Charlotte
Meia noite e pouco de terça-feira e meu coração continuava batendo fortemente mesmo duas horas tendo se passado. Há algum tempo atrás eu acreditava que me unir a uma Alcateia faria-me sentir amarrada, acorrentada, mas o sentimento era completamente diferente; eu me senti, sim, amarrada, porém, não da forma negativa como supunha. O que vivenciei foi a sensação de estar completa... Nunca senti nada igual.
Quando acordei daquele mundo espiritual, todos os lobos ficaram muito contentes, até mesmo o Alpha estava com um sorriso satisfeito e sincero. Estava bem mais leve, a cerimônia fez tanto eu quanto ele relaxarmos depois do ocorrido no Prédio de Questionamento – e realmente precisávamos de tranquilidade depois daquilo. Ainda extasiados, nos transformamos e corremos pela floresta para aproveitarmos ao máximo esse momento especial; Jenny nos acompanhou também, voando um tanto afastada. Ora e outra provocávamos uns aos outros com mordidas e empurrões, sempre na brincadeira enquanto acelerávamos sem rumo pela mata. Tais lembranças deixavam-me nas nuvens, hoje fora um dia do qual jamais esquecerei.
Após nossa longa corrida pela floresta, fomos a uma pizzaria comemorar. E haja dinheiro para pagar a conta, o estômago de alguns parecia não ter fundo, porém não tornou a noite menos agradável. Compartilharam suas experiências na cerimônia, cada uma de um jeito e algumas rendendo risadas; foi muito bom esse pequeno tempo, reunidos. Quando a comemoração acabou e conversaram sobre o que seria feito nos próximos dias, todos foram para suas casas, porém o Alpha quis que eu ficasse para dialogarmos melhor.
“ – Confesso... – Comecei, após a saída dos demais e encarando e esfregando a boca de meu copo, anteriormente preenchido com suco de melancia, relativamente vazio. – Não esperava vivenciar tudo isso um dia; A indução, aquele mundo vazio... Foi uma coisa única.
– Ninguém nunca está preparado para tudo, é normal. E fico contente em saber que sua primeira experiência foi tão boa assim. – Dei uma risada abafada com a última frase do lobo. Provavelmente acreditou que eu iria voltar completamente perdida daquele “mundo”, ou ter achado a sensação muito bizarra, mas foi bem pelo contrário. E não apenas minha parte humana gostou, bem como a Lupina também, e isso era o que mais me surpreendia até agora.
‘Sim, gostei mesmo. Pode ir lá e denunciar. ’
– Só uma coisa... – Voltei minha atenção à Malkovich, que mantinha seus olhos no prato vazio e, bem em seguida, encarou-me como se estivesse arrependido de algo. Fiquei bem confusa no início, mas a curiosidade bateu e fiquei quieta para que ele dissesse o motivo. – Quero me desculpar pela... Visão que você teve do fim que dei a Scott. Não é algo que alguém deva ver na vida.
– Não foi incômodo algum assistir aquela cena. Bem o contrário, na verdade. – Tomei o resto de meu suco em um gole com um meio sorriso. Apesar de sua ultima frase ser generalizada, não sei se ele é o tipo de pessoa que acredita que mulheres não devam ver coisas tão brutais e que devam ser preservadas, e, honestamente, espero que não seja. Ninguém merece um Alpha tratando uma loba de sua Alcateia como uma boneca de porcelana.
– Mas não só isso, – Prosseguiu, após entrelaçar seus próprios dedos e apoiar suas mãos na mesa. – eu queria agradecer por ter me ajudado a me acalmar naquela hora. Normalmente meu lobo e eu somos equilibrados, mas estava tão transtornado, em ponto de erupção, que, se você não tivesse me “acordado”, teria destruído tudo o que encontrava naquele lugar.
– Eu entendo bem como é ficar prestes a explodir. E, também, foi o máximo que pude fazer, até porque não seria uma boa ideia pedir para você, naquele estado, se acalmar.
Andrew riu um pouco sem jeito, talvez por, justamente, ser verdade. De toda forma, sua reação para com Scott – especialmente na última provocação – foi extremamente violenta, teria sido até pior se eu não tivesse trazido o lupino de volta à tona, como o próprio contou-me. E isso só confirmou minha suspeita de que o loiro oxigenado, de fato, fizera algo horrível com ele – possivelmente tendo a ver com a primeira matilha do Alpha, por isso se nega a contar-me.
Por mais que eu fique um pouco curiosa, não irei insistir no assunto. Eu respeito o espaço dele, principalmente por se tratar de algo complicado e difícil de falar, coisa que compreendo bem. Independente disto, estávamos começando a nos dar um pouco melhor se comparado há alguns dias atrás, porém, aonde isto vai dar, é uma incógnita. ”
Apesar da plenitude em meu peito e estar de volta em casa, não poderia ficar voando em meus pensamentos a noite inteira, mesmo estando ótimo ficar no mundo da lua. Havia duas coisas que precisava fazer e não passaria nem mais um minuto sem resolvê-las. Levantei-me parcialmente, sentei em minha cama e peguei meu celular que estava carregando em cima do criado-mudo e disquei o número de Turner, contudo ele não atendeu e tive que ligar mais duas vezes até ele me responder a chamada.
– Alô? – Seu tom e sua respiração pesada mostravam claramente cansaço e frustração, ou ele estava dormindo ou ocupado com algo importante e o atrapalhei bem na hora H.
– Desculpe incomodá-lo nessa hora tão sagrada, Turner, mas preciso falar com o senhor sobre minha última falta no trabalho. – Minhas desculpas foram furadas, apenas uma formalidade para que ele colaborasse já que não tinha gostado nem um pouco da interrupção.
– Um amigo seu já justificou, e era justamente sobre isso que queria falar com você hoje mais tarde. – Meus olhos se arregalaram a fala do homem, não estava gostando desse rumo e do suspense que fazia. – Lembra da equipe que chamei para consertar o sistema do computador que registra tudo? Bem, aconteceu um... Pequeno problema...
– Que tipo de problema? Dependendo do que for, posso dar um jeito pra você.
– Obrigado pela iniciativa, mas o diretor da TECC já tomou as providências. Contei a ele sobre essa equipe que chamei para o próximo sábado, mas ele não gostou muito por não ser uma empresa nada conhecida. Falei que não tínhamos de nos preocupar, pois, às vezes, empresas pequenas eram tão boas quanto as grandes; sem falar que a que contratei era doze vezes mais barata que a maioria, eu seria um otário se não os chamasse! Mas o Sr. Winslow queria uma prova, então liguei para eles. Toda vez que eu ligava, tocava uma mensagem dizendo que o número de telefone não existia, testei tanto no fixo quanto no celular e ambos caíam na mesma mensagem. O nervosismo bateu e fui discando os outros números do cartão deles nos dois telefones, mas o único que funcionou era de uma barbearia... Até procurei na internet para ver se encontrava algo, talvez até o email, mas todos os resultados encontrados não eram deles. O Diretor ficou furioso comigo, especialmente por eu ter pagado 200 dólares adiantados... Pense no meu desespero!
‘Nisso que dá ir pelo mais barato. ’
Quase não segurei o riso, meu chefe tem a fama de sempre optar pelo barato. Se estivessem vendendo um quite para dois anos de equipamento de natação por só 150 dólares, ele sairia comprando e ganharia várias pessoas furiosas com boias furadas, óculos de mergulho arranhados e por aí vai – não é à toa que alguns funcionários o chamam de Julius entre si.
– Tá por um fio com o patrão... Mas o que isso tem a ver no meu emprego? – Fui direto ao que interessava, deixando de lado as zombarias de minha loba.
– Ele me deu um prazo de 48 horas para resolver o problema dos computadores e 24 horas para devolver o dinheiro perdido. Já resolvi ambos – mesmo que o bolso esteja doendo até agora –, um dos técnicos voltou das férias que fez uma mão pra mim, mas disse que não ia voltar mais; vai embora para o interior cuidar dos pais. Eu estava procurando um temporário para ficar no lugar dele, até que me lembrei de você.
– Entendi. Bom, eu topo. Quando começo? – Respondi-o, apressada. Turner estava dando voltas nas palavras quando poderia ter dito tudo de uma forma bem mais curta e direta. Não tenho paciência para enrolações, nunca tive e nunca terei.
– Dia 2, segunda-feira agora. É no segundo andar na sala B, não tem como errar. – Alguém está aprendendo a responder, enfim. Combinei de encontrá-lo hoje mais tarde para falarmos melhor a respeito e encerrei a ligação, um pouco mais relaxada. Ao menos minha situação financeira estava tranquila, agora só restava fazer uma coisa.
Disquei o número de minha amiga Transmorfo e esperei ela atender enquanto coçava a ponta dos dedos com o polegar da mesma mão. Hoje estava muito elétrica, não sei se é porque sou assim de natureza ou se é algum efeito da cerimônia de indução – ou um combo dos dois. Além de que, em situações que quero resolver rapidamente, prefiro ligar a mandar mensagem, senão só penso nisso a noite inteira e não consigo dormir. Para minha sorte, Jenny, diferentemente de Mitchell Turner, atendeu prontamente.
– Oi Lotte, por que me ligou a essa hora? – Pelo tom cansado e um tanto lento que sua voz carregava, certamente acabei de acordá-la, o que era totalmente plausível, pois foi direto para casa após falarmos um pouco logo que terminara de correr com meus irmãos lobos. A loira-avermelhada já demonstrara cansaço naquela hora, por conta disso não a impedi de ir relaxar em sua morada e fui comemorar com eles.
– Queria combinar de almoçarmos juntas hoje mais tarde, tem umas coisas que precisamos conversar, sabe? Já que não tivemos muito tempo na cerimônia. – Forcei um tom alheio em minha voz e coloquei um pouco de bom humor, não demais para ela não desconfiar de minhas reais intenções.
Não estava mentindo, porém não estava dizendo a verdade. Precisava, sim, vê-la e conversar, mas não sobre um assunto qualquer como a experiência que tive no rito de passagem; tinha plena certeza que, se eu fosse sincera sobre o motivo da futura discussão antes da hora, ela me enrolaria de todas as formas possíveis a fim de convencer-me a desistir – palavra que não existe no meu vocabulário. Precisava encurralá-la para tirar as respostas que ansiava, por isso necessitava que ela acreditasse que minhas ideias eram outras.
– Claro, pode ser. No Johann’s? – Ela não me parecia muito convencida, o que seria um problema para resolver, contudo era um mero detalhe. Consegui convencê-la a almoçar comigo, um bom passo já dado. Fiz um “Uh-hum” em concordância para confirmar. – Fechou. Te vejo amanhã, boa noite.
– Pra você também.
Assim, desliguei o celular e olhei o quanto restava de bateria – setenta e três por cento. Como havia bastante, apenas o deixei em cima do criado-mudo e deitei em minha cama sem cobrir-me. Minha mente estava a mil, parecia que não dormiria por mais que me esforçasse. Encarei o teto e as pequenas faixas de luz que vinham da janela por um bom tempo e nada. Minha ansiedade somada à curiosidade em saber o que Jeanneth escondia impossibilitava qualquer tentativa minha de descansar. Precisava de minhas energias para o resto do dia, pressentia que necessitaria muito delas, então fiz um esforço para fechar os olhos e acalmar meu coração, virando-me para o lado esquerdo – sempre adormecia nessa posição. Com o tempo, finalmente o manto do sono aconchegou-se sobre mim e permitiu-me adentrar o mundo dos sonhos e recompor minhas forças.
~X~X~X~
Meu sono parecera diferente esta noite, mais leve e rejuvenescedor. Pode ser pela entrada na Alcateia, ela me causou tantas sensações boas que não deveria ser surpresa afetar meu descanso. Acordara mais disposta, mais carregada, como se todo o peso e energias negativas tivessem se esvaído enquanto dormia. Os últimos dias têm sido bem estressantes – tirando o momento em que fiquei no mundo espiritual na cerimônia e a corrida com meus irmãos –, um repouso desses me fizera muito bem.
Encontrava-me com meu chefe no momento, estávamos perto do horário de almoço e as piscinas que monitoro estavam para fechar para o intervalo, então não haveria problema começarmos a discutir sobre todo o planejamento de minhas aulas na nova turma. Usava uma blusa azul turquesa simples com mangas até meus ombros, calça jeans escura e tamanco preto com tiras cruzadas da Constance; não gosto de usar salto, porém havia momentos em que precisava manter a formalidade, então apelava para este tipo de calçado.
Na conversa também se encontrava o tal técnico que iria sair; se chamava Marlon King Tannot. Ele era bem mais velho se comparado a mim, deveria ter seus trinta anos; loiro de olhos ocres e dono de 1,88 de altura, cabelos médios – não a ponto de amarrar em um rabo de cavalo – e um cavanhaque quase ruivo bem feito, tinha de admitir que ele era um homem bastante conservado e atraente.
Ao final da discussão, combinamos de Tannot passar os conteúdos e dar-me uma base amanhã, e eu concordei apenas para encerrarmos a conversa logo, pois, além de já ter captado tudo, tinha de ir ao Johann’s encontrar minha amiga e não gostava de atrasar-me demais. Pedi licença para meu chefe e despedi-me deles educadamente, pegando minha querida mochila no chão em seguida e encaminhei-me para fora da TECC. O pequeno restaurante onde iria encontrar a Transmorfo não era muito longe de onde trabalho, logo, eu posso ir até lá andando tranquilamente. Mas nem sempre tudo acontece como queremos, não é mesmo? A voz veemente de Tannot chamando por mim impediu-me de continuar meu caminho, para variar. Pensei que tínhamos encerrado o assunto, porém, aparentemente, me enganei. Virei-me para ele, o encarando com uma sobrancelha arqueada, um meio sorriso de canto e uma expressão um tanto quanto tediosa, perguntando-lhe – através de meu rosto – o que queria.
– Pode esperar um pouco? Você saiu de lá tão rápido que não mal pude terminar de combinar tudo para amanhã.
– Eu sei, adoraria conversar mais a respeito e acertar tudo, mas realmente preciso ir. Por isso encerrei a conversa por lá mesmo, agora, se me der licença... – Meu tom sugeria uma urgência de forma quase gritante.
– Mas pra que tanta pressa? – Ele está começando a me incomodar com tamanha insistência, sinceramente. Inspirei fundo, canalizando esse pequeno stress para o canto mais escuro de minha consciência e deixá-lo lá até desaparecer. Não vou deixar isso me importunar, especialmente hoje.
– É um assunto meu, nem esquente sua cabeça tentando saber, não vale a pena.
– Eu só quero entender o motivo disto porque preciso me organizar. Estou com muita coisa pra fazer essa semana com a mudança, mas com você sempre tão de lá pra cá que mal dá atenção ao próprio trabalho, não tem como acertar nada! – Minha única reação foi balançar a cabeça negativamente para evitar comentários piores. Eu tentei ficar tranquila, mas esse cara pediu...
– Pra começar, eu sou uma pessoa muito ocupada, você não me conhece para afirmar que eu não dou atenção pro meu trabalho. E segundo: você não tem que se intrometer no que eu faço ou deixo de fazer.
– Jura? – Seu meio sorriso irônico e indignado foi motivo suficiente para fazer-me bufar pesadamente, sem tirar meus olhos dos seus orbes ocres. Meu dia estava tão bom, podia muito bem ter continuado como estava, para variar um pouco. – Não sei se reparou, mas é grossa com todos ao seu redor; até com o Mitchell. Me impressiona ele ser tão paciente com você, que já o destratou inúmeras vezes na maior cara de pau. O mundo não vai respeitar as suas vontades, tenha um mínimo de educação.
– Anda me observando? Quem pediu sua opinião? – Incrédula e já alterada, não contive o descontentamento e toda a irritação em minha voz. Tannot queria estragar minha manhã a todo custo, só podia ser. Não havia outra explicação para vir me acusando disso. Sei que não sou a simpatia em pessoa, mas aí já é demais.
– Não dependo da permissão dos outros para dizer o que penso. – Meu desgosto por ele após essa frase se tornou palpável, e não escondi isto nem em meu rosto. Qualquer um que nos visse poderia perceber a negatividade pairando sobre nós. A imagem que tinha dele estava indo de mal a pior. – E não estou te observando, não é necessário pra ver o quanto falta com respeito com muitos daqui. Eu já vi pessoas se afundando na fossa ou mesmo por imaturidade, então, leve como um conselho, ok, Senhorita Murray?
Quis tanto dar na cara dele, mas tanto...! Só não dei um murro para não me prejudicar. Apesar de não haver crueldade – ou qualquer coisa relacionada – exalando de seus sentimentos nas palavras proferidas até esse instante, não justificava sua grosseria e má educação. Acima de tudo, sou uma colega de trabalho, nada mais do que isso. Nós dois devemo-nos respeito mútuo e, da minha parte nisto, tentei o que pude para manter as coisas numa boa. Ele não estava nem aí para minha reação e sequer cogitava conter sua opinião, o que tivesse para dizer, falaria na cara dura sem pensar duas vezes, e mal sabe ele que esse tipo de jogo é feito para dois. Mas, como tinha um compromisso mais urgente, precisava encerrar o assunto sem mais conflito, caso contrário ficaríamos o dia inteiro discutindo.
– Tenho o turno da tarde nas piscinas ainda hoje e planos para a noite, mas quarta-feira chegarei por volta das seis da manhã. Teremos um bom tempo para falar do programa, pode ser? – Marlon apenas meneou a cabeça junto de um suspiro curto e pesado, enfim entrando em acordo. Estava tão farto quanto eu, podia sentir sua vontade e ansiedade de sair de perto de mim para evitar mais incômodo. – Até mais, Tannot.
Deixei-o lá sem mais enrolação, estava atrasada e não queria perder muitos segundos mais. As pessoas dizem que sou paranoica com horário e pontualidade, falam que não preciso me preocupar tanto com algo repleto de instabilidade. Penso diferente. Não é paranoia – a meu ver, não é –, simplesmente me coloco no lugar do indivíduo, e, assim como sei que eu não iria gostar de ficar esperando, sei que a pessoa não vai gostar; vai reclamar de mim e irei me perturbar por nada. Basicamente, cuido meu horário para não haver problemas com a outra pessoa, não por pontualidade. Logo que cheguei, pude vê-la pela vitrine mexendo em seu celular e adentrei o estabelecimento, atraindo a atenção e um pequeno sorriso da Transmorfo com minha chegada. Sentei-me na cadeira a sua frente e ajeitei minha mochila no chão, ao mesmo tempo em que Jenny guardava seu celular.
– Atrasou, mas não tem problema. Sei como é. – Comentou, bem humorada e sem preocupação, o que me fez desconfiar.
Ela não odiava atrasos, mas se preocupava bastante – ainda mais se tratando de mim –, o que me fez ponderar as razões que poderiam explicar sua estranha serenidade. Sem tardar, um garçom ruivo com sardas e olhos cor de avelã veio até nós, trazendo consigo uma jarra de vidro contendo, o que me parecia ser, suco natural de melancia e serviu o copo de minha amiga.
– Pode deixar a jarra. – O ruivo acenou positivamente com a cabeça e fez o que ela lhe pediu, ambos me olhando no instante seguinte com um ar de indagação. – Vai pedir algo?
– Um suco de manga. Se não tiver, pode ser de laranja. – O homem apenas respondeu-me um “certo” com educação e um sorriso leve e se dirigiu à cozinha. Aproveitei esse tempo para analisar Jenny melhor e tentar ver qualquer cheiro que pudesse me dar uma pista de sua calmaria distinta do normal, e claro que ela percebeu que estava sendo encarada. Fiz questão de esclarecer o motivo, pois, como a própria já sabe, não sou de fazer rodeios. Especialmente em algo que provoca-me interesse. – Você parece diferente...
– E estamos. – Arregalei um pouco meus olhos e estreitei as sobrancelhas, sua voz ganhou um timbre “duplo”, por assim dizer. Era como se sua voz original e uma mais aguda e estridente saíssem de sua garganta ao mesmo tempo, só entendi o real significado disto quando pus meus olhos nos seus; cor de mel com pequenas pontas mais claras, lembrando o dourado.
– Oh! Meus parabéns. – Dei um sorriso sincero no qual me fora retribuído na hora.
Jenny já dera sinais que em breve teria a Sincronia desde o último sábado, fico feliz por ter alcançado isso. Ela é muito apegada ao seu falcão, sem contar que esse fenômeno significa muito para sua espécie – É considerada uma honra, praticamente. Sem demora, o garçom voltou com meu suco de manga e, logo que tomei uns goles daquela bebida deliciosa e refrescante, encarei a Thompson com mais seriedade. Iria tirar sua alegria, porém, o que precisava saber era mais importante no momento.
– Mudando o assunto... O que tanto esconde de mim?
A loira-acobreada quase cuspiu o líquido em sua boca com o susto levado de minha pergunta nada indiscreta, tal ato aumentou minha curiosidade. Comprimiu os lábios e balançou a cabeça em negação, como se não quisesse acreditar na minha persistência no assunto. Jeanneth me conhece bem, tem plena consciência de que nunca deixaria um segredo de lado, principalmente quando este fez com que Anthony e ela ficassem nervosos a ponto de para me impedir de descobrir a qualquer custo. Ignorar seria estupidez da minha parte.
– Não me olhe com essa cara, eu sei que é algo importante sobre mim. Não pode me poupar desse direito mesmo se for “para o meu próprio bem”.
Ela olhou para várias direções aleatórias, imersa em pensamentos e em, possivelmente, um conflito interno. Sempre contávamos praticamente tudo uma para a outra, quase éramos confidentes. Minha amiga nunca gostou de mentiras, acredita que, por mais que a verdade possa doer, é melhor do que alimentar esperanças e ilusões com mentiras que, uma hora ou outra, cairão. Seja lá o que esteja guardando, é muito sério, pois nunca a vi ser contra o seu próprio ideal antes. A loira respirou fundo, cerrando, com suavidade, seus olhos azuis e concentrando-os em mim, posteriormente. Sua decisão foi tomada.
– Está bem, você vai saber de um jeito ou de outro mesmo. Só quero que me prometa que vai manter a calma acima de tudo.
– Ok, eu prometo. Conta logo.
– Bem, eu... – A Transmorfo encarava-me com receio, temia minha reação mesmo com a promessa feita. De fato, era um assunto sério, então, para tranquilizá-la e, assim, fazer com que prossiga, expressei minha neutralidade. Muito embora algo me dissesse que não duraria por muito tempo. – Encontrei um dos membros daquela Alcateia clandestina conversando com o Matthew sobre você.
Sabia que era algo grave, eu tinha certeza. Nesse instante, já não havia mais como manter a calma, logo de cara veio uma bomba. Como Matthew pôde fazer isso e desde quando ele tinha contato com aqueles... Argh! Estou com tanta raiva e nojo disto que nem encontro palavras para descrevê-los. Segurei-me ao máximo para não gritar ou fazer qualquer coisa estúpida como normalmente faço, mas, desta vez, estava sendo bem mais complicado. Minha loba interior rosnava com vigor, tão brava quanto eu. Cerrei minhas mãos e comprimi meus lábios com certa força em reflexo do turbilhão de emoções que invadiu-me como um soco no estômago. Também fechei meus olhos – certamente mudados para as Safiras de minha loba –, buscando algum pingo de tranquilidade dentro de mim.
– Você disse que se controlaria. – A voz suave e repreensiva de minha amiga trouxe-me de volta à realidade. Seu olhar e rosto pareciam o de uma mãe nada satisfeita com a postura de seu filho, e os braços cruzados favoreciam-na no ar que transmitia. Quero muito me acalmar, mas é uma tarefa difícil para mim.
‘Eu estou tão brava quanto você, Lotte, mas... Vamos fazer um esforço de verdade desta vez. Eu quero ouvir tudo o que ela tem para nos contar. ’
Minha loba falou com força na voz e realizando algumas pausas e respirações curtas, contendo sua ira e tentando esvaí-la a cada expiração. De toda forma, estava certa... Jeanneth não contou nem metade da história, não mesmo. Necessito saber o resto. Com um pouco de força de vontade e contando mentalmente até dez o mais devagar possível, aos poucos meu coração serenou. Geralmente contaria até vinte, porém, mudei um pouco minha técnica desde a última vez que a utilizei. Não somente conto até um número, eu mentalizo o que me faz bem, na tentativa de acalmar meu espírito – o que provou funcionar. Por fim, voltei a encará-la com um pouco de tranquilidade.
– Continua...
Apesar do que me fora contado, mantive a calma acima de tudo. Pelo menos, superficialmente. Por dentro, meu coração e alma queimavam como um incêndio se alastrando pelos campos, destruindo tudo a sua volta em quem quer que cruze seu caminho. Usaria tal fúria em Matthew se pudesse, mas arriscar uma briga com mais de quarenta Transmorfos não vale a pena – Além de que preciso dele vivo. Só não conseguia entender como minha amiga, uma pessoa gentil e sincera, foi sair do saco de um homem inescrupuloso e compartilha o sangue de outro tão podre quanto. É... A vida é curiosa mesmo nos pequenos aspectos e difícil de lidar e entender, e só compreendemos seu propósito quando partimos. E, certamente, como e porquê Jeanneth foi cair nesta família é algo que jamais entenderei mesmo na minha própria morte.
– Ser um filho da puta escroto está nos genes do seu pai? Porque não é possível alguém ser tão baixo assim...!
Quebrei o silencio que se sobrepôs após concluir tudo o que tinha para me dizer, e notei sua expressão mudar para uma um tanto quanto triste e frustrada ao mesmo tempo. Talvez fosse pela minha afirmação em si, ou por ser verdade. Independente disto, ela não tem culpa de ser filha daquele crápula, afinal, ninguém escolhe de quem vai nascer. A pior parte para ela, provavelmente, devia ser a ligação e o afeto e, com isto, decidi amenizar as coisas.
– Eu sei que isso deixa qualquer um aborrecido, mas você sabe que sangue é uma corrente para toda a vida, queiramos ou não. – A loira concordou silenciosamente. Ela até iria falar algo, mas prossegui antes que pudesse fazê-lo. Tenho mais a acrescentar e irei até o fim. – Eu não aceitava o Carl como meu pai de verdade por ter matado a minha mãe, você sabe. Mas... Bem no fundo – por mais que refutasse a ideia –, eu sabia que ele nunca deixaria de ser a pessoa que me colocou no mundo e isto me fazia odiá-lo ainda mais, e até a mim mesma por ser... Parte dele. – Hesitei por uns instantes. Era um tanto complicado de falar, contudo, segui em frente. – Porém, se há uma certeza que tenho, é que não importa de onde ou de quem viemos, o que importa é o que fazemos de nós mesmos. Você, Raymond e Kyle são exemplos disto; apesar de eu achar o irmão do meio um serzinho muito irritante.
Sua risada doce trouxe um sorriso sincero ao meu rosto. Vê-la bem me fazia sentir melhor, nunca gostei de ver alguém, que me é querido, machucado. Sou uma loba com muitos defeitos, não tenho porquê negar, mas se tenho uma qualidade de que me orgulho, é esta. Sempre ajudo as pessoas que significam para mim. E reconheço que ultimamente tenho sido bem egoísta em minhas atitudes por conta da vingança e da questão – já resolvida – da Alcateia, mas quero compensar isto. Não por dívida, e, sim, por reconhecimento e carinho. Ela e Tony, apesar de tudo o que passamos, estiveram comigo quando mais precisei; nunca me abandonaram mesmo nas maiores turbulências de nossa amizade – onde testei, inúmeras vezes, a paciência de ambos.
– Obrigada... – Seus olhos levemente lacrimejados transmitiam felicidade e gratidão, nunca pensei que algo que saísse de minha boca pudesse dar certo. Que bom que funcionou desta vez. – Com quem aprendeu a usar as palavras com mais sabedoria? Definitivamente não foi sozinha.
– Heheh! Acho que com você mesmo. Quase sempre soube o que dizer quando eu estava mal e buscava me fazer melhor, mesmo com as brigas e tudo o mais. – Um sorriso envergonhado tomou o seu rosto no lugar do anterior junto de um leve e quase imperceptível rubor nas bochechas, dando um ar até fofo, eu diria. Contudo, mais uma vez, iria atrapalhar sua alegria; Por mais que minha vontade fosse continuar fazendo-a se sentir melhor, precisava prosseguir com os assuntos. – Erm... O Matthew... Ao menos, disse para onde foram? – Perguntei, ganhando um olhar de indignação da loira-acobreada.
– Sabia... – O revirar de seus olhos azuis dizia tudo, até preparei-me mentalmente para o sermão que viria em seguida. – Não acredito que ainda pensa em matá-los... Charlotte, já acabou! Você está em uma Alcateia agora, precisa esquecer o passado!
– Você ainda não entendeu... Isadora pagou o preço por um erro que foi meu. Não foi justo com ela... Eu preciso quitar isso! – Exaltei-me sem querer, segurando as lágrimas que teimavam sair. Se eu pudesse esquecer-me da fonte dos meus pesadelos, fá-lo-ia com prazer. As lembranças daquela noite de 2010 doíam-me como punhais recém saídos da brasa atravessando meu coração, eu só não deixava nem mesmo um único resquício de memória deles de lado por causa dela... – O que fizeram não tem perdão, não vou desistir até fazer justiça! Nada e nem ninguém vai me impedir de dar o troco naqueles assassinos, nem mesmo meu Alpha. E você, mais do que qualquer um, entende que não há o que me faça parar, Jeanneth. Eu sei que quer o meu bem e não quer que eu me machuque, eu agradeço muito sua preocupação com meu bem estar, mas pense bem! Sozinha, acabei com uma parte da matilha dele, imagina agora que os números estão reduzidos? As chances daquele maldito estão menores ainda.
– Lotte, isso é maluquice! Você quase morreu da ultima vez!
– Quando havia mais lobos, agora restam apenas três, sem contar o Lionel. Desta vez vai ser diferente, estou convicta disso. – Persisti, firme em minha decisão. Não terei paz e nem mesmo poderei dar o real descanso para minha irmã até que cumpra minha promessa. – Se souber para onde foram, me diga. Posso pegá-los de surpresa e dar um fim nisso sem nem perceberem! Eu tenho que terminar o que comecei...
–... Você não vai desistir mesmo, não é? – Não respondi, pois ela sabia o que eu diria. Não havia necessidade de uma confirmação. – Sendo assim, não tenho outra opção... Vou com você.
Meus olhos saltariam do meu rosto se pudessem. Ela disse isso mesmo? Minha única sobrancelha erguida e minha expressão de confusão falavam por mim, não esperava ouvir tais palavras saírem da boca de Jenny, e tudo o que recebi de volta foi uma risada curta e um balançar de ombros da Transmorfo, como quem acha até graça por não ter opção em um momento como este, antes de continuar:
– Desde o começo nunca conseguimos te fazer mudar de ideia. Já vi que não posso te deter, mas não vou deixar que faça isso sozinha, ou vai acabar se matando. É a pessoa mais cabeça-dura que conheço e a mais inconsequente também.
– Muito obrigada, seus elogios me comovem. – Pus a mão acima do peito e curvei minha cabeça em um sarcasmo leve e sem maldade, sendo retribuída da mesma forma pela mulher à minha frente. Gostava desses momentos em que mergulhávamos na ironia, era divertido e, por quase não ocorrer, aproveitava cada instante. Entretanto, por hora, me focarei exclusivamente no que importa, mas não neste lugar. As paredes têm ouvidos. – Me acompanhe, aqui não é o melhor lugar para planejarmos isto.
Assim, terminamos nossas bebidas, cada uma pagou sua conta e saímos do Johann’s, caminhando rumo ao banco de madeira branco da praça que havia a uma quadra dali. Os humanos quase não vão lá, preferem mofar em um sofá jogando vídeo-game, assistindo televisão ou mexendo no celular. Por um lado era bom, tendo em vista a necessidade de falarmos em particular neste momento, por outro, dava pena. Tanta coisa boa aqui fora, tanto para fazer, e a maioria não aproveita.
‘Miss reflexão, acho que já deu por hoje. ’ Muito obrigada, atrapalhou minha narração, loba. ‘De nada. ’
– Certo, partiremos essa noite e...
– Melhor não. – Jeanneth cortou-me sem mais nem menos, deixando-me indignada, a princípio, pela interrupção, mas deixei-a continuar. Se fez isso, foi por ter algo importante a acrescentar. E mesmo minha loba desgostando da atitude, cedeu pela curiosidade. – Não acha muito inconveniente você mal entrar numa Alcateia e já começar a fazer suas loucuras? Sair por aí à própria sorte em busca daqueles lobos em menos de vinte e quatro horas após a Indução? Seu Alpha não é burro, Lotte. E você muito menos para pular logo de cara sem planejamento algum.
Como estava de bom humor e nossa relação estava mais amena se comparada aos dias anteriores, antes de tudo, parei para pensar e pude ver sentido em seu raciocínio. Ela estava certa, e não foi por orgulho quebrado, nem nada do gênero, que confessei. Justo agora que entrei em uma matilha, seria uma estupidez enorme agir desta forma logo no início, especialmente se Anthony contou ao Alpha sobre meus planos de vingança. Estava sendo impulsiva mais uma vez, caminhando em uma estrada sem olhar para os dois lados. Eu posso ser Dominante, teimosa, cabeça-dura e ter mais duzentos e dez defeitos, mas burra a ponto de cometer o mesmo erro duas vezes? Isto não.
‘E eu não duvido que ele tenha dado uma de X-9. ’
– Pois é, sabe que é verdade. Além do mais, temos nossos trabalhos e você já faltou um dia.
– Ok! Eu entendi. – Exclamei, apressada e um pouco frustrada pela insistência dela no assunto, e dei seguimento a conversa. – Vamos numa sexta-feira à noite, os caçaremos no fim de semana, porém, temos dois problemas: meu Alpha e Anthony. – Comprimi meus lábios, pensando em como faríamos tamanha proeza. Tony já me conhece bem o suficiente para saber minhas intenções por trás de qualquer desculpa, o que dificultava bastante. Já Malkovich... Eu não o conheço muito bem – quase nada –, mas sei que ele está sempre atento tudo a sua volta para que nada escape aos seus sentidos. Uma qualidade respeitável, porém, perigosa para meus planos.
– Precisamos bolar uma mentira, inventar que vamos passar o fim de semana juntas. Assim, só precisará pedir permissão ao Alpha. – Comentou sem encarar-me diretamente nos olhos e com a mão cerrada em punho cobrindo sua boca, buscando quaisquer ideias. Senti-me na obrigação de alertá-la previamente, assim o fiz.
– Ele vai querer saber o que faremos. Se eu inventar qualquer coisa, ele saberá que não é verdade. E se apenas falar por cima, sem me aprofundar, ele vai desconfiar.
Permanecemos quietas por alguns instantes, imersas em nossas mentes a procura de uma solução. Não é fácil criar um esquema onde seus obstáculos podem saber facilmente que você está mentindo ou usando uma habilidade para ocultar suas intenções, precisávamos elaborar tudo com o máximo de cuidado possível para não sermos pegas. Se é para fazer uma vingança bem feita, cada parte do plano tem que ser muito bem trabalhada. É minha última chance de acabar com essa história de uma vez por todas e seguir com a minha vida em paz, não posso falhar de novo. Não vou falhar de novo.
– Lobos sentem o cheiro até em mensagens? – Indagou-me, o que me fez refletir por poucos segundos para ter certeza total, e, sem demora, respondi-a sem dúvida alguma.
– Não, não sentimos. Sempre senti o cheiro de algo apenas estando em um contato próximo com a pessoa, não senti nada durante as vezes que falávamos no Messenger. Claro, depende muito da capacidade do Lobo. Alguns são sensoriais melhores que outros. Eu nunca conheci nenhum lobisomem com capacidade sensorial avançada, mas não creio que chegue ao ponto de captarem as intenções até em mensagens de texto.
– E, provavelmente, um grande perito com os sentidos está no Maine. Duvido que o seu Letum deixe um lobo ou loba com uma capacidade tão boa de fora da Alcateia dele, Haha!
Ri junto com ela. De fato, eu não duvidava que existisse algum lobo com sentidos excelentes na Alcateia do Maine, pois, como ela própria mencionou, o Letum não deixaria alguém tão habilidoso de fora do seu alcance. Encerramos as risadas não muito tempo depois para, enfim, darmos seguimento ao plano.
– Bom, então, é só combinar por mensagem com ele que ficará tudo certo. Espero... – Murmurou, insegura com relação ao meu Alpha. Dou razão a ela, pois mesmo não podendo sentir minhas intenções pelas mensagens de texto, pelo pouco que conheço do homem, ele não será nada fácil de enganar. Preciso agir com muita cautela. – Agora, sobre o Anthony.
– E seus pais? Não vão querer saber aonde vai? Podem estragar tudo! – Interrompi-a, preocupada. Os pais de Jenny, se não soubessem da nossa “viagem”, poderiam ser a confirmação para Tony, ou mesmo para Andrew, de que mentimos. Não quero arriscar nada nesse plano.
– Eu já sou adulta, tenho uma boa liberdade com eles apesar das regras. Vou apenas avisá-los por telefone que vou passar o final de semana com você, assim não haverá problemas.
– Você tem certeza disso?
– Absoluta. – Sua voz saiu forte e decidida, parecia ter certeza de sua escolha. Eu, por outro lado, tinha minhas dúvidas, mas estava mais tranquila por ter a garantia de que ela iria informá-los da nossa saída. Assim, deixei-a continuar. – Já o Anthony... Ele sabe sobre minha habilidade, será mais complicado fazê-lo acreditar caso suspeite de algo – e ele vai.
– Espero que seja uma ótima atriz, pois vai ter que encenar muito bem. – Essa ideia veio como uma luz em minha mente, e, para mim, fazia sentido. Já que o lobinho sabe que ela pode enganar pelo cheiro, basta ela construir a situação e conversar tudo de um jeito que seus sentimentos, intenções e tudo o mais, pareçam reais. Não era a ideia do ano, mas era a melhor chance que tínhamos. Olhei em meu relógio no pulso esquerdo para certificar-me de que não havia passado do horário de almoço, não podia mais perder pontos com Mitchell. Ainda bem que chequei, faltavam poucos minutos para acabar. – O horário de almoço está quase no fim, quando acabar o seu expediente vá até minha casa para treinarmos a sua performance.
Não perdemos mais tempo após minhas palavras finais. Levantamo-nos do banco de madeira e nos despedimos com um abraço curto, porém, terno. Estava feliz de estar me dando melhor com minha amiga, e darei ainda mais de mim para que possa compensar minhas atitudes passadas. Especialmente agora que ela está totalmente disposta a correr um risco por mim, nada mais justo.
~X~X~X~
Lionel
As turbulências e paradas do ônibus atrasaram a viagem, causando a mim e a todos um grande desgosto e indignação por tantas complicações mal resolvidas. Adam deveria estar tão exasperado quanto eu e os demais, durante os dois dias mexia os pés, inquieto, e ficou de braços cruzados, tapeando apressadamente seu bíceps. Já Bradley e Ronald, dormiram como pedras, nem se preocuparam com as complicações do trajeto.
Ao menos conseguimos chegar a Salt Lake City ao cair da noite, facilitando para minha companheira. Aguardávamos os demais no hotel combinado enquanto meus lobos foram vasculhar o local para ver se não tinha uma Alcateia ou mesmo solitários presentes. Estava ansioso, não via a hora de ter o sangue da loba maldita em minhas mãos.
Não apenas eles, mas minha companheira também verificava a cidade a procura de sinais de clãs vampiros ou mesmo de bruxas. Não queremos surpresas outra vez. Acreditei fielmente que em Lewiston poderia ficar em paz com minha Alcateia, mas, vejam só, o mundo dá voltas, não? O mais engraçado – e irônico, também – era que isso tudo só aconteceu porque a subestimei no passado. Estava com as costas abertas, toda mordida e arranhada, metade do rosto comprometido, e, por ser uma garota, não acreditei que pudesse sobreviver. Mas conseguiu...
‘Aquela menina pode ser tudo, menos fraca. ’ Concordei silenciosamente com ele. Desprezo a fêmea completamente, mas sua garra em vencer uma batalha contra a morte é inquestionável. Ouso dizer, admirável.
Fui completamente tirado de meus devaneios quando senti meu celular vibrar em meu bolso, instantaneamente peguei-o e, logo que vi quem era no identificador de chamada, atendi rapidamente. Era Noah, o lobo que cuidava do restante de minha Alcateia e de minha filha. De primeira não tinha entendido o motivo da chamada, até pensei que já estavam quase chegando aqui, mas não. Dei um tapa na testa quando falou que havia perdido o endereço do hotel onde havia me hospedado, vê se eu posso...
Assim que repassei o endereço e encerrei a ligação, fui ao banheiro me lavar. O cômodo era simples, um 4x4 básico. A parede tinha de um tom verde-água bem fraco e o piso branco, e havia dois porta-toalhas – um na parede negra semitransparente do Box e outro na parede ao lado da pia branca de granito com gavetas negras suspensa e presa à parede –, um porta papel higiênico do lado do próprio vaso sanitário também branco e um pequeno armário com três portas feito de carvalho pregado à parede, mas o meio servia apenas para portar o espelho oval.
Apenas fiquei no hotel para garantir pessoalmente a chegada dos demais membros da matilha e, especialmente, da minha garotinha e por ser o único com dinheiro o bastante para pagar a hospedagem de todos, graças às minhas reservas de trabalhos passados. Se não fosse por isso, teria feito a patrulha junto com eles, eu não gosto de ficar parado, coçando o saco. Um Alpha que se preze não depende exclusivamente de seus lobos para mantê-lo, ele participa ativamente. Esta foi a única exceção, e, também, a última.
Tirei minha roupa e mergulhei para debaixo do chuveiro, precisava dar um jeito de tirar toda essa tensão do meu corpo. Ser um líder tem seus pontos positivos e negativos, mas o desgaste é sempre a parte mais complicada de se lidar – juntamente com as decisões. Eu nunca escolhi isso, todas as minhas atitudes tornaram-me o que sou hoje, não posso mais voltar atrás. Assim como o que está morto, não pode morrer, o que está feito, não pode ser desfeito. Não sei quanto tempo se passou até concluir minha ducha, apenas sei que foi o bastante para relaxar meu corpo e tranquilizar-me por inteiro.
Saí de lá já pegando a toalha em seu devido lugar, cobrindo-me da cintura para baixo. Era verão, e, mesmo sendo de noite, estava fazendo calor, não me importava com o frio. Tirei o vapor do espelho e, por puro instinto, encarei-me fixamente. Fazia dias que não cortava a barba, estava um pouco cheia nas laterais e mais curta no queixo – em redor do mesmo, também. Olheiras gritantes, expressão cansada... Realmente, os últimos dias pesaram muito – não há como ficar bem depois dos acontecidos.
Fui vestindo-me no automático, minha mente estava longe da terra. Não necessariamente em algo específico, mas em tudo. Tanto que, quando saí do banheiro, quase não reparei na presença de minha companheira, sentada na cama olhando meu celular. Quando eu penso demais, não presto atenção à minha volta, é um problema que tento tratar, contudo, é um desafio para mim.
– Noah de novo? – Respondi-lhe com um único gesto com a cabeça enquanto vestia minha camisa pólo azul-marinha. – O que foi dessa vez?
– Disse que chegam amanhã, mas que perdeu o endereço, então passei novamente. Nossa menina está bem, falei com ela pelo telefone. Noah cuidou dela o tempo todo, ela mesma contou. – Emma meneou a cabeça com um suspiro pesado, passando a mão pelos longos e ondulados cabelos castanhos.
– Ainda bem... – Um sorriso de alívio preencheu seu rosto, o que me fez sorrir também. Ela não aguentava mais ter de esperar para ter nossa pequena em seus braços de novo, eu mesmo sentia isso. – Dei uma boa volta pela cidade, até o momento não vi nenhum sinal de um clã vampiro aqui. Se nossos lobos não encontrarem nenhuma Alcateia, talvez finalmente possamos nos instalar.
– Não é uma boa ideia...
– Lionel... Estamos sempre andando de um lugar para o outro e entrando em território inimigo, seja de lobisomens ou de vampiros! Não podemos continuar assim, especialmente se queremos dar uma vida para a nossa filha! – Sua vontade era quase palpável, estava completamente farta das constantes viagens de cidade para cidade. Bem, que mãe não estaria, não é? Ainda assim, havia um bom motivo para não pararmos. Motivo que iria esclarecer mais uma vez para minha esposa.
– Não é que eu não queira, Emma, mas você se lembra do que aconteceu sempre que fizemos isso? – Sua raiva aos poucos murchou de seu rosto, transformando-se em frustração. Ela já sabia onde queria chegar com isto, entretanto, prossegui mesmo assim. – Chattanooga, Tennessee. Éramos vinte e oito na época e você tinha parido duas semanas antes. Seu antigo clã nos encontrou e ficamos em vinte. Em Branson, Missouri, sobrou apenas dezesseis. No Kansas até conseguimos despistá-los, porém, fomos obrigados a sair por conta dos humanos, e perdemos mais cinco quando fomos para Broken Bow em Oklahoma, onde seu clã nos achou outra vez. E agora, graças àquela vadia que eu devia ter deixado o Adam matar, estamos com oito membros...
Minha esposa notou minha ira e desgosto pela situação com muita facilidade, e creio que qualquer que me visse agora, deduzia isto ou algo parecido. Ela repousou sua mão sobre meu ombro e afagou com o polegar em uma tentativa de me tranquilizar, o que funcionava por diversas vezes, mas, nesta, não ajudou muito. O momento que vivíamos era muito delicado, muito grave. Como se não bastasse o Rômulo nos perseguindo, me vem uma loba sedenta por vingança, ameaçando não somente a minha vida, bem como a dos meus lobos e das duas pessoas que mais amo no mundo. Respirei fundo e fechei os olhos, contando silenciosamente até dez e mentalizando o máximo de coisas que me fazem bem para ajudar. Não posso permitir que nenhum dos dois faça mal a elas, não posso...
– Acredite, eu encontraria um território para nossa Alcateia ficar definitivamente se pudesse. Sabe bem que tudo o que eu quero é que possamos ficar em paz com nossa família, porém, com os Balthazar nos perseguindo, é impossível ficarmos em um mesmo lugar por muito tempo. – Reforcei, sentando-me ao seu lado e pegando seu rosto com as duas mãos, onde dei carícias suaves com os polegares. – E poderia ter sido pior, se quer saber. Se eu não tivesse divido a Alcateia e mandado nossa garotinha com os outros para Angel Fire enquanto fugíamos de um lugar para o outro, não teríamos despistado os Balthazar.
– Ainda assim, era um risco! – Minha mulher bradou, se afastando de mim na mesma hora, sem pensar duas vezes e tirou minhas mãos de seu rosto rapidamente. Não me surpreendi com esta reação, ela já teve piores no passado, essa nem de longe foi a mais bruta. – Rômulo e Eleanor poderiam ter mandado alguns vampiros deles para o Novo México enquanto os demais nos perseguiam! Se pegassem a minha bebezinha, eu nem sei o que faria...! – Emma quase não conseguiu pronunciar sua última frase, exalava raiva e medo ao mesmo tempo; de longe, essa foi sua atitude mais leve. No dia em que propus o esquema, ela surtou de verdade.
– Ei, ei... – Aproximei-me devagar dela e a abracei por trás, afagando seus cabelos.
Ouvi cada pequeno e contido soluço de seu choro silencioso... Sei que deveria sentir-me culpado, mas, no fundo, não me arrependo. Eu não queria deixar de jeito algum nossa filha, ainda pequena, ficar completamente sozinha com meus lobos e correndo o risco da tática não funcionar, mas não havia opção. Demos sorte nas demais vezes que escapamos, mas sorte é algo que acaba rápido, antes do que podemos imaginar...
– Foi exatamente por isso que deixei o Noah com eles para cuidar dela. Ele era um caçador quando humano, legal e ilegal. Ele usou uma tática que confunde qualquer rastreador, e, dispersando-se daquele jeito e se encontrando depois em Angel Fire, conseguiram enganar os vampiros, é graças a essas duas estratégias que nossa menininha está bem.
Virei-a para mim, cercando-a mais com meus braços. Ela está chateada comigo, eu sei disso. Nenhuma mãe quer entregar o filho à própria sorte sabendo que existem pessoas querendo o fim da sua criança. Mas e se ela estivesse conosco no dia em que aquela loba desgraçada nos atacou? Se ela tivesse matado a minha menina, eu teria enlouquecido. Pouco me importaria se um bando inteiro chegasse depois, só sairia de lá com ela morta.
Suas lágrimas já molhavam minha camisa, as mãos apertavam-me fortemente, buscando forças para suportar a distância. Fazia exatamente um ano e oito meses que estávamos separados dela, era uma situação difícil para nós dois, entretanto, alguém precisava manter a cabeça no lugar e ser o porto seguro do outro – tarefa pela qual sou encarregado. Segurei seu rosto com ambas as mãos, olhei diretamente em seus olhos vermelhos por conta do choro e limpei as lágrimas já caídas em suas bochechas com os polegares. Ela instantaneamente fechou os olhos e segurou meus pulsos, acarinhando-os com seus dedos finos, e, aos poucos, se acalmou.
– Só espero que isso acabe um dia... – Murmurou, ainda de olhos fechados e em um tom tão baixo que, se eu fosse humano, não teria escutado muito bem. Sentamo-nos de novo na beirada da cama e deixei-a recostar a cabeça em meu ombro, para deixá-la mais confortável. – Bom, ao menos manteremos o plano? Ou pretende voltar para Lewiston e se vingar da cadelinha?
– Se realmente esta cidade estiver limpa, manterei minha palavra de nos recompormos durante esses dias aqui. E sobre a cadela... – Hesitei por um instante com um longo suspiro. Emma não queria mais perder tempo com a loba, eu sentia isso emanando dela, mas meu anseio em acabar com a lupina se tornou muito mais do que justiça para mim. O assunto se tornou pessoal. – Eu quero muito dar uma lição que ela nunca vai esquecer, nem quando for para o Outro Lado. Ainda estou vendo o que farei ao certo, mas não abrirei disto. Vou lavar as minhas mãos com o sangue dela.
Fui completamente honesto em minhas palavras, tanto com ela quanto comigo mesmo. Eu tinha uma dívida com Henry e Joshua. Ambos morreram por mim naquela noite, eu devo isto a eles. Eu luto – e morro, se necessário – por meus lobos, e quando acontece o contrário, me sinto na obrigação de retribuir. Não no sentido negativo da palavra, é mais por mim mesmo. Enfim, melhor deixar esses pensamentos em um canto mais reservado de minha mente, tenho de ajudar a levantar um pouco mais o humor de minha companheira, não deixá-la assustada ou coisa do tipo.
– Mudando de assunto... – Ajeitei-me na cama e me virei de frente para ela, que, consequentemente, também desvencilhou-se de mim e encarou-me de fronte, quase no mesmo tempo. Reparando bem nela, já não estava mais tão para baixo, porém, não estava em seus cem por cento ainda. – Vi um cartaz no saguão do prédio, diz que haverá um evento nesse domingo; uma espécie de festival com fogos de artifício. Vai ter muita gente se embebedando, uma ótima oportunidade para você se alimentar direito e para os lobos ganharem uma “folga”.
– Hum... – Balbuciou, com um sorriso pequeno, porém, levemente devasso nos lábios. Alimentar-se do sangue de animais estava ajudando-a a se manter, contudo, não era forte o bastante para durar, por exemplo, uma semana inteira. Ela parara de se alimentar de humanos desde o ocorrido de dois anos atrás no Kansas.
‘Hoje em dia é difícil fazer alguma coisa sem que os humanos percebam e persigam. ’
– Eu gostei da ideia, mas cuidemos disto depois da chegada do restante dos lobisomens e após verificarmos essa cidade de cima a baixo. Não quero outra surpresa desagradável.
– Nunca disse o contrário...! – Apontei, sorrindo-lhe de volta. Seu estado de espírito estava melhorando, já não se encontrava tão tensa quanto a poucos minutos. Vendo-a bem desse jeito, não contive a vontade.
Beijei-a. Não um de forma ousada, cheio de desejo, e, sim, um beijo que dizia que, de certa forma, tudo ficaria bem. Que eu estou aqui e que ficarei ao seu lado em todas as horas. Emma significa isso, e muito mais, para mim, e pude sentir que tinha o mesmo valor para ela a cada toque suave e dedicado que trocava comigo. Finalizei com um selar de lábios e afaguei em sua nuca, pleno e repleto de energia em meu peito. Sempre me sinto bem quando estou ao lado dela, era incrível o poder que tinha sobre mim até hoje.
– Bem... – Minha esposa cortou o silêncio que se construiu entre nós, desviando o olhar por um mínimo segundo com as bochechas levemente ruborizadas, um pouco mexida, mas contente por isto. Levantou-se da cama e a acompanhei, indo em direção à porta devagar. – Vamos. Se quer ter certeza absoluta que essa cidade está livre de sobrenaturais, melhor se juntar aos outros. É como dizem: se quer uma coisa bem feita, tem que fazer você mesmo.
Não tiro sua razão. Noah e os demais provavelmente chegariam amanhã e não havia como errar o endereço, muito em breve estaria com minha garotinha nos braços de novo, depois de tanto tempo afastado. Com sorte, esta cidade estará realmente vazia de sobrenaturais, mas, apesar de tudo, meu problema não é com os que podem residir aqui. Temo pelos que vêm de fora...
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