No capítulo anterior:
[...] "Ouço o som da porta atrás de mim ao ser fechada. Fico sozinha no QG, repassando o que todos me disseram. No fim, eles permaneceram ao meu lado, mesmo com toda essa merda sendo jogada no ventilador. Não sei se fico feliz ou triste, pois de certa forma, esperava ser punida. Ok, eu queria ser punida por todas as minhas burradas, pra ver se aprendia de vez. [...]
[...]
"[...] – Natsu, o que está acontecendo? – Juvia esfrega os olhos e senta-se na cama, segurando o tecido do lençol contra seus seios.
– Estamos indo embora."
[...]
"[...] Na imagem, via duas mulheres, uma loira e uma azulada, com um jovem moreno sorridente no centro, no que parecia um apartamento. No fundo, estava o rosado, encarando as costas da loira com um rosto sério, porém, olhos divertidos. – Vamos jogar o seu jogo, dando um tempo para se acomodar em um novo lugar e fingir que nos enganou com esse incêndio. Enquanto isso, estarei ocupado com outras coisas. – Com um sorriso malicioso, guardou a foto no bolso – Parece que encontrei algo interessante jogado na rua."
AGORA
Algum lugar nos limites de Tóquio
Os pulmões do moreno ardiam com o exercício forçado. Suas pernas estavam tremendo e sua visão tinham pontos negros aparecendo em lugares distintos cada vez que piscava. Sentia o suor escorrer pelo seu corpo, incomodando-lhe a vista por estar com a cabeça abaixada. Inclinado, com as mãos nos joelhos e coração acelerado, Gray sentia a raiva ascender dentro de si.
– Mais... Alguns.... Segundos e eu.... Irei... Acabar... – Gray ergue o indicador trêmulo para o rosado, junto com seu olhar – ... Com a sua raça.
– Você mal correu alguns quilômetros. – Dizia encostado em sua moto, com os braços cruzados. O demônio se divertia com o sofrimento do outro.
– Foram... 100km, em 30 minutos! – Fica ereto depois de respirar fundo mais algumas vezes – Fácil para você falar.
– Mimei muito você – Natsu inclina a cabeça para o lado, com um sorriso maldoso no rosto – Era para tê-lo feito correr desse jeito todos os dias.
– Você é um filho da puta. – Gray diz ao pegar o capacete das mãos do rosado com irritação – Não sei como minhas pernas nãos descolaram do quadril.
– Porque sua regeneração está elevada, graças ao meu treinamento. Além disso, devo parabenizá-lo por conseguir correr assim na primeira vez e ainda estar de pé. Acho que te subestimei.
– Oi? – O moreno levanta a viseira do capacete para ver e falar melhor – Você nem esperava que eu fosse conseguir? O que teria acontecido se eu tivesse desmaiado enquanto você se divertia com a moto?
– Eu voltaria e pegaria você, não sou tão mau. – Natsu ri – Quase acompanhou a velocidade máxima da minha moto, não está feliz?
– Estaria feliz se pelo menos você tivesse corrido. Sabe o quanto eu tive que me segurar para não lançar uma estaca em você ou na moto para obrigá-lo a parar? – Gray monta na moto e dá a partida – Adoraria acertar essa belezinha e deixá-lo puto, mas se eu fizesse isso, com certeza não teria mais forças. – O moreno olha por cima do ombro, para o rosado – Não vai subir? Estou doido para fazê-lo correr atrás de mim.
– Você não usou a Demom Form e nem cogitou usá-la. Não está percebendo como evoluiu desde a vez que conseguiu liberá-la pela primeira vez. – O rosado coloca a mão sobre o ombro de Gray e aperta fortemente, lançando-lhe um sorriso sarcástico – Quem disse que você poderia dirigir?
O moreno se encolhe com a dor e, sem perceber, é empurrado pela mão espalmada do rosado em seu peito. Logo, Natsu está sobre a moto, guiando-a pela estrada, enquanto Gray se segura para não cair. A força que o rosado possuía agora estava em um nível totalmente diferente daquele de quando se conheceram e, de certa forma, assustava o moreno. Quão monstro ele ainda poderia ser?
– Gray – Natsu fala alto contra o vento – Decida para onde iremos.
– Já estamos perto de Fujioka, não é? – Tenta ler as placas, mas elas não passavam de imagens borradas pela velocidade – Achei que já tivesse decidido para onde iríamos.
– Não posso mais tomar decisões. – Natsu faz uma curva fechada, assustando Gray – você terá que tomar por mim.
– O quê? – O moreno grita – Eu nem sei o que estamos fazendo!
– Zeref me entende melhor do que ninguém. A ligação que tenho com ele é uma maldição. Se for fazer tudo do meu jeito, vamos tê-lo nos nossos calcanhares em questões de horas. – Faz uma pausa – Precisamos de dias.
– Não podemos ficar muito longe, porque podemos ter que voltar imediatamente para Tóquio. É melhor ficarmos por algumas dessas cidades. – Gray diz e bate contra as costas de Natsu, que para a moto subitamente. – Você é louco? Estamos muito rápidos para que pare assim do nada.
– Você tem razão. – O rosado suspira e tira o capacete – Infelizmente, é o que eu havia pensado também.
– Podemos ir para a minha cidade natal – Gray fala com certo desgosto – Ainda tenho uma casa lá.
– Magnólia?* – Natsu coloca o capacete novamente em meio a risadas baixas – Que nostálgico.
Ambos voltam a mover-se em direção a cidade de Magnólia, com rapidez. Gray preenche-se de dúvidas pelas atitudes de Natsu sempre que algo envolve o passado, mas cansou-se de perguntar. Sabia que ele não iria dar a resposta se não quisesse ou não achasse o momento adequado, então só espera que o próprio rosado resolva falar.
Enquanto Natsu esconde a moto sob lonas pretas dentro da garagem dos Fullbusters, Gray caminha pelos cômodos quase sem móveis, gerando um eco de seus passos. Lembra-se bem de como foi difícil deixar a casa onde crescera para mudar-se para Tóquio, sem ter tempo de despedir-se dos seus amigos. Afastou a cortina, que lança contra seu rosto partículas de poeira, irritando-lhe o nariz. Pela janela, pode ver a antiga casa de Lucy, onde, pelo que se lembra, Jude ainda morava.
O rosado adentra a casa pela conexão da cozinha com a garagem, encontrando o moreno parado do outro lado da sala. O rosto sério de Gray intriga Natsu, que se aproxima para olhar a velha casa vizinha. Como os terrenos eram consideravelmente grandes, a distância entre eles permitia uma boa visão da moradia antiga.
– Não imaginava que sentia saudades daqui. – Fala sem emoção.
– De certa forma – Gray dá de ombros – Mas muitas coisas aconteceram aqui, então não é como se eu fosse totalmente feliz por estar de volta.
Não trocaram palavras por longos minutos depois disso. Natsu deixou que seu companheiro ficasse perdido nas lembranças infantis que ele ainda carregava, enquanto verificava as portas e janelas, encontrando algumas inscrições riscadas no assoalho de cada entrada. Natsu franze o cenho e abaixa-se, tocando no entalhamento que Silver fizera anos atrás, sem entender o significado daquilo. Elas não evitavam que demônios entrassem ou saíssem, pois seria ruim para o próprio moreno. Então, para que serviam?
Como encará-las não iria ajudar a interpretá-las, o rosado deixa de lado, por enquanto, continuando a caminhar pelos cômodos. A poeira deixada pelo tempo incomodava o nariz sensível, fazendo-o coçá-lo diversas vezes. No corredor que dava acesso aos quartos e banheiro, havia quadros e porta-retratos pendurados. Apenas um realmente chamou a atenção de Natsu, que parou para encará-lo. A foto estava sendo comida pelo passar dos anos, mas ainda mantinha a essência das pessoas fotografadas. Sem se dar conta, sua mão já se erguia para tocar a imagem.
– Tínhamos uns seis anos – Gray está ao lado do rosado, que abaixa sua mão rapidamente. – Aquela é a mãe de Lucy – Diz apontando para uma mulher loira no fundo da foto, sorrindo para um Jude jovem.
– Ela se parece muito com a Layla – Natsu fala sussurrando, mas Gray ainda é capaz de ouvi-lo – Tinha me esquecido.
– Você a conhecia? – Encarando-se, ambos ficam buscando coisas escondidas no olhar do outro – Ok, porque não fico surpreso com isso?
– Eu ficava de olho no seu pai, é comum que eu saiba com quem ele se relacionava. – Natsu vira-se para retornar a sala, sentando-se no sofá coberto por um lençol rasgado, como se estivessem naquelas casas abandonadas dos filmes – Mas minha história com a Layla é outra.
– Devo perder meu tempo perguntando “que história?”? – O moreno senta-se na mesa de centro, de frente para o rosado.
Natsu joga o braço para as costas do sofá, acomodando-se. Olha pela janela, em direção à casa dos Heartfilia, perdido em pensamentos. Gray torna-se cada vez mais impaciente e, quando está prestes a levantar-se, vê a boca do rosado abrir-se, como se ele fosse dizer algo. Desta forma, aguardou mais alguns segundos, até que a voz grave é a única coisa na sala.
– Não gosto de falar sobre isso, mas concordo em continuar depois. – O rosado volta a olhar para o moreno. Seu rosto suaviza-se, dando o assunto por acabado, por hora. – Juvia ligou para você?
– Avisei para ligar só em emergências, não sabia o quão ferrado nós estamos. – Gray da de ombros, ainda curioso pelo “assunto” – Queria verificar se a loirinha tá bem? – Diz com ar de riso.
– Parece que não tem amor pela sua língua. – A voz cortante do rosado dá a Gray a vontade de continuar provocando.
– Pra me livrar de toda a merda na qual você me coloca, aprendi a gostar de um hobbie novo, que é irritá-lo. – Gray sorri.
– Desde quando você tem essa liberdade pra falar comigo assim? – Natsu ergue uma das sobrancelhas.
– Não sei, acho que nos tornamos amigos. – A cara desagradável que o rosado faz deixa o moreno em meio aos risos.
– Você está com fome? – Querendo deixar as coisas para trás, tentando focar em novos assuntos, Natsu levanta-se após a pergunta, indo em direção a porta.
– Eu trouxe algumas comidas prontas para mim.
– Bom, eu estou. – O rosado, antes calmo, agora carrega uma aura de nervosismo e ansiedade.
– Ei – Gray chama a sua atenção, tornando sua expressão séria. – Não acha que está encurtando muito o tempo entre as “refeições”? – Natsu desvia o olhar, em direção à porta, perguntando-se se conseguiria escapar do interrogatório – Você mesmo me disse que não podemos nos dar ao luxo de entregarmos a essa dependência.
– Tem tantos lados positivos no que estou fazendo, que os negativos nem são tão importantes. – O rosado ri de maneira seca – Quando eu voltar, quero que ligue para Juvia. Vou falar com ela.
Antes que Gray pudesse reagir, Natsu já sumira de sua vista. Por dentro consumia-lhe a raiva de ter perdido a conversa com o rosado, mais uma vez, mas também havia a curiosidade sobre suas palavras. Lados positivos e negativos? Provavelmente, um ponto positivo é a consolidação de seus poderes, que se acumulam a cada alimentação. Porém, a dúvida que o consome é o quão controlado o rosado permanecerá quando isso tudo estiver acabado, se acabar.
Gray acorda com o barulho da porta ao abrir e fechar. Os trincos e as dobradiças gritam pelos anos acumulando a oxidação pela umidade e ar, assim como poeira. Sente a areia nos seus olhos e as limpa, focando no corpo esguio do rosado atravessando a sala. As chaves encontram a mesa de centro e Natsu, a poltrona. O moreno boceja sem perceber e ajeita-se, limpando a baba que escorria pelo canto da boca. Não percebera o estado de cansaço que se encontrava até cair no sono.
– Já voltou? – A voz sonolenta do moreno diverte Natsu.
– Sim, depois de... quatro horas – O rosado ri da cara surpresa que Gray faz – Bela adormecida.
– Até seu humor melhorou.
– As garotas daqui são maravilhosas. Deveria viajar mais vezes e experimentar novos sabores – Natsu espreguiça-se na poltrona e fecha os olhos, colocando as mãos atrás da cabeça.
– Alguma delas sobreviveu pra contar história?
Natsu não responde à pergunta, deixando Gray com um pé atrás. Ele já vira seu companheiro em condições extremas, onde matava as garotas das quais se alimentava antes de ficar definitivamente com Lucy. Depois disso, havia se controlado até que, então, ambos agem como adolescentes e terminam brigados, voltando à estaca zero no quesito “autocontrole”. Mesmo assim, Gray sabia que os motivos não giravam apenas em torno da loira: o rosado bebia mais para preparar-se e como consequência, apagava a falta que a garota lhe fazia.
Só que discordava que esse deveria ser o preço a se pagar por tal atitude.
– Elas estão bem, gelinho. Você precisa confiar mais em mim. – Natsu abre os olhos, encarando o teto – Encontrei um banco de sangue, caso você não queira beber direto da fonte.
– Agradeço o sentimentalismo – Diz levantando-se e indo em direção à mochila, pegando alguns alimentos que trouxera consigo. Ao morder uma maça, volta a encarar Natsu – Então, chegamos no “depois”?
– Já quer falar disso? – Natsu bufa – Você é pior que a Lucy.
– Então pode falar o nome dela – Gray diverte-se com a oportunidade de atormentá-lo.
– Como aquele sabor delicioso encontra-se nessa língua majestosa que tenho, estou de bom humor e vou ignorar toda essa brincadeira perigosa que você fez – O rosado finge não se importar, mesmo deixando vazar parte de seus sentimentos – Quer saber o quê, exatamente?
– Sua ligação com os Heartfilia. – Ergue uma sobrancelha negra – Aceito o fato de conhecê-los por ficar de olho no meu pai, mas depois daquele papo de “história diferente”, só consigo pensar que você já conhecia a Layla.
– Não é algo tão interessante e complexo assim – Natsu dá de ombros – Ela tinha conhecimento desse mundo todo e um dia acabou me conhecendo, quando tentei matá-lo.
Os segundos demoram a passar enquanto as engrenagens na cabeça de Gray giram lentamente. Absorveu aquela nova informação de uma forma um tanto incômoda, demorando a perceber que o “quase morto” era ele próprio. Antes de conseguir falar algo, o rosado continua com o assunto.
– Silver tinha saído com Jude uma noite, no meio da madrugada. Eu tinha ficado de tocaia observando e deveria tê-los seguido, mas algo me prendeu aqui. – As orbes tornaram-se negras a medida que se perdiam no passado – Foi um dos momentos em que fiquei com sentimentos à flor da pele, sem entender o que era aquilo.
Gray para de comer sua maçã, absorto na história que se desenrolava. Então já teve a oportunidade de matar o moreno, mas não o fez? Por quê? Layla teria impedindo tal coisa ou algo diferente aconteceu? No momento, ele se sentia preso em uma história onde ansiava o próximo capítulo urgentemente.
– Estava com ciúmes – Natsu ri ao olhar Gray – Ciúme de um pirralho semihumano. Talvez o principal motivo de ter negado tanto o meu envolvimento com você, ter sido contra tudo que te envolvesse, foi esse. – Seus olhos focam em mim – Eu não pensei muito, aquilo tudo veio muito rápido. Em um minuto eu estava na minha moto cuidando seu pai sair e no outro, eu já estava com Layla em minhas mãos, porque ela estava te defendendo.
Gray prende a respiração pelo o que estava por vir. Natsu não disse quantos anos ele tinha quando isso aconteceu, mas temia que fosse na época daquela fotografia pendurada na parede, onde, logo depois, Layla morrera. Com a demora do rosado, o moreno toma a iniciativa para seguir o assunto.
– Você...
– Quase a matei, mas o choro de vocês me tirou do torpor, de alguma forma. Layla pedia para que se acalmassem, que iria ficar tudo bem e que ela daria um jeito. – Natsu passa as mãos no seu rosto e apoia os cotovelos nos joelhos, curvando-se – Foi a primeira vez que uma humana conseguiu me dominar, porque depois daquilo, eu parei de sufocá-la e não consegui fazer mais nada. Não sei se foi os olhos firmes ou se sua extrema confiança nas próprias palavras a tornaram tão... inabalável. Acredite, eu ainda me lembro de como as duas crianças agarravam-se uma na outra.
– O que aconteceu depois?
– Bom, eu fiquei preso em uma das armadilhas. – Ele dá de ombros – A casa era cheia delas. Você deve ter visto seu pai desviar muitas vezes dos caminhos, provavelmente para não cair em uma. Layla a quebrou para que eu pudesse ir embora, sem questionar se seria seguro fazer isso. Afinal, eu poderia matá-los.
– Você foi embora? – Gray parece não acreditar nas palavras que o demônio experiente lhe diz. – Logo você?
– Desculpa se a minha história foi mais simples do que imaginou, mas é, fui embora. Voltei algumas vezes e sabia que Layla tinha conhecimento da minha presença. Creio que isso nunca chegou aos ouvidos de Jude ou de Silver. Ela realmente confiava que não voltaria a tentar aquilo. As mulheres Heartfilia são perigosas, não é? – Ri sem de fato, achar graça.
– Então você já sabia quem Lucy era desde o começo – Gray diz as palavras lentamente, avaliando as reações do demônio a sua frente.
– Não, apenas descobri com o passar do tempo. Eu sei que vocês tinham um cheiro diferente, porque eram crianças inocentes, almas recém adquiridas. Embora hoje eu saiba da extrema semelhança entre Layla e Lucy, eu tinha me esquecido. Ela me deixou totalmente extasiado desde a primeira vez.
– Que romântico – Gray termina, finalmente, sua maçã.
– E como qualquer história da vida real, deu em nada. – Natsu levanta-se, ignorando o fato de que Gray o encarava boquiaberto. Afinal, ele não negara o romantismo – O dia está nascendo, precisamos dar um jeito nisso aqui. Meu nariz tá entrando em colapso.
Assim como o assunto veio, ele se foi, mostrando a instabilidade do próprio rosado. Ele parecia perdido aos olhos do moreno e Natsu realmente sentia-se assim. Não mentira quando disse que o sangue das garotas era ótimo, mas a cada nova vítima, perguntava-se se ela seria aquela capaz de fazê-lo desejar ardentemente outra coisa, que não fosse Lucy.
Lucy, Igreja Carmesin – Subsolo, uma semana depois
Tusso quando a borra do café atinge minha garganta. Sinto uma enorme saudade do café da universidade e até mesmo aquele que eu sempre deixava queimar no meu apartamento. Em comparação, o café feito aqui é totalmente desleixado, porque sempre possuem coisas mais “importantes” a fazer do que um simples café (aliás, isso serve para não se tornar um vício, uma coisa que a igreja adora ir contra).
Viro-me rapidamente para retornar ao meu quarto e bato contra um corpo rijo. A caneca em minha mão cai em câmera lenta, espatifando-se no chão e quebrando em vários pedaços. Os olhares acusadores permanecem sobre mim por alguns segundos, mas parecem ser horas. Meu estômago se revolta e ergo a cabeça para encarar em quem havia esbarrado.
Claro, a sorte esqueceu que eu existo, mesmo que meu nome tenha vindo de “lucky”.
Erza só lança um olhar indiferente para mim e segue seu caminho, enquanto fico no meu lugar. Engulo em seco e respiro fundo, sentindo uma leve tontura. A pressão que ela colocou sobre meus ombros depois das coisas que aconteceram me deixaram muito deprimida, além de ter desenvolvido um ódio próprio maior do que o recomendado.
– Você precisa andar pra que eu possa pegar café também – A voz masculina está atrás de mim e reconheço-a imediatamente – Ou pretende burlar as regras e tomar pra si todo esse aparato pra tomar café no seu quarto, sem precisar sair e esbarrar com seus subordinados?
Dou um passo para o lado e coloco o cabelo para trás da orelha, envergonhada por tais palavras. Evito encarar Jellal, mesmo que ele tenha sido bem mais gentil do que a ruiva em relação a mim. Abaixo-me para juntar o que restou da caneca e vejo mãos grandes e calejadas me ajudarem. O cabelo azul tapa seus olhos e de certa forma agradeço por isso; não queria ser pega olhando-o.
– Você tem outra?
– O quê? – Franzo a testa, sem entender o que ele quis dizer.
– Caneca – Jellal coloca seus cacos no lixo, onde despejo os meus também.
– Ah ... – Balanço a cabeça em negativa e dou um sorriso fraco – Aqui não.
– Posso emprestar uma das minhas – Ele fala lentamente, como quem calcula o que fala em seguida – Mas não a quebre.
– Se eu roubar a meia onde eles passam esse café... – Falo ironicamente, olhando o filtro e seu suporte – ... não precisarei levar sustos com a Erza.
– Bom, eu também não iria gostar de ter aquele olhar pra mim – O sorriso dele acalma meus nervos. Infelizmente, ando desconfiada com a gentileza das pessoas.
– Ela não vai ficar brava por você estar conversando comigo?
– Você é a minha líder – Jellal empurra-me levemente para que deixemos outra pessoa pegar o café, guiando-me entre as mesas de pedra – A única que me aceitou depois dela. De certa forma, ela entende que eu teria empatia por você.
Paro com a última frase. Estamos subindo para o jardim da Igreja, nos fundos, antes que me desse por conta. Os olhos dele encaram-me enquanto bebe seu café, totalmente relaxado com o fato de estar com a líder traidora que sua quase namorada odeia. Por essa última frase, que não compreendo, olho-o como se estivesse louco.
– Empatia?
– Você está sendo tratada como traidora, mesmo que seja dentro do nosso pequeno grupo – Ele da de ombros. – A diferença é que eu sou tratado por toda Carmesim.
– Então está com pena.
– Estou com raiva pelas coisas que aconteceram, mas depois de pensar um pouco e deixar de lado o posicionamento de Erza, percebi que você agiu como qualquer humana que foi pega de guarda baixa com essa história de carregar o fardo dos líderes. Mesmo assim, agiu como caçadora e nos guiou da maneira que achou melhor. Acho que não teríamos sido tão felizes se fosse de outra maneira.
Fico encarando-o por um longo tempo. Já havia passado uma semana desde o incidente e parecia que nada havia melhorado. Cana e Wendy conversavam comigo casualmente, já que entendiam parte da confusão mental em que me meti, embora ainda estivessem chateadas. Gajeel andava mais fora do subsolo do que qualquer outro e tínhamos o casal que não era um casal – Jellal e Erza – que não aparentavam querer que eu existisse.
– Entendi – Começo a rir, sem graça e nervosa com o que minha mente estava formulando aos poucos. – Você está brigado com a Erza.
Jellal para a caneca no meio do caminho, surpreso com o que eu acabara de dizer. Ele balança a cabeça e desvia o olhar, soltando um riso tão nervoso quanto o meu. Agora sim, fazia sentido ele estar falando comigo.
– Não, porque...
– Você falou o que pensa e ela ficou puta – Coloco as mãos na cintura, inclinando-me para frente, provocando-o a se confessar.
– Ok, isso aconteceu. – Ele suspira pesadamente.
– Agora faz sentido você estar aqui conversando comigo e porque aquele olhar mais do que matador pra cima de mim que ela lançou. – Semicerro os olhos – Ela deve estar achando que sou uma desgraçada que fez sua cabeça.
Jellal finalmente relaxa. Seus ombros caem e seus lábios não tremem tanto quando sorri. Talvez o jeito que agi o tenha desarmado, não sei. O azulado deveria ser um dos sete mistérios da Igreja Carmesim, já que seus olhos não transmitiam nada do que pensava. Tenho muita dificuldade para conversar com ele por conta disso, de forma que estou sempre tensa em acabar brigando com o rapaz.
– Na verdade, estou usando um pouco você – Ele inclina a cabeça – Para fortalecer meu ponto e fazê-la ver que está errada e eu, certo.
– Homens... – Solto uma risada curta e sigo caminhando. Ouço os passos de Jellal atrás de mim.
– Homens? – Ele fala incrédulo – Mulheres são muito mais complicadas. Fazem tempestade num copo d’água.
– Ahammmm – Balanço a cabeça e recebo a brisa do amanhecer sobre o rosto. Respiro profundamente, sentindo o aroma das flores do jardim. – Fala isso para sua namorada e volte vivo, depois conversamos.
Jellal ri mais uma vez, parando ao meu lado. Pelo canto de olho, percebo que está a encarar o céu, que muda do azul escuro para o alaranjado rapidamente, para depois, tons rosas e azuis claros. Não consigo visualizar a marca que possui em seu rosto, tendo apenas o lado livre das agressões da Igreja. O homem ao meu lado era diferente do que eu via normalmente, como se estivesse livre do peso que carregava ou, talvez, fosse o homem que realmente era quando fosse tratado como um igual, não traidor.
– Tenha paciência com ela, Lucy – O canto de seu lábio curva-se num sorriso singelo – É cabeça dura, explosiva e cheia de raiva, mas é uma pessoa de bom coração. Só está com medo de perder quem ama. – Ao olhar para mim, percebo o brilho que possui no olhar ao falar de Erza – Nós somos o que restamos para ela, então entenda o medo que ela carrega.
Não sei o que dizer depois desse pedido. Medo? Erza não parece ser o tipo de pessoa capaz de sentir algo do gênero, tão primitivo. Porém, nunca havia parado para notar que ela é humana, como eu, que nasceu em um ambiente amoroso até que lhe fosse arrancado pela hostilidade da vida. A casca dela é grossa, mas é apenas isso: uma casca. Quão frágil ela deve ser por dentro, não sei, mas creio que devo respeitar isso mais do que ninguém.
Erza é, definitivamente, alguém que deve ser protegida desse sentimento tão banal quanto a dor de perder pessoas queridas, novamente.
Jellal me deixou sozinha logo depois que o dia realmente nasceu. Sentei no banco que havia abaixo da cerejeira, que largava suas folhas por todo lado. Lembro-me de ouvir dizer que existem os dois tipos de pessoa: as que viam beleza nessa árvore majestosa e as que pensavam na sujeira que ela faz ao passar dos dias. Pensando agora, não sei definir exatamente qual delas sou, ficando ainda mais chateada. Nem algo simples como isso consigo decidir sem ficar indecisa.
– Acho que já me acostumei com essa sua aparência solitária que clama por pena.
Viro meu rosto para encará-lo com desgosto pelo comentário, achando um sorriso torto que causava marcas de expressão. Silver para perto de mim, com as mãos no manto negro que trajava, olhando, agora, para as folhas que caiam com o vento. Estende sua mão e pega uma das folhas, esmagando-a em seguida. Ironicamente, penso em como nós, humanos, não passamos de folhas nas mãos desses demônios.
– Já parou de sentir pena de si mesma? – Os olhos acinzentados ainda encaram seu punho – Ou terei que dar um jeito nisso?
– Não perca seu tempo – Suspiro, colocando os braços para trás, apoiando-os no banco – Isso tá sendo bom para formar a nova Lucy caçadora.
– Uh – A voz brincalhona de Silver lembra-me de como gostava das provocações que ele fazia quando eu era menor – A menina está crescendo. – Olhando-o, percebo secar uma lágrima falsa do seu olho.
– Vocês choram? – Ergo uma sobrancelha, chamando a atenção do moreno para mim.
– Sou o rei do drama – Ele senta-se ao meu lado, com o sorriso grande – Com quem acha que Natsu aprendeu?
A citação desse nome faz meu corpo tremer. O sorriso de Silver diminui gradativamente, percebendo que não deveria ter falado tão cedo do rosado. Ou era apenas uma parte da sua encenação, não sei dizer. De qualquer forma, ele solta um suspiro pesado e apoia seus braços em suas pernas, inclinado para frente. Junta uma mão na outra, apertando ora uma, ora outra. Ele está pensando no que deve dizer.
– Eu sei que você foi um grande pai na maior parte das vezes, mas não precisa agir como um agora – Falo baixo – Não preciso de palavras acolhedoras.
Um riso seco mostra-me que estava errada ao achar que esse era o motivo de sua quietude. O moreno coça a barba rala, deixando-me ansiosa para saber o que está passando pela sua cabeça. Quando finalmente sua boca se abre e seus olhos prendem os meus, ele fala:
– Achei que tinha lhe ensinado a controlar os sentimentos que saem de você.
– Pensou tanto para me criticar? – Largo a frase com certa raiva e fecho os olhos com força, querendo concentrar para que nada mais vaze até ele.
– Só queria provocá-la mesmo, uma brincadeirinha antes de começar um assunto mais sério.
Ele chama minha atenção. Silver não costuma ser um cara definitivamente sério, pois está sempre levando tudo na brincadeira ou provocando outras pessoas para que se irritassem com ele. Sempre foi assim, mesmo que antes eu não soubesse que esse seu lado era tão persistente e presente. Espero por mais sermões, palavras duras, algum xingamento pelas minhas últimas atitudes, evitando encarar meus subordinados... mas nada disso parecia ser o conteúdo da conversa, uma vez que seus olhos adquiriram um brilho mais escuro.
– Acho que você deve ter estranhado aquele primeiro encontro comigo e com o seu pai, num mesmo ambiente, onde eu disse que te conhecia mais do que ele mesmo. – Sua voz é rouca, mas firme – Quando fingi não conhecê-lo.
– Estranhei, mas dada as circunstâncias, achei que vocês apenas fingiam não se conhecer por causa da Ordem.
– A Ordem sempre soube da nossa proximidade. Jude, na verdade, cuidava de Mika quando estava comigo. Quando ela engravidou, ele foi designado a cuidá-la de mim e do bebê, mesmo relutante e cabeça dura, se apegou a nós. – As lembranças parecem incomoda-lo – Jude me ajudou quando mais precisei, quando todos aqui foram contra quem eu era e quem tinha tornado a filha de Purehito. – Absorvo todos aqueles detalhes, sem saber exatamente onde queria chegar – Graças a ele, consegui que meu filho nascesse e Mika continuasse viva, mesmo em estado vegetativo.
Abro minha boca para enchê-lo de perguntas sobre a morte de Mika, pois, na verdade, para mim ela sempre esteve morta. Saber que ela viveu depois do nascimento de Gray deixou-me surpresa e precisava saber como, exatamente, meu pai ajudou. Pelo visto, Silver não tinha e nem estava perto de terminar.
– Ele avisou-me que poderia evitar que ela morresse de tanto sangrar se a congelasse. – O moreno engole em seco.
– Co-congelar? – Enquanto ele aparenta estar recompondo-se de alguma raiva interna, já que seus braços agora tremem, continuo – Porque não deu seu sangue para que ela pudesse recompor-se?
– Gray nasceu no solo dessa Igreja. Não estava perto de Mika no momento que ele saiu dela. Ouvia os gritos, o coração forte do garoto quando nasceu e a fraqueza que ela estava adquirindo pouco a pouco. Eles não me deixaram ficar com ela porque sabiam que isso poderia acontecer e Purehito preferia que ela morresse a ter mais do meu sangue.
Uma raiva descontrolada nasce junto com a incredulidade. Meus olhos estão arregalados, encarando o chão. Meus pensamentos estão a mil, tentando entender o porquê dessa história agora, de tanta revelação sobre tudo. Quero saber mais e Silver continua sem que eu peça.
– Jude sussurrou para que eu fizesse um encantamento rápido e foi o que fiz. – Olho para o demônio ao meu lado, vendo seus olhos perdidos em lembranças e o sorriso travesso em seus lábios – Os caçadores se revoltaram, tentaram quebrar o gelo, mas não conseguiram. Prenderam-na em algum lugar que apenas Purehito sabe. – Seus olhos focam em mim – Acredite, eu procurei por tudo e torturei muita gente para saber, mas nada.
Ele fica em silêncio, recomponde-se. Nunca tinha o visto tão fragilizado com seus sentimentos. Silver não aparentava ser um demônio, mas sim um homem que amava demais sua mulher e não conseguiu despedir-se dela.
– Enfim, me deixaram ter Gray por motivos egoístas da própria Ordem, mas isso não é o principal motivo para eu estar lhe contando isso. – Outra pausa demorada – Você nasceu logo em seguida e como estávamos todos muito envolvidos, Jude, Layla e eu, vivemos perto um do outro sob a desculpa de que “estavam de olho em mim”. – Um sorriso sarcástico e um suspiro cansado saem dele. – Você não está nem um pouco curiosa pra saber o que aconteceu com a minha amizade com Jude?
Devido a tantas voltas que minha cabeça estava dando, eu me sentia tonta. Não, nunca havia entendido os acontecimentos de fato, mas também nunca havia pensado profundamente sobre isso. Acabei acreditando que, depois da morte de minha mãe, acabaram afastando-se até que não passavam de vizinhos que possuíam filhos amigos. Mas tudo isso está errado, o passado possui uma mancha negra da qual só irei me livrar com a história que estava me contando. Pouco a pouco, um medo toma conta da minha curiosidade.
– Layla morreu em meus braços, totalmente dilacerada por alguém como eu, um demônio. – Silver engole em seco – Jude ainda acredita que perdi o controle depois de tanto tempo sem beber e, por ter sua mãe sempre por perto, acreditou que ela foi vítima desse demônio que sou. Não estou dizendo para acreditar em mim, faça se quiser e pergunte para seu pai sobre a história, mas o fato é que eu cheguei tarde demais. – Silver olha suas mãos. Eu conseguia sentir o quão impotente ele se tornou com essas lembranças – Morreu escondendo vocês dois. Mesmo que eu tenha tentado dar meu sangue a ela e, então, trazê-la de volta a consciência, foi tarde de mais. Seu pai me viu ensanguentado com o sangue da sua mãe e concluiu o óbvio: que eu havia matado Layla Heartfilia.
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