1. Spirit Fanfics >
  2. Walking Men >
  3. Country in my genes

História Walking Men - Country in my genes


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


"Country in my genes" - The Broken Circle Breakdown Bluegrass Band

Capítulo 4 - Country in my genes


Inverno de 1958 – Nashville, Tennessee

 

A neve começou a cair. A decoração natalina enfeitava os mais diversos cantos da cidade, de árvores iluminadas a sinos e guirlandas penduradas pelos postes e edifícios; anjos, elfos e homens de neve sorridentes e convidativos nos quintais das casas ou nas ruas comerciais. A casa de Stan não era uma exceção. No canto da sala, um pinheiro de três metros imperava com seus galhos abertos de poucas folhas tristes e caídas, mas compensava na decoração de bolinhas azuis e prateadas, um anjo branco assistindo a todos do topo da árvore. Não havia muito dinheiro para outros tipos de decoração.

A lareira estava acesa.

Kyle segurava uma caneca de café quente, parado de pé logo ao lado da árvore, sua atenção focada nos retratados distribuídos em molduras diferentes, todos com fotografias antigas da família Marsh. Observava uma fotografia do avô de Stan que nunca teria a chance de conhecer, pois ele morava no Colorado e já não caminhava mais por conta da idade. Na imagem o homem ainda era jovem, esbanjava vitalidade e um vasto bigode preto, segurando uma criança no colo, uma menina brava de braços roliços e duas tranças no cabelo. Aquela deveria ser a irmã, Shelly. A atenção de Kyle deslizou para um retrato de uma mulher de cabelos curtos sentada na varanda daquela mesma casa, segurando um bebê sorridente que tentava escapar de seus braços para caminhar em direção à pessoa que tirava a foto. Não foi difícil reconhecer o rosto de Stan, mesmo que dezoito anos mais jovem, com bochechas grandes e o cabelo muito mais ralo. Tanto Stan quanto sua mãe, na forma em que Kyle os conheceu, carregavam uma estranha melancolia no olhar. Não era uma questão de humor, era uma constância. Sharon, a mãe, parecia sempre cansada e tinha uma dureza no rosto que Kyle jamais saberia como explicar, pois simultaneamente, tratava-se de uma mulher muito doce. Assim como o filho. Kyle esboçou um sorriso fraco, aproximando a caneca amarela dos lábios para beber um gole.

Virou-se para encontrar Kenny e Stan sentados no chão da sala, debruçados sobre a mesinha de centro onde habitava uma garrafa pela metade de cerveja, um cinzeiro cheio, um vaso de petúnias e vários papéis espalhados com garranchos escritos. Discutiam como musicar uma letra que Kenny havia rabiscado na noite anterior; esse se tornara um hábito frequente de seus encontros. De início, Kyle pensou que a única coisa que teria em comum com os dois garotos era a vontade de fazer música, mas isso mudou tão gradualmente que o ruivo nem sequer se deu conta. Quando percebeu, estavam se tornando amigos. Largavam os instrumentos de lado para se perderem em horas de conversas a fio, apenas os três, sobre todos os tipos de assuntos. Primeiro, sobre Elvis Presley e Woody Guthrie, sobre música e poesia, sobre as grandes lendas. Como os descobriram, o que ouviam na infância, porque começaram a tocar. Kyle foi ensinado por professores, Stan foi ensinado pelo pai, Kenny não foi ensinado por ninguém. Naturalmente, as conversas começaram a adentrar as madrugadas e outros tipos de assuntos surgiam. Política, religião, cultura. A possível candidatura de Kennedy, a Segunda Guerra, a Grande Depressão, a promessa de um mundo novo. Para o bom observador, cada assunto revelava um pouco mais da intimidade de cada um deles. Kyle sempre sentia o radicalismo marginal em tudo o que Kenny dizia, mas sem qualquer raiva diante do mundo, uma lucidez intelectual extraordinária para alguém que havia aprendido a escrever sozinho. Stan, ao contrário, não parecia sonhar muito alto ou fazer questão de ter opiniões fortes sobre coisa alguma. Era um observador acima de tudo, gostava de ler jornais e de ouvir os outros. Secretamente, Kyle sempre se perguntava o que teria unido os dois para começo de conversa.

 

Com a chegada da neve, começaram a adentrar nos assuntos mais íntimos. A falar de si próprios, de onde vieram. A família de Stan sempre viveu de trabalho rural, com poucos animais magros e uma horta farta, enquanto Sharon fazia trabalhos como costureira. Stan sempre trabalhou com as mãos na terra, desde criança, assim como Kenny (que vinha de uma condição muito, muito pior, até onde Kyle pôde entender). Kenny morava sozinho em um trailer velho que negociou com um de seus patrões dois anos depois de chegar à cidade, praticamente foragido daquela vida miserável. Antes disso, morou na rua, dormiu em abrigos e nos celeiros de quem o contratasse. Não parecia haver remorso em seus olhos ao falar sobre os pais, mas também não havia rancor. Entendia que seus pais nunca tiveram outra possibilidade na vida além de ser o que eram. Kenny assistiu à mãe apanhar do pai até que teve idade o suficiente para fazer algo a respeito. Contou de forma vaga enquanto fumava um cigarro, dando a entender que esse foi o estopim que o fez sair de casa aos catorze. O irmão mais velho e omisso ajudava a tocar o rancho e a irmã mais nova fazia todo o serviço doméstico que sua mãe já não dava mais conta. Ao falar dos irmãos, sim, Kyle percebeu um brilho triste de culpa nos olhos azuis. Quando questionado sobre voltar a Dayton algum dia, Kenny sorriu para ele e disse:

-Só quando eu tiver dinheiro pra tirar minha família daquele buraco.

Ele ainda mandava metade da miséria que ganhava para os irmãos toda semana.

Kenny falava muito mais do que Stan, mas a presença de Randy Marsh naquela casa dizia o suficiente por ele. A semelhança física entre pai e filho era algo assustador. Randy gostava de ouvi-los tocar e de beber com eles, mas havia um descontrole sempre na iminência a seu respeito; passava de um homem dócil a autoritário e agressivo em um piscar de olhos, geralmente em função do álcool. Kyle nunca viu alguém beber daquela maneira. Houve um dia em que Randy quebrou uma cadeira e os expulsou de sua casa, gritando barbaridades sobre o barulho que eles faziam e como eram “maricas inúteis que não faziam nada da vida além de infernizá-lo”. Kyle não tinha qualquer intenção de discutir com ele, mas Kenny o puxou pelo braço como se temesse que ele o fizesse. Ou talvez fosse apenas uma forma de oferecer segurança. Stan não disse uma palavra, mas os encarou com um olhar que simplesmente gritava “eu sinto muito” ainda mais alto do que os berros de Randy. Caminharam juntos até o ponto de ônibus, Kenny com as mãos nos bolsos e Kyle com a cabeça baixa. Levou alguns minutos para que alguém quebrasse o silêncio. Mas Kenny finalmente disse:

-Ele não faz por mal. É o álcool, sabe? O meu velho é assim também. - O loiro suspirou, o calor da respiração encontrando o ar gelado e formando uma camada fina de vapor. - Não deixa isso te assustar.

-Precisa de mais do que isso pra me assustar. - Kyle respondeu, mas talvez não fosse verdade. Kenny andou mais devagar enquanto o observava com um sorriso fraco no canto da boca; ele também pôde conhecer Kyle nos poucos meses em que conviveram, o bastante para saber que ele precisava reforçar o próprio controle das coisas quando lidava com uma situação inesperada. E era isso que ele estava fazendo. Então, Kenny não questionou.

-Ele é um bom homem. - Complementou com uma voz baixa. A resposta de Kyle veio com um riso sarcástico que Kenny não apreciou, franzindo o cenho para ele. Enquanto Kenny o encarava, Kyle olhava para frente. Andavam no meio da rua. Não havia movimento ao redor. - Ele é, cara.

-Eu vi.

-Não faz isso. - Kenny parou de andar. Quando Kyle se virou, os pés freando aos poucos também, deparou-se com uma expressão desconhecida até aquele momento. Séria demais para aquele rosto. - Não julga o que você não conhece. Ele é decente, trabalha duro, sempre alimentou os filhos dele. E daí que ele passa da conta de vez em quando? Você não sabe o que é um pai ruim de verdade.

Aquilo parecia um pouco pessoal demais para ser debatido, então Kyle suavizou a expressão e assentiu devagar.

-Desculpa.

E era simples assim com Kenny. Kyle ficou surpreso com a rapidez com que aquele rosto voltou ao normal, não necessariamente sorrindo, mas sem qualquer traço da irritação que nascera há poucos segundos. Eles continuaram a caminhar, um silêncio tenso em torno deles que Kyle tentava não reconhecer, encarando as casas pelas quais passavam para não ter que olhar para o outro. De repente, Kenny disse com casualidade:

-O seu pai não deve encher a cara desse jeito, eu imagino.

-E no que você baseia esse palpite, exatamente?

-Sei lá. Você parece um bom menino texano bem-criado, de família boa, dessas que te compram sapatos novos e tudo. - Kenny imitou o sotaque dele e deu uma cotovelada de brincadeira em seu braço. Era muito possível que Kyle se irritasse em outras circunstâncias, mas estava aprendendo a rir das imitações terrivelmente exageradas de Kenny. Ninguém falava daquele jeito. As três garrafas de cerveja em seu organismo também fizeram com que Kyle soltasse um riso alto pela rua vazia. De alguma forma, já aprendia a achar charmoso.

Era início do inverno quando essa conversa aconteceu. Apesar de o frio não ser tão rigoroso, não escapava aos olhos de Kyle o quão fino era o casaco de Kenny, ou como a sola de suas botas estavam soltas e seus dedos do pé deveriam estar congelando. Ainda assim, o loiro não parecia incomodado. E isso era o mais fascinante aos olhos de Kyle, a tranquilidade com que Kenny deslizava pela vida e sobrevivia a coisas que seriam destruidoras aos olhos do ruivo. Vivia sozinho há mais tempo do que deveria, em condições inimagináveis, sem nada ou ninguém que o protegesse, e mesmo assim, não se tornou uma pessoa dura. Ele era flexível, moldável, dobrava de todas as formas possíveis antes de quebrar. Kyle era incapaz de entender porquê.

No fim de semana seguinte ao ocorrido, estavam de volta ao lar dos Marsh como se nada tivesse acontecido. Randy nem sequer parecia se lembrar do que fez. Se havia qualquer constrangimento, era da parte de Stan, que tinha os olhos baixos e estava um pouco mais quieto do que de costume. Mas Kenny e Randy continuavam a interagir da mesma forma calorosa de sempre. Era visível que Kenny tinha aquele homem como um verdadeiro pai e o perdoaria por todas as coisas. Havia bondade em Randy, Kyle não podia negar.

 

Fato é, Kyle gostava deles. Gostava de verdade, como não imaginou que fosse gostar. A universidade continuava sendo um espaço majoritariamente solitário, no qual ele perdia interesse pouco a pouco. Agora, nas férias de inverno, Kyle sentia-se desconectado dos livros que planejava ler, das coisas que pretendia estudar. Passava todo o seu tempo livre ensaiando sozinho no quarto ou tocando com Kenny e Stan, bebendo e jogando conversa fora, esquecendo-se de qualquer outra responsabilidade. Os pais não gostavam, mas se fosse honesto consigo mesmo, eles não gostavam de praticamente nada. Kyle precisaria aprender a lidar com isso uma hora ou outra. Em mais de uma ocasião, Sheila disse:

-Por que você esconde esses garotos? Eu preciso colocar os olhos em cima deles, trate de trazê-los para jantar.

Pretendia evitar isso o quanto fosse possível.

Sorria enquanto observava Kenny tirando a franja caída sobre a testa, apertando o braço de Stan com a outra mão enquanto se inclinava para mais perto dele, ouvindo atentamente as sugestões que o outro dava sobre métrica. Stan murmurava uma melodia e Kenny assentia com a cabeça como se entendesse. Kyle apertou os dedos em torno da caneca quente de café e deu dois passos para se aproximar dos companheiros, convencido de que esses dois garotos eram as pessoas certas. Porque eles enchiam o peito de Kyle com um sentimento que, após meses tentando identificar, o ruivo finalmente identificou: era paixão. Paixão forte o suficiente para gerar coragem, inspiração, sentido. Não havia nada de particular a respeito deles, olhando de perto. A paixão estava nas nuances da convivência, na força delicada dos dois, nas mãos que simplesmente nasceram para tocar instrumentos, as vozes que nasceram para ser ouvidas. Esses garotos medíocres, tão medíocres quanto ele, faziam Kyle se lembrar do que amava de verdade. Mesmo sem querer, mesmo sem tentar.

-E se a gente gravasse um disco?

Um silêncio seguiu a pergunta. As duas cabeças se viraram em sua direção, ambas com expressões distintas. Kenny levou alguns segundos para soltar uma risada antes de voltar sua atenção ao papel novamente, mas Stan continuou a encará-lo com o cenho franzido, como se considerasse a ideia. Pelo menos foi o que Kyle pensou.

-Que graça. - O loiro comentou sem maldade alguma na voz.

-É sério. - Kyle se aproximou o suficiente deles para descansar sua caneca sobre a mesa, mas continuou de pé, os braços cruzados. - Vocês nunca pensaram nisso?

-Precisa de dinheiro pra isso, Kyle. - Stan respondeu com a mesma voz desmotivada, abaixando os olhos para o papel também.

-Eu tenho dinheiro. - As palavras saíram sem pensar. Nem eram exatamente verdade; seus pais tinham dinheiro, o que se parecia muito com a mesma coisa. Kenny voltou a encará-lo com um interesse desconfiado, a franja caindo por cima dos olhos azuis brilhantes, o cotovelo apoiado na superfície da mesa. Ergueu um pouco o queixo, esperando que ele continuasse. - Olha só, a gente é bom. E a gente tá no lugar certo, a única coisa que essa cidade tem de relevante é a indústria musical. E… - Ele deveria ter pensado melhor sobre isso antes. - Eu conheço um cara.

Kenny e Stan trocaram um olhar breve, quase imperceptível, buscando o que o outro estaria pensando. Stan pigarreou primeiro, debruçando-se um pouco mais sobre a mesa.

-Que cara?

-Um empresário. Nós estudamos juntos no Texas, ele se mudou pra cá porque achava que ficaria bilionário representando artistas Country em ascensão. - Kyle revirou os olhos. - Enfim, nós não somos exatamente… Amigos. Mas eu tenho pensado em falar com ele. É a porta de entrada pra qualquer gravadora.

Kenny coçou a cabela daquela forma característica que o fazia se parecer com um cachorro. Esticou os braços sobre a mesa de centro, o papel levemente amassado em suas mãos, encarando-o enquanto pressionada a língua por dentro da bochecha como fazia quando pensava demais.

-Bom, não é como se nós nunca tivéssemos falado sobre isso. - Stan respondeu após longos segundos em silêncio, encolhendo os ombros, endireitando o tronco. - Eu e Annie vamos nos casar esse ano, a gente tá construindo a casa, todo o meu dinheiro vai pra isso. Eu não sei se é uma boa hora.

O ruivo se viu preparado para sacudir a cabeça e dizer que foi uma ideia idiota, não insistir mais em uma fantasia momentânea que fez ninho em seu cérebro. Mas antes que pudesse abrir a boca para isso, foi surpreendido pela resposta de Kenny:

-É, mas depois vem os bebês, você vai ter que trabalhar feito um cão, nunca vai ser a hora certa. - Ofereceu um sorriso fraco, mais para si mesmo do que para os outros dois. - Você acha mesmo que a gente é bom o suficiente?

Kyle assentiu com a cabeça. E era verdade. A ideia foi plantada nele primeiro pela sensação de subir nos palquinhos minúsculos dos botecos de Nashville e cantar para um bando de cowboys bêbados e namoradas que gostavam de dançar. Até esse ponto de sua vida, Kyle ainda não havia usado nenhum tipo de droga, mas tinha certeza de que cantar em um palco era uma sensação semelhante. Não tinha a ver com o público, não importava se cantavam para pessoas desinteressadas que seguiam com sua noite e a música não passava de um mero plano de fundo, ou se cantavam para uma casa cheia de pessoas empolgadas e incapazes de sentar. Tinha a ver com a música, com Kenny e Stan, com o seu violino. O público, entretanto, era o que lhe fazia imaginar como seria sua vida se ele pudesse apenas viver de cantar. Nada de diplomas, de tocar os negócios do pai, criar cavalos apenas por prazer, libertar-se.

Ele sempre teve um pouco mais de ambição do que os outros dois rapazes.

Com isso, Kenny trocou mais um longo olhar com Stan, umedeceu os lábios e disse:

-Vamos só conversar com o cara. Não vai fazer mal.

-É, não vai.

 

 

Foi a primeira noite de casa cheia desde que Kyle se juntou a eles. Talvez a euforia do público pudesse ser atribuída ao horário; eram quase onze da noite quando subiram no pequeno palco do bar, este um pouco maior e mais ajeitado do que a maioria dos botecos de Nashville em que costumavam tocar. Foi uma escolha estratégica, não tocar em um estabelecimento onde baratas corriam no chão quando Eric Cartman finalmente concordou em assisti-los. Kyle podia enxergá-lo do palco, apesar das luzes fortes provindo dos dois holofotes improvisados no teto. Isso também era um luxo, iluminação especial.

Cartman estava sentado sozinho em uma mesa nos fundos, atrás de todas as pessoas bêbadas e empolgadas de pé no espaço amplo que se tornava, por tabela, uma pista de dança. Era um homem grande, gordo, com a altura de um armário. Vestia um paletó branco por cima de uma camisa preta, o seu chapéu (igualmente branco) descansando sobre a mesa, coçando o queixo e beberricando um copo de uísque puro. Kyle tentava não fazer contato visual com ele, o que era fácil, tanto pelas luzes quanto pelos cowboys embriagados erguendo suas garrafas de cerveja.

-1, 2, 3, 4. - Com o estalo dos dedos de Kenny, que tinha o banjo ajeitado em seus braços e preso em seu tronco por uma alça, eles começaram.

Stan estava mais próximo de Kyle, suando mais do que deveria, mas seus dedos não falhavam na firmeza de produzir sons maravilhosos com aquele violão. Ele havia tomado uma boa dose de coragem líquida antes de subir ao palco; Kyle quis protestar, alegando que aquela não era a melhor noite para ele cair bêbado do palco, mas Kenny colocou a mão em seu ombro e, sem dizer nada, apenas com os olhos, o fez entender que Stan faria um trabalho muito melhor com uma dose de cachaça no organismo. Era verdade. Stan era um introvertido, não gostava do foco de luz e não olhava para as pessoas, mas era um músico nato e continuava se apresentando porque música era o que mais fazia sentido para ele. Naquela época, a vaidade ainda não fazia efeito nele.

Kyle tocava o violino como uma extensão de seu braço. O nervosismo na boca do estômago o alimentava. Não era uma pessoa de oferecer sorrisos fáceis, mas no palco, era o lugar onde mais mostrava os dentes.

 

Well, they say that I'm too country, the way I look and sound.
They wanna to make me over, just a little more uptown.
Say I need to change my image, now tell me what's that mean.
Don't they know I've got country in my genes?

 

Kyle abaixou o arco do violino ao aproximar os lábios do microfone, mas sem desencaixar o instrumento de seu queixo, retomando o movimento assim que terminou de cantar os versos com a voz melodiosa, o que arrancou um urro entusiasmado de alguns dos bêbados que começavam a dançar. Kyle riu. E durante esse momento, Kenny o observava de lado com um sorriso fraco nascendo nos lábios entreabertos, admirando a maneira com que aquele sotaque se encaixava à música. Quando Kyle cantava, não era apenas técnica e proferir palavras aleatoriamente. Ele vestia as canções, dançava com elas, batida o pé no chão e amava cada segundo.

 

Well, I can't help the way I talk, I wouldn't change it if I could.
Sophisticated ain't my style, the country fits me good.
I ain't ashamed to wear what's been handed down to me.
Lord, I've got country in my genes.

 

Stan estava à direita dele, Kenny à esquerda, Kyle no centro com o único microfone no pedestal. Kenny deslizou para mais perto dele com um passo só, aproximando o rosto do seu ao alcançar o microfone para o refrão. Kyle tocava o violino apenas entre as transições; segurava-o cuidadosamente pelo braço enquanto cantava. Kenny ajeitou o chapéu preto na cabeça em um intervalo estratégico de dois segundos antes de sua mão voltar às cordas do banjo. Seu ombro roçava no de Kyle pela proximidade.

 

I've got country in my genes, country in my blood.
It goes back generations. It's something I'm proud of.
It's something I was born with, what you get is what you see.
I'm just an old hillybilly with a country song to sing.
Oh Lord, I've got country in my genes.

 

A voz de Kyle se sobressaía à dele, e na opinião de Kenny McCormick, foi assim que Deus quis. Ele contribuía apenas com uma segunda voz mais ríspida, igualmente forte, poucos centímetros mais longe do microfone. Eles trocaram um olhar breve enquanto cantavam juntos e Kyle sorriu mais largo pela expressão estampada no rosto do loiro, mas logo em seguida, seus olhos se voltaram ao público. Kenny podia sentir o suor escorrendo pela testa.

Stan apoiava o pé em um banquinho que nenhum dos três usava, os músculos relaxados o bastante para ele quase dançar com os ombros e a cabeça, o olhar voltado aos seus dois companheiros na maior parte do tempo. Ao fim do refrão, Kenny deu um passo para trás, focado em um curto solo do seu banjo velho ao mesmo tempo em que Kyle voltava a tocar o violino.

Enquanto isso, Eric Cartman erguia um pouco mais o queixo e abria um sorriso fraco no rosto, sorriso este que poderia ser tão contente quanto cruel. Bebeu mais um gole longo do uísque e umedeceu os lábios em seguida, sentindo a ardência do líquido que descia pela sua garganta. Pigarreou uma única vez, apoiando o copo sobre a mesa com círculos molhados marcando onde o copo havia estado anteriormente. Levantou-se para enxergar direito, observando de longe a dinâmica daqueles três rapazes jovens no palco. Cruzou os braços. Seu rosto era pensativo, destoando daquele bando de caipiras bêbados que haviam trabalhado na neve durante o frio rigoroso do inverno a semana inteira e precisavam do descanso do álcool e da música que lhes era familiar.

 

If country's hit the big time, me, I'm still the same.
I ain't above my raisin' and I ain't about to change.
I wouldn't trade my Wranglers for the finest gaberdine.
Lord, I've got country in my genes.
 

Cartman passou a palma da mão direita sobre os lábios para secá-los, uma ruga marcada entre as suas sobrancelhas grossas, prestando atenção em Kyle enquanto ele cantava sozinho. O desgraçado tinha uma voz bonita, bonita de verdade, sempre teve. Cartman já sabia disso. Mas ficou genuinamente surpreso quando Broflovski apareceu no seu escritório e o convidou para assistir sua bandinha se apresentar. Nunca pensou que ele fosse realmente querer entrar para a indústria musical. Os olhos castanho-claros de Cartman passavam pelos casais dançando, pelas pessoas que, mesmo paradas, ficavam balançando no mesmo lugar porque o som era contagiante demais. A pergunta que martelava no cérebro de Eric era se conseguiria vendê-los para qualquer pessoa que não fosse um caipira bêbado.

Provavelmente não, pensava. Mas havia algo de especial na forma com que eles interagiam, os três. Como eles se distribuíam pelo palco, olhavam (e cantavam) uns para os outros, brincavam entre si como se não estivessem sendo assistidos. Isso era interessante. O garoto de cabelos pretos do violão não cantavam no microfone, mas murmurava as letras para si mesmo como se sentisse vontade. Cartman coçava o próprio maxilar e constatava que precisaria fazer algo a esse respeito.

 

I've got country in my genes, country in my blood.
It goes back generations. It's something I'm proud of.
It's something I was born with, what you get is what you see.
I'm just an old hillybilly with a country song to sing.
Lord, I've got country in my genes.

 

Quando Kenny se aproximou do microfone novamente, estava de perfil para o público e de frente para Kyle, a língua aparecendo sobre o lábio inferior, o pé batendo no piso do palco e os dedos mais ferozes pelas cordas do banjo. Kyle o observou de canto antes de se afastar alguns centímetros para lhe dar mais espaço, o rosto também virado de frente para ele até o momento e ajeitar o violino na posição de tocá-lo. Kyle cantou o último verso sozinho, mas Kenny não se afastou. A voz saía encorpada e sem esforço, afinada como nunca, uma gargalhada de brinde ao final quando Kenny tirou o chapéu para agradecer.

Cartman segurava o copo próximo aos lábios e assentia com a cabeça. Ele podia vender esses idiotas.

 

Tocaram dez músicas, o que resultou em pouco mais de 45 minutos de apresentação. Após cinco minutos para beberem água, secar o rosto e guardar os instrumentos na caminhonete, enfim, os três se sentaram com Eric Cartman. Kenny e Stan ofereceram um aperto de mão sem jeito, enquanto Kyle não fez mais do que erguer as sobrancelhas para cumprimentá-lo. Cartman riu. Os dois não preservavam a mais convencional das relações, e nenhum deles chamaria o outro de “amigo”, mas por algum motivo, havia afeto ali. Kenny e Stan puderam enxergar de longe.

-Espero que gostem de uísque, eu pedi uma garrafa pra vocês. - Cartman disse quando se ajeitaram nas cadeiras, arrumando o próprio colarinho. Ele tinha uma daquelas atitudes desagradáveis que Kenny sempre enxergava nos homens para os quais trabalhava, o tipo de pessoa que acredita ser dona de qualquer terra sobre a qual pisa; até os seus atos de generosidade eram uma maneira de mostrar que ele podia comprar a sua alma se quisesse. Mas o loiro não tinha qualquer intenção de recusar o Red Label que foi posto à mesa.

Isso não o impediu de trocar um olhar de apenas um segundo com Stan, tentando evitar que os cantos de seus lábios subissem demais. Stan não riu, mas estava pensando exatamente a mesma coisa enquanto aproximava o copo de uísque dos lábios: sentia que estavam prestes a vender a própria alma.

-Isso é bom pra cacete. - Kenny disse após dar o primeiro gole, fazendo uma pequena careta pelo gosto forte.

-Você gosta de uísque? - Cartman perguntou, apoiando os cotovelos sobre a mesa. Ele falava como um pai ou um chefe autoritário, um brilho curioso em seus olhos do qual Kenny não gostava muito.

-Gosto, mas os que eu provei tinham gosto de óleo de carro perto disso.

Antes que Cartman pudesse responder, Kyle atravessou a conversa:

-Então, o que você acha?

Cartman gastou alguns segundos o observando com interesse, segurando a garrafa para servir-lhe um copo, apesar de ele ter dito que não queria.

-Foi um show bonitinho. - Comentou distraidamente enquanto o líquido alaranjado escorria para o copo. Kyle franziu o cenho. - Vocês já têm um nome? Para a banda, digo.

-O Kyle não gosta muito das nossas ideias. - Stan respondeu com um sorriso fraco de provocação.

-É nisso que dá ter areia na vagina. Ele não gosta de nada. - Cartman disse. Kenny soltou uma gargalhada alta, da qual se envergonhou no momento seguinte, mas já era tarde demais. Kyle apenas revirou os olhos.

-As ideias de vocês são imbecis.

-”Blue wild horses” não é imbecil. - Kenny protestou com uma indignação falsa, a risada pronta para aparecer. Ela escapou assim que Kyle se virou para ele com as sobrancelhas erguidas, uma expressão que declarava “eu nem vou discutir isso com você”.

-Essa é meio imbecil sim, cara. - Stan disse, encolhendo os ombros, mexendo o uísque no copo.

-Tudo bem, vocês não precisam de um nome agora. É pra isso que serve o marketing. Mas nós vamos ter que conversar sobre algumas coisas. - Ele abria a mão direita, os dedos gordos cheios de anéis, em um gesto para pedir calma. Coçou atrás da orelha enquanto pensava no que dizer em seguida. - Vocês têm um problema de identidade. Vocês não são uma banda de country. Vocês pegam músicas country e fazem uma releitura muito particular, mas continuam misturando as duas coisas. Isso pode ser divertido se vocês querem continuar tocando em puteiros, mas não se vocês querem gravar. Vocês querem ser uma banda de quê? Bluegrass?

-Nós só temos seis braços aqui, não tem como a gente ser uma banda de bluegrass. - Kenny respondeu como se fosse uma idiotice.

-Isso é outra coisa. Vocês precisam de mais músicos.

Os três esboçaram expressões desconfiadas em níveis diferentes, trocando olhares em expectativa do que os outros teriam a dizer.

-A ideia é que sejamos só nós três. - Kyle respondeu com um suspiro impaciente.

-E serão vocês três. Vocês são a banda. Eu estou falando de músicos, mão de obra, gente pra acompanhar vocês e fazer a parte instrumental, refinar o som. Você. - Ele apontou o indicador na direção de Kyle, sentado de frente para ele no lado oposto da mesa. - Você é a voz principal, você não vai tocar e cantar ao mesmo tempo. Mas vocês três vão cantar, você só toca em músicas que você não canta. - Ele se virou em direção a Stan, apoiando o braço sobre a mesa que balançou um pouco com o peso. - Você canta?

-Eu não… Eu canto, mas…

-Ele canta. - Kyle disse enquanto o outro gaguejava, oferecendo um olhar de segurança. - E ele é bom.

-Isso nós vamos ter que ver. E esse seu medo de público, eu não posso vender músico que tem medo de público. Estamos no mesmo barco?

Stan coçou a nuca e se recostou na cadeira, dando um longo gole no uísque em seguida. Kenny quis tocar o ombro dele, mas não se moveu. Em vez disso, ergueu as sobrancelhas para questionar, sem palavras, se ele queria ir adiante com isso. Stan assentiu com a cabeça. Em seguida, os dois homens viraram o rosto em direção ao ruivo, que observava a toalha verde sobre a mesa com uma expressão pensativa.

-Nós somos uma banda de folk. - Kyle disse afinal, erguendo os olhos para Cartman. - É isso que nós somos, é assim que você vai nos vender.

-Ótimo. - Cartman abriu um sorriso largo que mostrava seus dentes brancos, respirando fundo antes de apoiar as costas no encosto da cadeira, ainda segurando o copo, parecendo satisfeito. - Nós conseguimos uma música que já seja conhecida pra colocar no primeiro álbum. “Can’t help but falling in love”, qualquer merda dessas, um country rock reformulado no som de vocês. É familiar, mas único. Pegamos uma das letras de vocês para vender como hit, algo mais… - Ele gesticulava com as mãos e encarava o teto para encontrar a palavra certa. - Mais potente. Menos melodioso, mais forte. - Cartman juntou as mãos e abriu um sorriso quase malicioso. - Eu posso transformar a bandinha de merda de vocês em alguma coisa que preste, garotos. Eu ganho 35% dos lucros que vocês fizerem com tudo, isso vale para venda de discos, apresentações, aparições em programas de TV, tudo.

-Programas de…? - Kenny franziu as sobrancelhas, soltando uma risada incrédula. - Você pode fazer isso?

Cartman o encarou por um momento antes de se inclinar sobre a mesa para aproximar o rosto de Kenny.

-Eu vou fazer isso. É só vocês dizerem sim.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...