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História Walking Men - These boots are made for walking


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


These boots are made for walkin' - Loretta Lynn

Capítulo 3 - These boots are made for walking


Outono de 1958 – Nashville, Tennessee

 

Verdade seja dita. Kenny McCormick era o tipo de rapaz que conseguia se dar bem com todo tipo de ser humano, desde o rabugento senhorzinho que trabalhava no correio até a madame, esposa do fazendeiro para o qual ele trabalhava. O maior princípio disso, além de Kenny ter simpatia o bastante para vender areia no deserto, era o fato de que ele tinha humildade o bastante para não fazer prejulgamentos antes de conhecer alguém mais a fundo. Mas ainda que Kenny fosse despido de todo tipo de preconceito, ainda assim, ele nunca teria imaginado, ao conhecer Kyle Broflovski pela primeira vez, que seriam amigos. Não por desgostar dele, não particularmente. Não mesmo. Apenas não conseguiria enxergar que tipo de coisa eles poderiam ter em comum, além do fato de que Kyle não parecia gostar dele. Demorou um pouco para que Kenny entender que esse apenas era o jeito que Kyle falava com todo mundo com quem não tinha intimidade.

As duas últimas semanas do verão passaram voando. Depois daquele segundo encontro no bar, Kenny sugeriu – despretensiosamente, sem esperar muito em troca – que eles três começassem a tocar juntos de vez em quando. Não achou que Kyle realmente fosse aceitar o convite quando Stan disse: “Por que não vai lá em casa domingo? Nós compramos umas cervejas, Kenny leva os instrumentos… Você pode trazer seu violino”. Não interrompeu quando Stan, já embriagado feito um gambá e parecendo um avantajado menino de doze anos, explicou que morava na rua da sapataria do velho O’Connell, em uma casa amarela. Ele disse “casa amarela” pelo menos três vezes, enquanto Annie sorria e acariciava sua mão com o polegar em seu tom delicado de dizer que estava na hora de ir embora. Mesmo assim, Stan pareceu tão surpreso quanto Kenny no momento em que Kyle, de fato, apareceu do outro lado da pequena cerca branca, carregando o violino em uma capa, parecendo quase tímido.

Desde aquele dia, o verão seguiu com uma espécie de ritual que nenhum dos três precisou verbalizar; aos finais de semana, nas ensolaradas tardes de sábado e domingo, encontravam-se na casa de Stan com seus respectivos instrumentos e vozes, bebiam mais do que era adequado, passavam a tarde inteira sentados na varanda da casa até o pôr do sol, quando os mosquitos começavam a picar. Assistiam às árvores perdendo cor e vitalidade, as folhas se preparando para cair quando as plantas adormecessem com a chegada do outono, mas as temperaturas ainda eram altas.

Quando os finais de semana começaram a parecer insuficientes, encontravam-se também nos finais de tarde em alguns dias de semana. A mãe de Stan, Sharon, era uma mulher gentil e silenciosa. Ela tinha cabelos muito curtos e olhos muito grandes, não era de oferecer sorrisos gratuitos, mas sempre trazia pratos de biscoitos ou limonadas, fazendo comentários de desaprovação sobre a quantidade de álcool ingerido. Tratava Kenny com um carinho maternal, apesar de ser bastante reservada. Ela se parecia muito com Stan, Kyle percebeu. Usava suas bermudas de cintura alta e camisas estampadas sem manga naquele calor forte. Muitas vezes, passava o dia fazendo jardinagem com lenços na cabeça enquanto ouvia os meninos cantando. Foi, provavelmente, a primeira fã deles. Isto é, se Annie não contasse.

Houve uma tarde específica em que as coisas começaram a mudar um pouco para Kenny McCormick. Era um domingo muito quente, não havia nenhuma nuvem no céu que bloqueasse o sol escaldante, mas eles estavam confortáveis à sombra da varanda. Era uma casa rústica, mas confortável. A varanda era decorada com plantas que Sharon cultivava com amor. Havia um banco e duas cadeiras de balança, pintados à mão de tinta branca por Stan e seu pai. Stan e Kyle estavam sentados no banco, com algum espaço entre eles, enquanto Kenny balançava na cadeira e brincava com a gaita. Kyle tinha os dois pés descalços sobre a mesinha de centro – também branca – onde descansavam três copos, duas latas de cerveja, um prato com migalhas, um cinzeiro cheio e um maço de cigarros. O violino de Kyle estava apoiado contra o banco e a vara estava, também, sobre a mesa. Ele usava uma bermuda de um tom branco quase bege que ia até o meio das coxas, tinha os joelhos levemente dobrados, as pernas expostas. Os pelos da sua perna eram muito mais claros do que os seus cabelos. A camisa era de tecido fino, mangas curtas e os primeiros botões abertos, a gola tão bem alinhada, o tecido listrado em azul claro e branco. Ele segurava o violão de Stan, coisa que raramente fazia, porque Kyle não gostava de fazer nada que não dominasse com perfeição. Naquele dia, estava levemente bêbado e relaxado o bastante para tentar tocar, depois de uma discussão intensa com Kenny sobre as botas que se usavam no Texas. Kyle era muito sensível com relação à sua terra natal, o que Kenny achava infinitamente divertido.

Kenny e Stan trocaram um olhar breve enquanto tentavam identificar a melodia, e ambos soltaram uma gargalhada quando conseguiram. Kenny não fazia ideia de que Kyle Broflovski era capaz de ter senso de humor.

 

You keep a sayin' you got something for me

Something you call love but confess, yes
You've been a messin' where you shouldn't been a messin'
And now someone else is a gettin' all your best
These boots are made for walkin' and that's just what they'll do
One of these days these boots are gonna walk all over you

 

O sotaque de Kyle era, oficialmente, uma das coisas preferidas de Kenny em todo o mundo. Aquele garoto tinha uma voz que ele poderia escutar o dia inteiro e jamais ficaria enjoado, mas naquela tarde especificamente, Kyle não estava preocupado com o domínio vocal e a técnica. Estava se divertindo. Havia uma certa rouquidão presente, talvez pela posição em que ele cantava, com as costas tortas e o corpo jogado no banco, as pernas apoiadas na mesa. Mas não era só a voz que tornava difícil tirar os olhos dele. Kenny acendeu um cigarro enquanto ele cantava, olhando de relance para o sorriso embriagado de Stan, que balançava a cabeça no ritmo da música e gargalhava pela maneira com que Kyle interpretava as palavras. Kenny se pegava sorrindo feito um idiota.

 

You keep lyin' when you ought to be true, then
And you keep loosin' when you ought enough bad
You keep a samin' when you oughta be a changin'
The what's right is right and you ain't been right yet
These boots are made for walkin' and that's just what they'll do
One of these days these boots are gonna walk all over you

 

Ao cantar as últimas palavras, a voz de Kyle vacilou pela risada que ele não conseguiu conter, jogando a cabeça para trás, errando algumas notas no violão, mas isso não o impediu de continuar. Ele franzia o nariz quando ria, deixando aquelas sardas muito suaves em sua pele um pouco mais evidentes, fazendo contato visual com Kenny como se falasse diretamente com ele. Isso fez com que o loiro erguesse a cabeça, falsamente desconfiado, entrando no jogo dele. Brincava com o cigarro aceso entre os lábios, largando o isqueiro sobre a mesinha. Stan ergueu o braço para pegar a gaita que estava equilibrada na coxa de Kenny e começou a acompanhar Kyle com ela, com certa dificuldade até encontrar o ritmo certo.

Durante alguns segundos, Kenny apenas segurou o cigarro entre o indicador e o dedo médio, bem próximo aos lábios, curvado para frente, sentado na beirada da cadeira de balanço. Havia um brilho curioso em seus olhos enquanto ele observava a cena, estreitando as pálpebras ao dar mais uma tragada no cigarro, segurando um contato visual com Kyle que causou uma coisa peculiar em seu corpo. Entre as pernas, se ele precisasse especificar. Enquanto soprava a fumaça, virando o rosto um pouco de lado, os cantos dos lábios de Kenny ameaçaram se erguer, mas seus olhos continuavam a estudá-lo como se precisassem entender alguma coisa. Ele sentia calor. E sim, é justo, em um dia de verão como aquele, mas era um calor diferente, que nascia de dentro pra fora. Kenny se remexeu um pouco na cadeira que balançava suavemente com qualquer movimento, apoiando um cotovelo no braço da cadeira e pigarreando, tentando não pensar muito sobre aquilo. Mas seus olhos passeavam pelo corpo do outro distraidamente, enquanto a música enchia seus ouvidos.

Primeiro, Kenny observou o colo dele, as clavículas que apareciam pelos botões abertos de sua camisa, mas não completamente. Havia uma fina camada de suor cobrindo sua pele clara. Kenny franziu um pouco as sobrancelhas e ergueu de leve o queixo, observando aqueles braços que nunca haviam levantado peso na vida, mas ainda apresentavam certa força e abraçavam o violão, os dedos longos – perfeitos para tocar piano, é verdade – trabalhando pelas cordas do vilão, as unhas limpas e bem feitas. Depois, vieram as pernas. Kenny não conseguiu encará-las durante muito tempo devido à sensação estranha em sua barriga, em seus músculos. Deu mais uma tragada no cigarro e voltou sua atenção ao rosto de Kyle.

 

You keep a playin' where you shouldn't be playin'
And you keep a thinkin' that you'll never get burned
I've just found me a brand new box of matches yeah
And what he knows you ain't that time to learn
These boots are made for walkin' and that's just what they'll do
One of these days these boots are gonna walk all over you
Come on boots, let's walk all over

 

Talvez olhar para aquele rosto fosse pior do que olhar para aquelas pernas. Porque havia uma malícia quase inocente pincelando aquela expressão, a forma como ele deixava os lábios entreabertos e levantava a cabeça em certo ângulo que expunha o pescoço daquela maneira, como se ele não soubesse que era observado, mas seu corpo sim. O coração de Kenny pulsava num ritmo diferente diante daquela visão, mas ele não sabia explicar exatamente o motivo. Não era como se nunca tivesse sentido essas coisas antes. Quando era um garoto de catorze anos trabalhando em fazendas junto com outros jovens, fazendo trabalho pesado sem camisa o dia inteiro sob o sol forte, Kenny já sentia esse tipo de coisa. Sabia que gostava de olhar as formas, os músculos, a pele suada, o abdômen, os braços, sabia que gostava de coisas que não deveria gostar. Mas também gostava das coisas que deveria gostar, dos batons vermelhos na boca das mulheres, dos seios escondidos dentro das blusas finas, de quadris largos e cinturas boas de colocar as mãos, gostava muito disso também. Então, era fácil ignorar, pelo menos na maior parte do tempo. Guardava consigo mesmo as experiências atrás do celeiro do velho Cartter naquele verão que cuidou dos cavalos dele junto com um outro jovem cujo nome Kenny nem se lembrava, mas não era como se a coisa tivesse se estendido muito. Era uma curiosidade. Kenny nunca pensou muito sobre isso.

Porque nunca foi assim. Nunca havia sentido essas… Curiosidades sobre alguém de quem gostasse realmente, com quem passasse bastante tempo porque queria passar. Não foi algo particularmente forte, foi apenas uma pequena nuance de vontade que começou a se arrastar e encontrar o caminho para dentro da pele de Kenny. De imediato, seu cérebro espantou a ideia. “Não, esse garoto não”.

Quando Kyle terminou a música, Kenny prendeu o cigarro entre os lábios novamente para bater palmas, rindo com dificuldade, e seu sorriso só aumentou quando Kyle devolveu o violão para Stan e disse:

-Vai tomar no seu cu. - Mas o sorriso largo que Kyle tinha no rosto não permitia que as palavras fossem minimamente ameaçadoras.

-Por quê?! Eu adoro as suas botas. - Kenny respondeu com toda a sinceridade do mundo. - Vocês texanos têm um temperamento, viu.

A mudança sutil após aquele dia não passou despercebida por Stan. Como Kenny às vezes parecia nervoso, como as risadas dele durava alguns segundos a mais do que deveriam quando Kyle dizia alguma coisa engraçada, como suas mãos suavam e, em especial, como Kenny dizia coisas que propositalmente irritariam Kyle, mas à sua maneira charmosa, provocadora. Stan tomou a coisa toda como um sinal de intimidade e nada mais.

 

Então, finalmente veio o outono. Pouco a pouco, as roupas curtas davam lugar a mangas e calças compridas, toda a paisagem era pintada de tons alaranjados terrosos das folhas caindo, as árvores ficando nuas, o Halloween se aproximando. Eram duas e meia da tarde de um sábado, havia algumas nuvens no céu bloqueando a passagem do sol, mas o que se podia enxergar entre as nuvens era extremamente azul e iluminado. Já começava a esfriar. Kyle olhava pela janela do carro estacionado em frente à familiar casa da família Marsh. Dentro do carro, havia um leve aroma de eucalipto misturado com o cheiro da colônia na pele do homem loiro sentado ao volante, para o qual Kyle não queria olhar. Sabia que aqueles olhos azuis o observavam, o resto de sua expressão relaxada, porque Gregory sempre lidava com as coisas com calma demais para o gosto dele. O rádio estava ligado, a voz de Elvis Presley preenchendo todo o espaço do carro. Kyle abaixou a janela, sentindo-se sufocado, deixando que a brisa gelada lá de fora soprasse em seu rosto.

-Você vai mesmo fazer isso? - Gregory perguntou, esticando o braço para apoiá-lo por trás do encosto do banco de Kyle, que finalmente virou o rosto para ele.

Gregory era um desses homens bonitos, bonitos de verdade, mas isso não se devia apenas ao seu rosto. Era tudo. As maneiras impecáveis dele, o jeito que ele tinha com as palavras, as roupas caras, a maneira que ele arrumava o cabelo e o fazia se parecer ainda mais com James Dean em East of Eden, Kyle sempre dizia isso a ele. E Gregory apenas ria, porque se achava tão único, tão especial. E era mesmo. Quando ele apareceu na porta da universidade na saída da aula de Kyle sexta-feira, com a expressão cansada de quem havia viajado metade de um dia apenas para vê-lo, mas nenhum fio de cabelo fora do lugar, Kyle quase se esqueceu de que estava com raiva. Foi uma surpresa, também. Quase havia se esquecido do quanto sentia falta dele até vê-lo tão bonito daquele jeito, apoiado no carro com os braços cruzados, a camisa de manga comprida tão bem passada que abraçava seu tronco e seus músculos de forma quase obscena, o chapéu, o colarinho, as abotoaduras, tudo isso era nostálgico. Talvez a saudade de Gregory se confundisse também com a sua saudade de Houston.

Passaram a sexta à noite trepando no quarto de hotel desnecessariamente caro que Gregory havia escolhido. Porque era disso que eles precisavam na noite anterior. Kyle não queria brigar, não queria falar nada que não fosse obsceno e imundo, só queria beijá-lo e se esquecer de que o resto do mundo existia. Mas agora, sentado no banco passageiro daquele Chevrolet Bel Air azul royal, ele se lembrava muito bem.

-Nós já estamos aqui, o que você quer que eu faça? - Kyle finalmente respondeu.

-Honestamente? Eu quero que você desmarque esse encontrinho e passe o dia inteiro comigo. - Gregory segurava o volante com as duas mãos enquanto falava. Kyle encarou o anel prateado em seu dedo indicador durante alguns segundos, a expressão fechada de tal forma que Gregory sabia muito bem o quão irritado ele estava. Aliviando o aperto em torno do volante, Gregory estendeu uma das mãos para tocar o rosto dele, mas Kyle recuou.

-Eu não vou desmarcar nada. A gente precisa ensaiar, eu vou começar a me apresentar com eles. Eu já te disse isso.

-E eu já disse que você pode muito bem ensaiar segunda-feira.

-Eu tenho aula segunda-feira. Meu Deus, Gregory, às vezes parece que você não escuta nada do que eu falo. - Com isso, Kyle abriu a porta do passageiro e colocou os pés para fora, sabendo que Gregory faria a mesma coisa antes que ele pudesse sair completamente do veículo. Bateu a porta com raiva, mas ainda assim, esperou que o loiro desse a volta em frente ao carro para se aproximar dele.

-Eu escuto tudo o que você fala. - Gregory tentou trazer as duas mãos ao rosto do ruivo, mas Kyle desviou instintivamente, franzindo as sobrancelhas para esboçar o quão incomodado estava. Deu dois passos para trás até que suas costas encontrassem com a superfície gelada do carro.

-A gente tá no meio da rua, o que você acha que tá fazendo?

-Não tem ninguém aqui. - Gregory disse rindo, mas abaixou as mãos mesmo assim, levando-as aos bolsos da jaqueta para indicar que não faria nada perigoso. Kyle detestava a expressão no rosto dele e o quão condescendente sua voz ficava toda vez que Kyle tinha alguma queixa. Era fato, porém, que Gregory tinha uma inteligência aguçada o suficiente para conter a própria expressão ao se dar conta de que não chegariam a lugar nenhum. - Ei. - Ele disse em uma voz mais gentil, enquanto Kyle levava as mãos ao quadril e encarava a extensão dos gramados nas casas da rua. - Eu sei que você tá frustrado. Eu sei que eu prometi que viria visitar mais. Mas eu vim, não vim? Eu tô aqui agora. Ainda dá tempo de dispensar os caipiras e vir comigo.

Os olhos de Kyle o encararam de imediato, de forma que Gregory levou uma mão à testa e balançou um pouco a cabeça. Conhecia Kyle bem o suficiente para antecipar uma reação e se arrependia de não ter pensado sobre isso antes das palavras deixarem sua boca.

-Eu gosto dos “caipiras”, Gregory. Os “caipiras” são meus amigos.

-Eu sei. Eu sei, eu não quis dizer… - O loiro erguia as mãos em defensiva, a pequena pedra do anel reluzindo no sol que brotava entre as nuvens.

-E quer saber? Eu entendo que você não queira vir pra esse fim de mundo cheio de caipiras, mas eu gosto daqui.

-Desde quando?!

-Desde que eu encontrei alguma coisa que me faz bem! É aqui que eu tô agora, Gregory, você não consegue nem ficar feliz por mim.

-Eu estou! Eu estou feliz por você, Kyle, eu não diminuí os seus amigos, eu só me expressei mal, tá bom? - Gregory começava a perder o controle da voz agora, o que sempre gerava uma satisfação que Kyle era incapaz de explicar. - A única coisa que eu quero é que você seja feliz onde quer que você esteja, que você faça algo que você ama, eu não deveria ter que te explicar isso. Mas eu… Eu sinto a sua falta. Eu sinto muito a sua falta, é tão ruim assim que eu queira passar tempo com você enquanto eu tô aqui?

Normalmente, depois de alguns anos de convivência e duas personalidades muito semelhantes, Gregory já sabia o que dizer para acalmá-lo e Kyle já sabia exatamente quando ele estava sussurrando qualquer coisa carinhosa apenas para que o ruivo se esquecesse do motivo da discussão. A mão de Gregory encontrou caminho até os cachos do outro, em uma carícia muito breve e cuidadosa, porque por mais que Gregory fizesse pouco da preocupação constante de Kyle sobre contato físico em público, ele não era imbecil. Não, não depois do que os dois passaram por um descuido idiota.

-Benzinho. - Gregory sussurrou, o que pareceu ativar alguma coisa dentro de Kyle. O ruivo o empurrou de leve, dando alguns passos para o lado para não se sentir mais encurralado contra o carro.

-Não fala comigo como você fala com os seus cavalos, porra.

Gregory riu. Porque era verdade. Era exatamente assim que ele falava com seus cavalos. Era mais carinhos com seu puro-sangue inglês preferido do que com qualquer ser humano, até mesmo sua irmãzinha de cinco anos, mas jamais conseguiria fazer Kyle entender que isso era algo lisonjeiro. Se dissesse isso naquele momento, Kyle ficaria furioso. A ideia, ainda assim, estampava um sorriso nos lábios de Gregory.

No fundo, Kyle sabia. Gregory era filho de um fazendeiro extremamente rico que criava cavalos e os vendia para corridas no Texas. Gregory começou a correr com dez anos. A única vez que Kyle o viu chorar em toda a sua vida foi quando sua égua morreu dando a luz a um potro que, atualmente, era o cavalo preferido de Gregory. Seu nome era Noir. Se Kyle era importante o bastante para que Gregory o chamasse da mesma formava que chamava aquele cavalo, era suficiente para que o ruivo se sentisse um pouco menos irritado.

Mesmo assim, ele não estava disposto a largar o osso ainda.

-Sabe de uma coisa? Eu não posso ficar mudando os meus compromissos toda vez que você decidir aparecer de surpresa. A minha vida não gira mais entorno de você.

-Eu estou começando a achar que você nem me queria aqui pra começo de conversa. - Gregory disse em uma voz extremamente calma que escondia rancor nas entrelinhas; Kyle conhecia muito bem a sua maneira de umedecer os lábios quando ficava puto, mas Gregory foi criado para ter bons modos. Eles tinham isso em comum.

-Eu te queria aqui nos primeiros meses, quando você prometeu que ia aparecer!

-Eu já pedi desculpas, Kyle. Você acha que eu não queria estar com você? Eu só fiquei ocupado demais.

-Ah, é. Eu sei com o que você ficou ocupado.

Com isso, Gregory abriu um sorriso quase cínico, deixando o ar escapar pelas narinas. Seus olhos tão azuis brilhavam mais quando ele ficava irritado. Fez uma pausa longa, quase incrédula, mas Kyle sabia que ele estava encobrindo a surpresa com uma falsa indignação.

-O que é isso agora? - Finalmente perguntou, indisposto a negar as coisas que Kyle realmente gostaria que ele negasse, mesmo que fosse mentira. Esse sempre fora um problema grave na relação dos dois, se é que se podia chamar aquilo de relação. O fato de que Gregory nunca soube mentir para ele. - Vai me dizer que você é celibatário? Que nunca teve nenhuma garota, que você passou esse tempo todo sozinho? Não confunde as coisas, Kyle.

Era particularmente difícil – e ainda mais frustrante – quando Gregory era racional, racional demais, aplicando lógica a todas as coisas ilógicas. Porque não havia argumento palpável, o desgraçado sempre foi extremamente claro sobre os limites do que faziam. E durante muito tempo, isso foi doloroso para Kyle. Durante muito tempo, ele não soube o que fazer disso e fingiu que estava tudo bem. Agora, já não era mais doloroso. Era apenas vazio. Kyle amava aquele homem, não havia um pingo de dúvida a esse respeito em seus ossos. Talvez Gregory tenha sido seu primeiro amigo, amigo de verdade, a primeira pessoa em que Kyle confiou plenamente, para quem se mostrou por completo, sem defesas. Gregory o ensinou a não se desculpar por quem era, a escolher as próprias batalhas, a viver da maneira que queria e podia sem sentir culpa por isso. E quando foram descuidados, quando a vizinha de Kyle os viu através da janela para os fundos do quintal, viu a mão de Gregory tocando a orelha e a lateral do pescoço de Kyle de maneira inapropriada, maliciosa, viu os lábios de Gregory roçando pelo maxilar dele, e quando Sheila o confrontou sobre seu relacionamento com aquele rapaz e insistiu que eles se mudassem para o mais longe possível - “eu preferia que você pegasse essa faca agora mesmo e enfiasse no meu coração”, ela dizia – foi Gregory quem o convenceu de que o mundo continuaria girando, que as coisas se ajeitariam, que ele ficaria bem.

Kyle o amava. E sempre o amaria. Essa foi, provavelmente, a razão central para o que saiu de seus lábios em seguida.

-Isso não tá funcionando, Gregory.

Gregory era um homem de compostura e bons modos. Havia poucas coisas realmente capazes de tirá-lo do sério, não por ele ser uma pessoa particularmente tranquila, mas por ser orgulhoso demais e ocultar tudo o que sentia com uma habilidade quase sociopata. Era preciso conhecê-lo profundamente demais, há tempo demais, para conseguir encontrar as faíscas de fragilidade em seu rosto. Kyle já o havia visto com raiva, já o vira chorando e prestes a quebrar um vaso de cristal muito caro que precisou ser tirado de sua mão com delicadeza, tudo isso por razões bastante justificáveis. Kyle nunca se considerou uma dessas razões capazes de atingir Gregory fundo o bastante para que aquela máscara de superioridade desaparecesse por completo. Quase ficou surpreso pela forma com que o loiro o encarou de volta, o sorriso ainda estampado nos lábios, mas os olhos contavam uma história bastante diferente; estavam assustados.

-O quê? - Foi a resposta.

A entonação dava a entender que ele havia entendido as palavras, havia entendido o contexto, mas precisava que a coisa fosse dita em voz alta.

-Você entendeu. - Kyle respondeu puramente por teimosia, tomado por uma vontade impulsiva e idiota de feri-lo. - É isso. Você tem a sua vida lá, eu tenho a minha vida aqui. O que a gente tá fazendo? Essa merda não vai levar a lugar nenhum.

Nenhum dos dois havia percebido a caminhonete estacionando dois carros atrás do de Gregory, em frente à casa vizinha. A sombra de uma gigantesca árvore de pequenas folhas verdes caía sobre o automóvel que produzia um barulho horrível com o bater da porta que não fechava direito. Analisando bem a caminhonete branco-amarelada, era difícil acreditar que a coisa ainda fosse capaz de se locomover. Mas era. Apesar da pintura lascada, da manivela quebrada que tornava impossível abrir ou fechar completamente a janela do passageiro, as manchas de ferrugem na lata (que davam até certo charme, na humilde opinião de Kenny McCormick), funcionava que era uma beleza.

Tanto funcionava que o trouxe até a casa de Stan Marsh sem maiores incidentes, mas Kyle estava compenetrado demais na conversa com um desconhecido de calças apertadas demais. O homem também vestia botas exatamente como aquelas das quais Kenny gostava de tirar sarro. Kenny soltou um riso baixo ao fechar a porta do carro, pisando no asfalto com seus sapatos perfeitamente normais, palitando o dente com um pedaço de frango que o incomodava desde o almoço. Agora, as nuvens davam lugar para a passagem dos raios de sol, o que fez Kenny estreitar um pouco as pálpebras pela sensibilidade dos olhos. Não gostava de claridade.

Também não gostava da forma como aquele garoto engomadinho falava com Kyle.

-Você não… Isso é da boca pra fora, você só está chateado. - Ouviu o estranho dizer enquanto se aproximava, mas a conversa não foi muito além disso quando Kyle percebeu a presença de Kenny e sorriu sem jeito, o sorriso mais forçado que Kenny já vira naquele rosto. De qualquer forma, Kenny não era o que se pode chamar de “perceptivo”. Ou talvez fosse cara de pau demais para se importar com o que quer que estivesse acontecendo ali.

Ofereceu o seu melhor sorriso, passando a língua entre os dentes, chegando inconvenientemente perto dos dois e parando um segundo apenas para encará-los como se nada houvesse, um cumprimento breve com a cabeça, estudando o desconhecido.

-E aí? - Kenny disse em um tom casual, colocando o palito no bolso do jeans, esquecendo as mãos lá dentro. - Quem é seu amigo?

Gregory levou alguns segundos para sequer reconhecer a presença de uma terceira pessoa, uma escolha que não foi acidental. Talvez tenha percebido o carro estacionando muito antes de Kyle, mas seus olhos continuaram fixos no ruivo, ignorando qualquer outra coisa que acontecesse ao redor, o sorriso incrédulo morrendo em seus lábios. Umedeceu-os, um gesto breve que transparecia nervosismo.

-Kenny. - Kyle respondeu com claro desconforto, ainda que muito melhor disfarçado do que o de Gregory. Era para ser um cumprimento, mas saiu muito mais como um aviso. Se Kenny notou a diferença entre uma coisa e outra, não demonstrou. Kyle pigarreou baixo, desviando o olhar entre um e outro, encolhendo os ombros para liberar um pouco da tensão. - Esse é o Gregory. - Foi o que conseguiu oferecer, exatamente a resposta que sua mãe ensinara, a mais educada possível.

-Você é do Texas também?

Kenny tinha esse tom de voz que tornava bastante difícil se irritar com ele, tão despretensiosamente simpático e sem culpa. Não era apenas algo relativo a sua voz, tinha a ver com toda a linguagem corporal, como se ele estivesse em uma dimensão diferente daqueles dois corpos. Era um observador, mas ninguém percebia isso.

Gregory lançou a ele o primeiro e mais significativo olhar, um tipo com o qual Kenny já estava bastante acostumado, aquele olhar que dizia “você não passa de um cupim”. Mas a reação daquele homem parecia ter pouco a ver com arrogância. Ele só estava perturbado, Kenny percebeu, tentando conter o franzimento das sobrancelhas. Gregory esfregou a região da boca com a palma da mão direita e respirou fundo, repousando-a no quadril logo em seguida.

-Escuta, a gente tá bem no meio de algo, será que você pode não estar aqui agora?

Por mais que não fossem palavras especialmente agressivas, a entonação comunicava muito bem o que Gregory estava pensando. Ele poderia muito bem ter completado a frase com “você é retardado?” usando aquele mesmo tom. Era uma habilidade que Gregory dominava, ofender as pessoas sem usar qualquer palavra agressiva. Kyle virou o rosto levemente para ele, encarando-o pela visão periférica, a boca tensa em uma linha reta.

-Gregory. - O ruivo disse em uma voz pedinte, não tanto repreensiva.

-Ah. Porra, desculpa, eu não… - Kenny sorriu enquanto pressionava a língua por dentro da bochecha, coçando a cabeça. - Claro, cara. Eu não saquei que vocês tavam… Resolvendo alguma coisa.

-Pois é.

-Eu já vou entrar. - Kyle explicou em um tom muito mais brando, quase se desculpando.

Kenny assentiu com a cabeça, os olhos azuis parecendo os de uma criança enquanto ele dava alguns passos para trás, levando uns segundos até se virar completamente para seguir caminho até a casa. Antes de dar as costas, ofereceu um sorriso reconfortante para que Kyle não se preocupasse, despedindo-se do Lorde McBotas com um aceno de cabeça. Não ouviu exatamente o que foi dito em seguida, mas escutou a porta do carro se abrindo (e era carro de bacana, Kenny percebeu) novamente para que Kyle pegasse o violino enquanto o idiota dizia qualquer coisa que Kenny não deveria escutar.

Foi tudo muito esquisito.

 

Como as temperaturas começavam a cair, eles substituíram a varanda pela sala de estar. Kenny nem precisou tocar a campainha, já era de casa o suficiente para dispensar tais formalidades. Enxergou Stan através da pequena janelinha redonda na porta, mostrando os dentes em um sorriso largo antes de abrir a porta que estava sempre destrancada. Stan não usava sapatos e tinha os pés apoiados na mesinha de centro, dedilhando o violão no colo, balançando a cabeça e os ombros conforme a melodia. Usava um suéter vermelho-escuro que sempre o deixava bonito, embora ele não soubesse disso. Kenny sabia.

Mas não teve tempo de elogiar o suéter.

-E aí, cara? - Stan disse sem parar de tocar o violão, mas produzia um som mais fino e delicado com os dedos. - Quer café? O Kyle não chegou ainda.

-Ele tá aí na frente.

-Na frente? - O rapaz franziu a testa, os dedos desafinando por um momento pela falta de atenção, mas ele logo a recuperou, embora seus olhos acompanhassem o movimento do amigo até a janela a poucos metros da porta.

Kenny esbarrou em uma mesinha com um vaso de gardênias brancas que ficava logo embaixo da janela, ajeitando-o com a mão mesmo sem tirar os olhos do que quer que estivesse observando através do vidro, usando a outra para puxar a cortina branca, aumentando o campo de visão.

-É, falando com um cuzão aí.

Stan passou alguns instantes distraído pelo violão, confortável demais no sofá verde cheio de almofadas com capas de crochê. Não estava particularmente interessado porque aquilo não lhe parecia um problema, mas após trinta segundos observando Kenny de pé em frente à janela esfregando o próprio maxilar, Stan pôs o violão de lado e se levantou. O chão de madeira era gelado contra seus pés descalços.

-Do que você tá falando, cara?

Mas Kenny parecia concentrado demais para explicar. Chegando por trás dele na janela, Stan entendeu uma parcela. Kyle discutia com um homem loiro e bastante alto que Stan não se lembrava de ter visto antes. Não fazia ideia do que estavam dizendo a essa distância, mas certamente não parecia uma discordância sobre banalidades esportivas ou qualquer coisa do gênero. Era mais caloroso do que isso. Eles não se encostavam, mas estavam bastante próximos, o homem não parando de falar um segundo sequer, enquanto Kyle explicitamente tentava se retirar do confronto.

-O Kyle conhece esse cara? - Stan perguntou.

Kenny encolheu os ombros.

-Deve conhecer.

Após cinco segundos de observação, nos quais Kyle voltou a responder raivosamente o rapaz enquanto abraçava o estojo guardando o violino em um braço, gesticulando furiosamente com a mão livre, Stan deu um passo para trás.

-Bom, eu não acho que eles vão se socar, se é com isso que você tá preocupado.

Kenny não respondeu. Nem sequer percebeu Stan se afastando da janela, voltando ao sofá, mexendo no rádio de madeira que ficava sobre a pequena mesa de canto, próxima a um abajur azul. Kenny havia se esquecido que Stan estava ali. O ruído do rádio parecia uma coisa distante. Ele não estava preocupado. Não temia pela segurança de ninguém, não era isso que fervia no cérebro de Kenny McCormick. Talvez fosse algo impossível de se traduzir em pensamento, até mesmo. Era uma lembrança. Uma lembrança sonora, sensitiva, sensorial. A voz despretensiosa e levemente embriagada de Kyle enquanto ele brincava com o violão.

 

These boots are made for walkin' and that's just what they'll do
One of these days these boots are gonna walk all over you

 

Os lábios de Kenny se separaram por instinto, a língua deslizando pelo inferior, o ar preso em seus pulmões durante mais tempo do que deveria. Ele não podia entender porque esse momento aparecia com tanta força enquanto ele observava a briga acontecendo lá fora. Não podia entender porque pensava nos corpos suados sob o sol, os ajudantes da fazenda, os corpos nos quais ele não deveria pensar. Havia alguma coisa acontecendo lá fora que Kenny reconhecia em outros lugares, reconhecia na maneira com que seus pais gritavam um com o outro, na maneira com que Stan e Annie se silenciavam para não discutir e a tensão no ar poderia ser sentida de longe. E por um momento, um momento breve e inútil, fugaz como uma faísca sobrevivente na fogueira apagada, Kenny considerou a possibilidade de que Kyle também, talvez, apenas talvez, também pensasse em corpos que não deveria pensar. Havia algo na interação de Kyle com aquele imbecil que excitava e irritava Kenny exatamente na mesma medida.

Quando liberou o ar dos pulmões, deu-se conta de que o carro de Gregory arrancava a toda velocidade, o pneu cantando no asfalto, ao mesmo tempo em que Kyle caminhava em direção à porta da casa.

Apesar de não ter a mesma intimidade de anos que Kenny tinha com aquela casa, Kyle abriu a porta sem tocar a campainha. Era a força de hábito, a convivência com o ambiente, a adrenalina fervendo em seu corpo. Ele tinha as bochechas coradas, a respiração um tanto fora de compasso, o olhar inquieto. Abriu a porta com força desnecessária. Kenny se afastou um pouco da janela e pigarreou, apoiando uma mão na mesinha que sustentava as gardênias. Houve um silêncio de expectativa, os dois homens naquela sala encarando o ruivo parado na porta.

-A gente vai ensaiar ou o quê? - Foi a primeira coisa que deixou os lábios de Kyle. E não se falou mais sobre o Lorde McBotas.



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