia o contexto diabólico e mórbido presente em cada cômodo daquele lugar, e dizia que não conseguiria jamais se sentir bem ali.

Eu rebatia suas ideias com bom humor, pois sempre receava feri-la, mas sentia dentro de mim uma leve e crescente inquietação. Uma luta entre coragem e fraqueza, há respeito de ceder perante a vontade dela sem ao menos concordar com suas razões.

Ela me dizia sempre que não havia necessidade alguma de duas pessoas viverem sozinhas em um lugar tão grande quanto aquele. E como sempre eu me limitava a sorrir para ela. Sem ao menos pensar que isto a deixava cada vez mais desesperada. Cada vez mais desamparada.

E deitado ali, sentindo seu cheiro leve, porém distinto, eu me pegava lembrando da época em que a havia conhecido, tantos e tantos anos antes. Quando a sensação de estar perdido em criações ainda me era nova, quando eu ainda não compreendia que caminhar pelo mundo ignorando tudo ao redor era perigoso para a minha imagem perante as outras pessoas. Assim eu caminhava, criando meus próprios mundos onde a realidade era apenas um sonho para qual eu era arrastado por uma fraqueza presente sempre na humanidade.

E quando me lembro daqueles tempos, um sorriso sempre me sobe a face. Um sentimento nostálgico delicioso incorpora meu corpo de maneira jubilosa. Pois nessas lembranças infestadas de belas e distintas imagens, a mais reluzente é a minha amada, na época apenas uma menina graciosa e sorridente, com cabelos cor de chocolate e rosto de porcelana.

E me lembro da sua caridade de criança, sua benevolência intuitiva que eu tinha coragem de chamar de fraqueza em determinados momentos, que ainda me surpreendiam e me faziam pensativo após todos aqueles anos.

O menino distraído que eu havia sido descia os degraus envernizados da escada da escola rapidamente, pensando em suas infindáveis histórias de criança, numa época onde ainda era coerente acreditar na existência de heróis, e não havia percebido que os meninos ao redor com suas maldades de criança haviam lhe aberto a mochila, e haviam lhe tomado o caderno e o resto dos materiais.

E tão bobo que era, que somente quando um colega avisou, eu resolvi checar o que havia acontecido. Percebi que a mochila estava mais leve, livre do peso do que havia sido roubado, e triste, fiquei desconsolado. Tão bobo que eu era, que nem ao menos conseguia pensar em tirar a mochila das costas para fechá-la, apenas pensava na surra certa que iria se abater sobre mim quando chegasse em casa.
E quando eu ainda lutava contra as lágrimas, eis que surgiu esta menina delicada e me ajudou com o fecho da mochila. Tudo isto com aquele luminoso sorriso aos lábios rosados. E após isto, perguntou-me se eu estava bem. Quis saber o que havia acontecido, e eu lhe contei.

Foi assim que a amizade entre nós se iniciou. De um gesto simples, uma caridade livre de qualquer tipo de egoísmo, diferente da caridade daqueles que já são conscientes e que esperam por redenção, surgiu um grande amor.

Daquele em dia em diante não nos separamos jamais. Nos compreendíamos tão bem que eramos como um só. Com ela ao meu lado era mais fácil lidar com qualquer problema, e com seu apoio eu podia conseguir qualquer coisa.

Foi desta forma que avancei na minha vida, construindo tudo com o intuito de ficar com ela. E em nenhum momento daqueles longos anos que se passaram nós havíamos conseguido ficar longe um do outro.

E por esta razão estávamos juntos ali naquela fazenda. Por esta razão eu a tinha nos braços e podia sentir o perfume e respiração leves enquanto ela se abria para mim, com a esperança de que eu pudesse compreendê-la.

E aconteceu que em certa manha, quando acordei, tive vontade de lhe contar um pesadelo que eu havia tido durante toda a nossa vida juntos. Ela atenta, como sempre, me ouviu. Me ouviu descrever de forma mórbida todo o silêncio ensurdecedor que caía sobre mim no momento em que ela me abandonava.

E de fato no sonho era assim que acontecia. De uma forma ou de outra ela me abandonava. Se me trocava por outro lugar nesta terra, ou por outro mundo qualquer que fosse, lá para os reinos depois da morte, era apenas um capricho decidido pelo meu inconsciente.

Eu apenas sei que sofria de forma terrível, e por mais que fosse amedrontador enfrentar o final destes sonhos em alguns dos casos, eu sempre me entregava, com a esperança de acordar de volta em minha vida e tê-la dormindo ao meu lado.

Quando lhe contei ela chorou, pois sua apurada empatia e imaginação haviam feito com que ela imaginasse quão desesperadora era tal situação. Me garantiu que era apenas um medo bobo do meu inconsciente e que eu nada precisava temer. Um sorriso lhe surgiu e eu não pude evitar lhe devolvê-lo.

Mas o sonho se repetia de forma preocupante. E minha mente trabalhava para me dar uma explicação.

As reclamações dela há respeito da fazenda já começavam a me preocupar, eu percebia o mal que isto estava fazendo a ela. Mas eu acabava me esquecendo de me preocupar com seus sentimentos e ficava me apegando a ideia de que ela poderia me abandonar pelo fato de eu tê-la desagradado.

Sim, este era o problema. Eu achava que era apenas um desagrado.

E cada vez que ela me falava algo há respeito, eu ficava facilmente irritado. Começava a acreditar que talvez tudo fosse apenas uma desculpa. Que ela não estava satisfeita com nosso casamento e que colocava a culpa, como faziam todos aqueles que não eram corajosos, em outras coisas.

Caminhava obstinado pelo longo terreno, com a casa sempre a me observar ao longe, e com o cheiro forte que vinha do pântano a me fazer companhia. Nos dias cinzentos eu me pegava pensando nas palavras que ela em sua paranoia pronunciava, mas eu costumava me apegar a coisas mais triviais, como no orgulho pela minha posse.

Eu amava ser o dono daquela enorme propriedade. Era o sentimento da conquista que caía sobre mim, embora eu desprezasse tal sentimento. Eu nem ao menos me apercebia de possuí-lo.

Ah, como eu era egoísta. Eu pregava que o egoísmo era o que nos impedia de sucumbir perante as fraquezas, mas me esquecia que o amor era a maior de todas elas. A minha amada se tornava cada vez mais infeliz, cada vez mais solitária, e depois de perceber que eu a ignorava, ou que ficava com raiva, ela falava bem menos do que no início.

Nossas noites, outrora cheias de conversas, eram agora silenciosas, o que, creio eu, a tornava ainda mais infeliz. Ela gostava de se sentir viva. O silêncio era ensurdecedor para ela, e eu fazia questão de mantê-lo.

Será que eu que não acreditava em maldade poderia acreditar que o que eu estava fazendo era o mal? Que em meu constante egoísmo eu estava dando forças a todos aqueles sonhos amedrontadores que eu possuía?

O diabo não passa de uma vítima em nossas mãos. Alguém que leva a culpa pelos nossos erros. Ele é apenas um contexto. Uma representação de tudo aquilo que é odioso. Um jarro cheio dos pecados de todos aqueles que por esta terra já passaram. E o maior pecado de todos é se dar a ele por livre e espontânea vontade.

Foi isto que fiz, quando cedi a minha vontade de ficar na fazenda. Cometi o pecado de machucar a minha amada, de fazê-la sentir-se sozinha. E em todo o momento, pensava estar fazendo o certo. Meu intelecto continuava a me dizer que em breve ela iria se acostumar e que tudo voltaria a ser como antes.

Eu achava que precisava do silêncio que aquele lugar me trazia. O barulho sempre foi o meu inimigo durante toda a vida. Aquele lugar simplesmente me era contextual e mórbido. Triste de se olhar, de certa forma, e por esta razão me era inspirador.

Assim como Deus usa de só frimento como matéria-prima, eu o faço também.

Certa vez, era o fim do entardecer, e eu sozinho jantava. As luzes de toda a casa estavam apagadas, exceto a da cozinha onde eu estava. Como sempre, estava perdido em pensamentos, e tudo o que havia a minha volta, um grande nada, eu ignorava. Somente em um lugar assim eu poderia encontrar tamanho sossego. Mas de repente, minha amada entrou pela porta de maneira violenta, e vi em seus olhos grandes e castanhos, um medo terrível estampado.

Estava ofegante e suava, e quando ela se abraçou a mim, vi que seu coração palpitava. E o que ela me deu como explicação, foi que havia algo de muito errado naquele pântano por onde ela sempre passeava.

Naquela noite a sensação de estar sendo observada havia piorado. Ela dizia realmente ter visto alguém em meio a aquelas árvores e água lamacenta. Eu fiquei logo preocupado e contra a vontade dela, eu fui averiguar.

As árvores soterradas em lama, o pântano soterrado em trevas. O barulho dos grilos e dos sapos era ensurdecedor, mas ao mesmo tempo me trazia certa calmaria. Calmaria esta que me deixava temeroso. A lanterna que eu segurava, eu tinha medo de ligar. Não queria que nada do que estivesse ali se apercebesse da minha presença. Mas quando eu parava para pensar, me perguntava se de fato eu acreditava no que estava fazendo. Quem poderia estar em meio ao pântano?

De longe eu podia ver a casa. Aquela que eu amava havia acendido todas as luzes, e era a única coisa que brilhava em meio a tamanha escuridão. Nunca havia me passado pela cabeça que aquele lugar era tão mórbido assim. Tão dessolado. E quando tomei consciência de que eramos os únicos dois habitantes em muitos quilômetros, senti um certo pavor.

De repente ficar perto do pântano se tornou repugnante, e logo voltei para dentro da casa. Lá, a minha amada reclamava, dizendo que algo estava muito errado com aquele lugar. Que ela havia visto de fato alguém se movendo naquelas águas.

Eu disse que nada havia visto, e que tal coisa era impossível. Ela disse não me reconhecer, e eu quase lhe respondi que nem mesmo eu me reconhecia. Nada era impossível para mim, mas a simples ideia de concordar com ela me parecia absurda. Se havia um vilão naquele espetáculo, este era eu.

Ela perguntou se não podíamos mesmo voltar para a nossa antiga casa, onde eu possuía tantos amigos e havíamos passado tão bons momentos. Foi a primeira vez que discutimos, e derramei sobre ela, todas as minhas mágoas. Me rendi a fraqueza do desejo, o desejo de culpar alguém por tudo de ruim que acontecia na minha vida. É com estes passos vacilantes que avançamos na dança que é a vida. É no momento em que ficamos cegos por causa de nossas próprias lágrimas ardentes, é que ferimos sem querer aqueles que amamos.

Eu nunca havia visto ela chorar daquele jeito. Meu coração se partiu em pedaços ao presenciar tal cena, e o que mais me doía era ter a certeza de ser o causador de tamanho sofrimento.

Mas a vontade de ser orgulhoso se abateu sobre mim, e mais uma vez ignorei a minha própria filosofia de que devemos abdicar de tais conceitos se for necessário para deixarmos felizes aqueles a quem amamos. Eu a deixei ir chorando para a cama, e fiquei pela varanda a observar a vastidão escura daquele lugar, tomando consciência da existência dos meus próprios demônios.

Ah, como eu lhe machuquei! Em meio a madrugada, eu ainda podia ouvir seu choro que jamais cessava. Ela não conseguia ser como eu, nunca havia conseguido. Seu desejo era maior do que a vontade. Ela não conseguia segurar as lágrimas e nem conter a própria dor. A tristeza estava impregnada em sua alma e eu era o único que podia aliviá-la.

Mas algo em meu consciente me fazia crer que estava certo em minhas ações. Eu não conseguia me submeter a ela ainda. Acreditei que talvez ela devesse sofrer mais um pouco, embora soubesse, pelo amor que sentia, que eu iria ceder ao pedido dela de ir embora dali.

Fui para a poltrona da sala e ali me sentei, confortável, perdido em meus próprios pensamentos. Os ferimentos da discussão já cicatrizados, e com força renovada, pensava nas palavras que usaria com ela no dia seguinte. Mesmo sabendo que ela sofria agora, me peguei prestando atenção nas tapeçarias que decoravam o ambiente. Tudo havia sido escolhido por mim, pois ela nunca havia conseguido encontrar inspiração naquele lugar.

Ali, em meio a fazenda, eramos como habitantes de uma cidade fantasma. Nossas vozes ecoavam até os limites da imaginação, e além de silêncio existiam apenas aqueles barulhos constantes que amedrontam.

Caí no sono, com frio, sentado a poltrona, e meu inconsciente me presenteou com mais um pesadelo desagradável, onde tive a oportunidade de sentir novamente a sensação de perdê-la, sem chance alguma de recuperá-la, e no fim me entreguei ao fim eminente da existência, como um covarde que nada mais deseja além da própria morte. E naquele momento de tensão, acordei, lembrando das palavras dela a cerca da fazenda. Me questionando como eu havia adquirido o lugar por um preço tão baixo, dizendo que certamente a terra devia estar morta ou amaldiçoada, ou qualquer coisa do tipo.


Fiquei sentado na poltrona, e não estava perto do amanhecer, pois lá fora, nenhum pássaro cantava. Existia apenas o silêncio dessolado, e a altura retumbante do meu coração. Quando me coloquei em pé, senti uma saudade avassaladora dela, do meu amor. Um desejo de tê-la nos braços de novo, de sentir o cheiro suave, e ver o resplandecente sorriso, e por fim, preenchê-lo com um beijo.

Comecei a caminhar em direção ao quarto, me rendendo ao desejo de amá-la, pois não é possível amar alguém apenas com a vontade. E antes de abrir a porta, ouvi um barulho estranho lá fora. Eram passos. Eu certamente estava ouvindo passos.

Logo me assustei, e fiquei pensando no que ela havia visto no pântano. Se de fato havia alguém, certamente estava andando ao redor da casa. Senti uma vergonha tão grande de mim mesmo por ter duvidado dela. E senti também grande necessidade de protegê-la.

Mas quando abri a porta do quarto e fui em direção a cama, percebi que ela não estava ali, e que a única coisa que restava era o seu cheiro. Uma mão invisível apertou meu coração, e gritei de profundo horror, sem nem ao menos saber porque gritava.

Saí correndo da casa, com a maior velocidade que pude, e cheguei lá fora, mas não havia lembrado de trazer a lanterna. O nosso carro ainda estava lá, mas não me demorei nestes tipos de pensamentos. Eu apenas desejava encontrá-la.

Nestes momentos em que abandonamos a razão em prol de um desespero, sempre nos tornamos mais sensitivos aos acontecimentos antes ignorados pelo nosso raciocínio lógico. Como se puxado por um magnetismo, olhei para o pântano, e em sua direção comecei a correr. Quanto mais me aproximava, mais era dominado por aquele silêncio que era decorado pelo canto dos grilos e pelos sons das espécies de vida que habitavam aquelas águas sujas.

A escuridão também me sufocava. E quando percebi a silhueta dela lá, distante, vestida com a camisola branca, eu parei de correr. Ela apenas estava observando o pântano, isto era o que o raciocínio dizia, mas o coração, aquele que sempre fala mais alto em momentos de tensão, sentiu aquele aperto novamente. Gritei pelo nome dela, gritei pelo meu amor. Mas ela não me olhou, e percebi que estava se movendo, e quanto mais se movia, mais baixa se tornava.

Não pude acreditar no que ela estava fazendo! Gritei desesperado enquanto corria, e o meu desejo queria vencer até mesmo as leis da física que me prendiam ao chão. Eu apenas conseguia me lembrar do sorriso dela, e do delicado toque de sua mão.

Quando cheguei era tarde demais. Ela não estava mais lá. Mas eu ainda podia sentir o seu cheiro.

Chorando como uma criança, eu me atirei ao pântano, gritando por ela, sentindo a água fétida entrar na minha boca. Sentindo os pés ficarem presos em meio a lama. Eu não podia morrer, pois tinha de procurar por ela. Se eu morresse, quem poderia salvá-la?

Mas tudo foi em vão. Nunca pude encontrar o corpo dela em meio aquelas águas. E quando tive consciência de que ela não voltaria mais, apenas quis me deixar afundar, me deixar morrer, como deixamos acontecer em um pesadelo quando atingimos o limite do que podemos suportar.

O que posso dizer, é que diferente das outras vezes, eu não acordei, depois de me render a tragédia e ao monstro. O pior de todos os pesadelos é aquele que é real. E sem ter certeza de que aquilo era um sonho, não pude acordar dele de forma nenhuma.

Procurei o meu amor por toda a propriedade, acreditando na possibilidade de uma ilusão, mas nenhum sinal jamais foi encontrado. O pântano também jamais me a devolveu.

Esperar pela volta dela se tornou uma necessidade na minha vida. Eu sabia que ela nunca teria ido embora dali sem mim, pois ela não podia. Vivíamos um para o outro, desde que a encontrei pela primeira vez. E desde que vi seu sorriso, não acreditei que pudesse viver um dia sequer sem ele.

Mas ainda estou aqui, um homem cruel e solitário, embora nunca sozinho, esperando que ela volte, e me apego a memória todos os dias para me lembrar de tudo que ela representava. Seu cheiro nunca abandona o nosso quarto, nem aquele lugar no pântano onde ela desapareceu, embora somente eu consiga senti-lo.

Alguns amigos até comentaram que engoli muita água quando caí la dentro, mas eles nunca souberam de nada mesmo. Também não acreditam em mim, quando digo que todas as noites, quando estou sentado na poltrona observando as tapeçarias, consigo ouvir a voz dela lá fora, em meio ao canto dos grilos. Acho que agora ela faz parte do pântano. Mas sei que um dia ela vai se render ao desejo e vai voltar para mim. O que mais brilha em nossa vida é sempre a escuridão. Eu sei que ela existe. A minha vontade a faz existir para mim.



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