"Não acredito que você comprou uma casa."
Joyce Byers ria, achando graça do quanto Jim Hopper fora feito pra cuidar de uma criança. Estavam ambos diante de uma sala de estar um pouco desarrumada, mas confortável. Eleven estava sentada em uma poltrona reclinável (que adorava sem nenhum motivo aparente) assistindo televisão, enquanto os dois adultos conversavam no canto do cômodo. Ela estava limpa, com os cabelos curtos presos por uma tiara, e tinha um vestido amarelo. Um banho certamente lhe fez bem.
"Tecnicamente, é um apartamento."
De fato era. O delegado havia comprado um pequeno apartamento no andar de cima de uma loja de penhores, cujo dono era um desses velhinhos simpáticos que abraçam uma causa adorável, como era o caso de Jim Hopper agindo como um pai para uma garotinha abandonada. Mas, convenhamos, quem não abraçaria? Jim nascera para isso, sabia disso. Infelizmente, o destino o fizera sofrer perdas terríveis no passado e, agora, sentia que estava pronto para seguir em frente. Aquela menininha era sua chance.
"Eu posso ajudá-lo no que precisar, Jim. Você o fez quando eu precisei."
Nós sabemos o quanto você deve estar torcendo pra que esses dois bobões fiquem juntos de uma vez. Acredite, nós sabemos. Só que, por mais que Jim Hopper e Joyce Byers tenham sido feitos um pro outro, este não era seu momento. Não se preocupe: este conto tem grandes planos pros dois únicos adultos de toda a cidade de Hawkins que sabiam das coisas.
"E qual é o plano?" — Byers perguntou, preocupada. — "Você talvez possa ser um ótimo pai, mas ela não está acostumada a ser uma criança."
"Vou começar a matriculando na escola municipal. Talvez a ajude a aprender o básico pra acompanhar o resto da turma. E partimos daí." — Hopper encarou a menina com carinho, mostrando um sorriso de canto de boca. — "É uma garota forte. Vai se adaptar. E como está Will?"
"Está bem. Pelo menos não tem mais pesadelos."
"Isso é ótimo."
Os dois se olharam, quietos, por alguns segundos.
"Obrigado pelas compras."
Jim desviou o olhar para a sacola trazida por ela em cima da mesa de madeira, com alguns itens necessários para passar a primeira noite com uma pré-adolescente. Joyce comprara pães, geléia, macarrão instantâneo e algumas besteiras, além do refrigerante de cola.
"Estou a um telefonema de distância."
A mãe de Will finalizou, tocando levemente o braço do delegado antes de deixá-los sozinhos. A porta se fechou atrás de si e, notando a confusão da garota ao assistir um trecho de Blade Runner — O Caçador de Andróides, perguntou:
"Está com fome?"
Eleven desviou a atenção do filme que falhava em entender e encarou Jim, com a expressão fechada. Um pequeno sorriso surgiu no cantinho de boca da garota, daqueles que é preciso ser um especialista em sorrisos e em garotinhas contentes para notar, e o adulto decidiu assumir aquilo como um sim.
"Eggos?"
Ela perguntou, curiosa. Jim riu.
"Acho que depois de tanto tempo, talvez você queira variar."
Aproximaram-se da mesa juntos e ele começou a organizar os itens, tirando os pães da sacola e agarrando os talheres que seriam necessários para preparar a refeição. Ela se sentou, paciente.
"Sabe, teremos que mudar algumas coisinhas pra você se adaptar melhor."
"Como o que?"
O delegado entregou o sanduíche de geleia para a menina, acompanhado com um copo de refrigerante. Ela começara a comer sem pestanejar.
"Bom, primeiro, seu nome."
Eleven mastigou e pensou ao mesmo tempo. Engoliu. Olhou diretamente para Jim e disse:
"Eu gosto. Mike me chama de El."
"Entendo. Então não mudaremos seu nome." — Coçou o topo da cabeça, agora sem o chapéu — "A segunda coisa é sobre seu dom. Todo o lance de mover objetos com a sua mente."
O sanduíche estava quase no fim, o que era inteiramente compreensível. Estamos falando de uma criança faminta que nunca havia provado geleia (na vida!). Ficamos surpresos por ter durado por todo esse diálogo, na verdade. Por isso, Hopper já preparava um segundo lanche.
"Acredito ser melhor que você não o use em público. Pode chamar atenção desnecessária."
Terminado o primeiro, o segundo lhe foi entregue. Os cantos da boca da garota estavam sujos, mas nenhum dos dois parecia se importar. Antes de começar a devorar o novo sanduíche, El murmurou:
"Meu poder machuca pessoas. Não quero mais usá-lo."
Jim sabia que não era bem assim. Como policial e amante de armas, entendia que um poder desses poderia ser usado para proteger pessoas, não machucá-las. Mas isso lhe seria explicado quando fosse mais velha, quando pudesse fazer escolhas conscientemente. Por enquanto, era melhor dessa maneira.
"Não vai precisar. Os homens maus se foram. Eu estou aqui."
Sua expressão não mudou ao passo que mastigava, mas Hopper notou como a tensão nos ombros dela diminuiu.
"Amanhã eu a levarei até a escola."
"Escola?"
Ele se esquecia como aquela criança estava fora do mundo que a circulava. Havia vivido tanto, mas tão pouco. Nunca havia frequentado uma escola (e sabemos que, apesar de parecer ótimo não ter que acordar cedo todos os dias para assistir aulas chatas, não é legal desconhecer o básico sobre o funcionamento das coisas), nunca havia ido a um parque de diversões, assistido um desenho engraçado, céus, não conhecia Star Wars! Tinha tanto pra ver, ouvir, sentir.
"É um lugar com mais crianças da sua idade. Seus amigos estarão lá."
Um sorriso genuíno finalmente apareceu no rosto da menina. Demorou, mas ali estava.
"Meus amigos?"
"Sim. Os meninos estudam lá."
Hopper arrumou a sala de jantar, guardando os restos na geladeira e no armário em cima da pia da cozinha. Não chegamos a dizer exatamente como era a nova casa de Eleven, não é? Era um apartamento como esses que se vê em filmes antigos, com móveis cor bege e um tocador de discos de vinil no canto de um dos cômodos. Está certo que o tocador era uma relíquia do delegado, que, falando nisso, não era ligado desde que a filha falecera, mas o lar de Jim Hopper não fugia muito do esperado. Uma sala de estar conectada à sala de jantar, uma cozinha relativamente pequena (e relativamente significa um pequenininho corredor, com pia debaixo de um armário, geladeira e fogão), dois quartos e um banheiro. Pra quem morava em um trailer, o apartamento certamente era uma melhora.
"Vamos, já está tarde. Está na hora de dormir."
Jim acompanhou Eleven até o banheiro, onde ensinou para a menina a importância de escovar os dentes depois de toda refeição. Depois, entregou um pijama azul claro e disse que dormiria melhor se vestisse aquilo. Como uma roupa ajuda alguém a dormir ela não sabia, mas decidiu confiar nele.
"Acordaremos cedo amanhã. Boa noite."
Ele esperou que ela deitasse para apagar as luzes. Não fechou a porta. Foi para o próprio quarto, deixando Eleven sozinha com seus pensamentos e os de mais ninguém. Não eram muitos, pra falar a verdade, já que só pensava em rever os amigos, Dustin, Lucas, Mike. Mike. Lembrou da promessa que ele tinha lhe feito, de que tudo ficaria bem e de como ela tinha dito que iria com ele ao baile, mesmo que não soubesse bem o que aquilo significava.
Mas sabia que era importante.
Rolou para o lado, segurando o travesseiro com a mão direita. Coberta até o pescoço, El fechou os olhos e sussurrou no escuro antes de cair no sono:
"Amigos nunca quebram promessas."
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