“Tenho contado os dias. Cada hora, minuto e segundo. Eles têm passado cada vez mais devagar, eu dou mais por eles desde que fiquei sem companhia. Desde que deixaste de ligar. Desde aquela última vez em que brincámos no parque perto das montanhas, quando apanhámos aquele besouro e tentámos assustar a Eri com ele, lembras-te? Nunca percebi por que razão essa foi a última vez. Ou talvez... Tenha tentado convencer-me de que ela não era possível de ter acontecido, propositadamente, da tua parte.
Sabes, eu chorei naquele dia. Vinha triste ao sair de casa, depois de a minha mãe ser presa e de toda aquela confusão com os vizinhos à minha volta, a minha tia-avó, irmã do meu avô, tinha ido parar ao hospital. Fui vê-la logo de manhã com ele, mas os médicos tinham-nos dado poucas esperanças. Eu fui um homem para dar-lhe força, não deitei uma lágrima sequer durante todo o tempo. Mas, à saída, não suportei mais. Só consegui chorar de regresso a casa. Parei assim que passei à tua porta, decidido a esquecer um pouco o assunto enquanto estivéssemos a brincar, como acontecia todas as tardes. Coisa que, desde esse mesmo dia, nunca mais aconteceu.
Lembro-me bem das palavras que ouvi da boca da tua mãe. Estava prestes a bater à porta, tinha posto um sorriso nos lábios para poder receber-te mal abrisses ao ouvir-me chamar-te do outro lado. Nem isso consegui fazer... Não fui capaz.
- Tens de parar de ver o Kaito. Se queres ter um futuro... Tens de te dar com as pessoas certas e ele não é uma delas.
A notícia já tinha corrido a cidade em peso. Eu imaginava que não fosse tardar, mas... Na minha ingenuidade, nunca tivera em conta que seria eu, na altura apenas uma criança, a pagar por um erro que a minha mãe havia cometido. Não me entrava na ideia que, conhecendo-a, a maioria das pessoas lhe virasse as costas como havia feito, ou simplesmente, achasse que ela não era mais que uma reles criminosa. Muito menos que seria a tua mãe a fazê-lo. Mas, mais grave ainda... Nada me levaria a acreditar que a ouvisses e obedecesses, sem ao menos questionar, porque... No meu entender, na minha ideia... Nós éramos amigos, não éramos? Nós dois? Os melhores amigos?
Talvez não.
Lembro-me de ter saído a correr da porta de tua casa. A Eri vinha a chegar com o teu pai, mas eu consegui esgueirar-me a tempo de nenhum deles me ver até conseguir deixar o recinto da casa, correndo para passar o portão principal. Era a maior casa da cidade, era fácil contornar o jardim para a deixar sem ser visto. Ainda mais sendo um miúdo de estatura pequena, como eu era na altura.
Voltei para as montanhas. Tropecei umas duas vezes enquanto me debatia entre lágrimas para chegar à nossa base. A cabana perto do carvalho grande e velho, a mesma que havíamos construído com a ajuda do meu avô nas primeiras semanas em que traváramos amizade, lembras-te? Não acredito que ainda te recordes dela... Não parecia ser grande coisa ao lado do que estavas habituado mesmo. Era pobre e sem graça, feita de canas e ramos grandes. Para mim, era como um castelo. Uma fortaleza onde podíamos brincar e fantasiar ser o que quiséssemos. Uma fortaleza que eu construíra com a ajuda do meu herói... Na companhia do primeiro amigo que alguma vez tivera. Senão o único.
Essa cabana... Ela já não existe. Foi simplesmente desfeita por uma tempestade nessa noite. Nem a propósito.
Entretanto... Os anos têm passado...
Continuamos a ver-nos, diariamente. Frequentamos o mesmo liceu, apesar de estarmos em turmas separadas. Tens... Amigos novos. Passas por mim todos os dias na companhia deles à chegada ou durante os intervalos e, simplesmente, viras a cara como se nem ao menos soubesses o meu nome. Eu continuo a ser o parvo que te cumprimenta, mesmo sem obter qualquer resposta da tua parte. Continuo a procurar-te no recinto do pátio, a cada pausa nas aulas. Continuo à espera que um dia te recordes de mim. Que devolvas as minhas chamadas porque eu sei que não mudaste de número e sabes que sou eu quem liga, no Natal ou no teu aniversário. Sabes que nunca me esqueci. Nunca me hei-de esquecer. Que nenhuma data me passa despercebida no que te diz respeito.
Mas... Talvez um dia me canse de esperar. Talvez... Resolva parar de agir como um stalker... Resolva meter na minha cabeça que já não és o mesmo miúdo que conheci, há seis anos atrás. Talvez eu simplesmente faça contigo o mesmo que fizeste comigo naquela altura. Fá-lo-ia, se ao menos fosse capaz. Se não me tivesse magoado tanto. Se não me tivesse marcado como marcou, a fundo no peito. Se não tivesses sido a primeira e única pessoa que se aproximou de mim, mesmo eu sendo esquisito e tendo mau aspecto aos olhos de toda a gente. Acho que se as coisas não fossem dessa forma... Talvez eu já tivesse mudado de ideias.
Mas acontece que eu sempre fui meio burro mesmo.”
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