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História De luz e de sombras - O coração rachado de Ben


Escrita por: Ninlil

Notas do Autor


O anoitecer que se aproxima na coxilha não marca o fim de uma jornada, mas sim o início de uma caminhada na escuridão, e só os fortes verão o novo amanhecer.
Jairo Aguiar Pinheiro

Capítulo 32 - O coração rachado de Ben


Fanfic / Fanfiction De luz e de sombras - O coração rachado de Ben

As águas do mar cingiam a areia, em um vai e vem de pequenas ondas, desenhando a  praia oculta pelos rochedos.

 Rey se abaixou e colheu um punhado de areia molhada em sua mão direita. Areia que ela poderia moldar e transformar no que sua imaginação e habilidade fossem capazes. Uma casa... uma pequena vila com algumas construções...  um animalzinho...um boneco... um castelo... os grãos soltos, a areia a transformá-los, a lhe dar consistência para a adquirirem forma e expressão. Existência.

Sentou-se na areia e moldou o boneco com paciência, enquanto os raios da manhã nasciam, iluminando seu trabalho. Devagar, concentrada, criou um rapaz de areia, afinando-lhe os contornos com a firmeza de uma pequena concha côncava que o mar lhe trouxera, a gola do manto, o capuz encolhido atrás da cabeça, a faixa larga na cintura.

Em outros tempos, o material fora pano, enchimento, linha traçada pela agulha. Em Paideia. Em Jakku. Ela apertara aquele boneco com firmeza nessa época com carinho, orgulhosa de seu trabalho, suas mãos infantis. Ela o cingia com saudade indefinida e tristeza entre seus dedos adolescentes.

Agora se desmanchava em suas mãos quando o cingiu em seus dedos para senti-lo melhor, blocos disformes de areia úmida caindo de sua mão.

Não suspirou. Não chorou. Não sentiu a raiva... embora ela pudesse se encontrar submersa ou até diluída em todos aqueles grãos da praia... quieta, por enquanto.

Pôs-se de pé.

Passara a noite ali, no frio, aguardando o sol nascer para ela. Durante o silêncio e tranquilidade daquelas horas noturnas, suas lembranças antes ocultas se assentavam lentamente, absorvidas como a água na areia a cada onda que a atingia, em camadas mais profundas. Gradativamente,  guardavam-se em si mesma,  em um nível íntimo no qual  se aderiram a Rey. E isso era muito... bizarro, pois tais recordações já lhe pertenciam. Crescera com elas submersas. Não fizeram parte dos seus dias em Jakku. Haviam, sim, dado-lhe, de forma velada, estrutura para ser o que era e depois... presentes apenas nos pressentimentos, nos sentimentos confusos, na eterna espera de se revelarem, no vestíbulo de sua existência anterior e atual.

Igual às suas mãos agora, úmidas pela areia molhada, mas sem os grãos.

Como seria se as reminiscências tivessem sido suas companheiras ativas durante todos aqueles anos? Se ela soubesse de onde viera? Seria a Rey de um pouco antes de recuperá-las? Ela seria ela mesma? Ou teria agido e se desenvolvido de maneira totalmente diferente? Pois, enquanto ela, Rey, não possuíra um  passado, Ellin não tivera um futuro.

E o que era agora... não sabia.

Apanhou seu bastão que se encontrava deitado na areia seca, a alguns passos da água do mar. Era o bastão de sua mãe... o bastão que a acompanhara durante todos aqueles anos em Jakku, o único objeto de seu passado que Ben deixara com ela, quando ele a abandonou no planeta desértico. Estivera com algo de sua mãe ao seu lado naquele tempo sem memórias... todo aquele tempo... sem saber.

  Não se separara dele desde que se largara das mãos de seu pai, logo que toda a avalanche memorial se fez conhecida. Contudo, nem o bastão era mais o de sua mãe em sua integridade, pois fora desmontado e adaptado com duas empunhaduras, uma de cada lado, além do centro ter sido adulterado para receber o cristal roxo pontilhado de gotas amarelas em seu âmago.

O cristal do antigo sabre de Ben, rachado em seu interior.

O coração quebrado de Ben.

Retirou o cristal de seu bolso e o fitava, pensativa. O berço para ele já se encontrava pronto para acolhê-lo, o cerne do bastão, aguardando que fosse integrado à estrutura metálica e no emaranhado de fios e sensores através da Força. O bastão, naquele estágio, se achava amputado, um pedaço de um tipo de ferro sem mais uso. E a pedra púrpura, sem propósito, a não ser para ser apreciado.

Colocou o bastão na areia novamente, a testa franzida.

Inúteis... enquanto não unidos.

E, quando forem reunidos, transmutados em algo... novo.

Mesmo no silêncio de seus passos, ela o sentiu chegar, a essência dele própria a vibrar cada vez mais forte pela distância entre os dois sendo diminuída. Luke empurrou o capuz para trás, os raios do sol nascente batendo em sua face, revelando que não fora apenas sua filha que passara a noite acordada. A voz baixa dela lhe chegou seca, sem o calor da ira ou o tremor da tristeza.

- Não espere que eu caia em seus braços, pai.

- Não espero. – o tom era baixo também, porém aquecido de amor - Desejo que não se perca entre o que foi e o que poderia ter sido, filha.

- Lendo meus pensamentos... de novo.

- Não li. Eles vieram espontaneamente até mim.

- Uma resposta adequada a um mestre jedi.

- Uma resposta dada pelo seu pai.

Igual quando ela era uma criança, pensou, recordando de um dia específico em sua infância, quando brincaram entre sacos de farinha, ela e seu pai... com Rey, o furão, seu bichinho de estimação.

Aquela lembrança apertou seu coração em emoções contraditórias. Afastou-a com determinação da sua frente.

Baixou um muro em sua mente, guardando-se.

- E o que será para mim frente ao que ocorreu? O pai ou o mestre?

- O que preciso for para o seu melhor.

- Não seja meu pai... agora.

Luke empalideceu, muito embora já vislumbrasse uma reação de distância, ao menos nesse começo. O impacto para ela fora grande demais... e não lhe tirava razão . Aquelas palavras proferidas em uníssono, sem alterações o atingiu dolorosamente como pai,  e levantou um alerta como mestre.  Permaneceu em silêncio, no entanto. Quaisquer palavras dele naquele instante não seriam realmente escutadas por ela, sendo, apenas, munição para atacá-lo. Não se enganava com a aparente calma de sua filha, muito embora... aquela raiva e descontrole anteriormente demonstrados, antes de completarem sua viagem ao passado, pareciam não mais existir. Algo lhes tomava o lugar, algo que o peso do conhecimento trouxera consigo.

Rey soltou um profundo suspiro. Fácil seria se não o amasse... tanto! E ainda mais agora, com todas as razões conhecidas para amá-lo! Esse amor que brotara nela em cada dia de sua vida em função do carinho dele, do amor dele, do cuidado dele... até quando Ben nublou sua mente. Fácil seria se cada decisão que a levara até ali não se constituísse de intenções boas, de escolhas dentro do que fora possível e que desastrosamente haviam lhe tirado sua mãe, aprisionado Ben em uma situação estarrecedora e, em efeito dominó, seu próprio exílio em Jakku.

As ações pretéritas dele ainda repercutiriam para o futuro, já que elas edificaram os pilares para o que poderia vir a acontecer. Não era ingênua, contudo, ou imatura a ponto de não perceber as vontades dos envolvidos naquela sequência de eventos. Só que o ponto nevrálgico voltava-se inevitavelmente para seu pai, ele que talvez possuísse a oportunidade de quebrar a cadeia e direcionar o futuro para outra direção.

Odiá-lo...? Não. Não! Não era capaz... e nem queria ser... bem como não existiam condições de olhá-lo sem ressentimento, pois ele era responsável.

Voltou-se para ele.

- Minha mãe. Responda-me, mestre. Nisso tudo...  apenas ela acabou por não ter mais saída, não ter mais volta. Que... que significado pode ter tido a morte dela? Não foi evitado nada... nada.

- Ellin...

- Não. – ela levantou a mão para impedi-lo de se chegar mais – Não me chame assim. Responda... apenas responda.

Luke semicerrou os olhos, a testa franzida. Suas mãos, porém, não se fecharam. Fitou-a diretamente, a voz firme.

- A morte dela acabou por impedir que Ben sucumbisse às sombras... a Snoke.

- Não. – ela também foi firme, controlada – Ele se voltou para as trevas agora. Ben acredita que somente assim poderá impedir Snoke e Kylo.

- Ele não está nas sombras, embora muito perto. E faz isso conscientemente, um caminho muito perigoso, mas senhor de si... por escolha, não por submissão ao Lado Sombrio. – juntou as duas mãos, a metálica sobre a humana - Quando criança, você viu...  Ele trilhava um rumo cada vez mais escuro, seduzido pelo próprio poder e através da influência de Snoke. Ele experimentou o Lado Sombrio... e não recuou. Ele estava se afundando lentamente,... Rey.

- Você não o impediu. Você não conseguiu protegê-lo de si mesmo. Ele era uma criança!

- Fiz o que pude... e não foi o suficiente com Ben e com Lore. Eu falhei.

- E minha mãe teve que morrer para isso.

- Não era para ser assim... Não era para Lore morrer. Não era para ninguém morrer. Mas  Ben já se achava comprometido nas sombras. Infelizmente, somente quando Ben matou alguém que ele amava,  despertou do destino a que se encaminhava. – a voz prosseguia objetiva, em um grande esforço –  Essa tragédia... todavia, mudou o futuro de Ben... a tempo. 

- À custa de minha mãe... para salvar você.

- Não era isso que desejei,  sabe muito bem.  Acredita mesmo que eu não preferiria estar no lugar de Lore, se isso fosse possível? Você viu como aconteceu.

- Ninguém tinha que morrer. Ela... tinha conseguido sair do transe.

- E isso Ben não deve saber. Será um peso ainda maior do que ele já carrega.

- Ben...  – semicerrou os olhos, engolindo em seco. Murmurou entredentes – Por que não impediu Ben de ir embora e se perder naquele monstro? Por que não afastou minha mãe quando tinha tempo?  Você foi egoísta, pai!

Aquilo fora cruel e arrependeu-se logo após proferir aquelas palavras. Falara para agredi-lo literalmente, um soar de sua dor, pois sabia que sua mãe não se afastaria mesmo que ele mandasse. Havia assistido a conversa dos dois... a vida dos dois. Conhecera sua mãe naquelas lembranças e naquela visão. A vontade dela contribuíra para os acontecimentos, ciente do risco que correria. E Lore havia sido feliz... ela mesmo lhe dissera. Ferir seu pai não a traria de volta.

Mas não expressou seu arrependimento.

- Não sei quais os resultados se tivesse ido por outro caminho. Não sei se Lore estaria viva nesse outro futuro. Se você existiria.  Se Ben se voltaria para as trevas ou não... se minhas ações fossem outras. Porém, eu tinha que escolher e nenhuma das alternativas trazia a certeza de que tudo acabaria bem.  Apenas sei o que resultou de minha decisão. Não me defenderei das escolhas que fiz e te levei aos fatos justamente para que chegasse às suas próprias conclusões sem minha interferência. – Luke falou gravemente -  Mereço sua revolta e suportarei o que você decidir quanto a mim. Mas o que realmente importa é se você merece a revolta que impôs a si mesma e como lidará com ela.

- Não fugirei de minhas responsabilidades, se é o que está imaginando.

- Sei que não fugirá. O que pergunto é como se portará diante delas... você consigo mesma. Rey... filha... precisa falar comigo.

Luke se aproximou de sua filha e ela recuou.

- Há coisas muito mais importantes que devem ser decidas do que... nós.

- Sim, existem. E quer tratar delas por sua relevância ou para se esquivar do que envolve a nós dois?

 - Não quero falar sobre... nós. Não quero... agora.  Preciso de tempo. Preciso que todas essas lembranças sejam minhas realmente mais uma vez. Preciso entender o que sinto quanto a tudo...  a você, diante de tudo. Só que não há tempo. Snoke me quer junto a Kylo Ren. Isso não pode acontecer... nem comigo, nem com Ben.  Bilhões de vidas dependem do que faremos aqui. – empertigou-se, um leve tremor nos lábios, as mãos fechadas e tensas -  Treine-me. Agora lembro-me de tudo... o que já sabia antes de Jakku. Não precisa ter mais... cuidado no que me ensinará... ou nas situações nas quais me exporá.

- Age como alguém que não tem medo. Isso não é verdade.

- E não é. Estou com medo, sim. Mas não posso mais deixar o medo me impedir.

- Reconhece e enfrenta seu próprio medo. Isso é bom. Melhor do que eu na sua idade.

- Não tente nos aproximar como pai e filha. Sou sua padawan.

- Não deixará de ser minha filha e eu sempre serei seu pai. – ele deu um passo em sua direção e a segurou com delicadeza pelo antebraço, não permitindo que Rey escapasse dessa vez – Seu estado de espírito quanto a si mesma e quanto a mim pode intervir no seu aprendizado. O que somos... seja pela vida que já tivemos juntos, seja pelo o que agora a vida nos exige... você me pede para que eu a ensine na Força em hesitações. Está preparada para que sua mágoa para comigo não sabote seu aprendizado?

- E você está disposto a não permitir que seu amor por mim te impeça de ter que fazer o que é preciso?

Os dois se entreolharam profundamente. Em ambos, dúvidas... se seriam capazes de cumprirem o que se propuseram. Em ambos, a determinação para realizar o que era necessário.

Luke ergueu a mão sem tirar os olhos de Rey e o bastão, deitado e esquecido na areia atrás dele, voou em sua direção, plainando entre os dois à altura de suas mãos. Com o olhar firme, ela fez que o cristal arroxeado flutuasse a centímetros acima do bastão.

- Chegou a hora de finalizar a construção de seu sabre de luz. Precisa de algumas informações antes de iniciarmos. O cristal é o coração da lâmina. O coração é o cristal do jedi. O cristal é único para cada sabre e escolhido nas Cavernas de Cristal de Ilum pelo iniciado, guiado pela Força. O cristal é o coração do Jedi. Ele é translúcido em seu estado primordial e adquire a luz diante do que há no espírito de quem o escolhe.

- Este cristal não me pertence. É o de Ben. É o espírito de Ben no cristal.

- Não há como nos arriscarmos a ir às Cavernas para você escolher o seu cristal. 

- Como poderei ter meu sabre de luz sendo o coração dele?

- Acredita que o coração de Ben não te aceitará? Vocês estão unidos... de forma mais íntima que se possa imaginar, Rey. Sabe melhor do que eu.

Ela não piscou, sem respirar. Ela sabia... ela sentia.

- O cristal de Ben no bastão de minha mãe. – sussurrou.

- E unidos por você... em um sabre de luz. O seu sabre de luz.

O bastão estremeceu e as peças que o constituíam se desconectaram e começaram a plainar em sua frente. Uma corrente elétrica envolveu Rey e viu-se hipnotizada pelos pedaços de metal a dançarem no ar. Sentiu seu corpo vibrar com aquelas peças, a mesma frequência, o mesmo tom. A maresia se adensou e grudou-se em seu rosto, grãos minúsculos de areia a acompanharem. O som das ondas do mar adquiriu outra nota, como que a fazerem parte do que ali acontecia. A areia aos seus pés bradava. As rochas da enseada cantavam. O mestre... seu pai... sua energia a tocar a todas aquelas minúsculas expressões de vida ao redor dela... junto com ela! Seu pai... seu pai...

O cristal girava junto com o conjunto desconexo cromado. Luke se posicionou atrás de Rey e assistia a Força a envolver sua filha e a ele. Piscou lentamente, inserido naquele poder, a vaga lembrança de ele mesmo construir seu próprio sabre de luz sozinho há tantos anos atrás a lhe roçar a mente. Havia sido solitário, mesmo com a Força se expressar. E agora... agora com sua filha... ao lado de sua filha. A emoção o envolveu. Sua filha... sua filha...

Uma luz nasceu no âmago do cristal arroxeado que flutuava, crescendo em potência, expandindo-se, iluminando pai e filha em tons púrpuras de múltiplas gradações disformes, oriundas das rachaduras. Aqueles filetes brilhantes alcançaram Luke e Rey com sua luminosidade e a essência de Ben lhes foi sentida, tocando-os em suas almas. Rey abriu a boca, mas não emitiu nenhuma palavra, a voz embargada, comovida com aquela energia tão familiar e tão amada. Luke teve seus olhos cheios d’água, segurando as lágrimas ao ter a vibração de seu filho adotivo tão querido perto de si.

As peças metálicas se moveram com rapidez, uma por uma, retornando ao seu lugar, o bastão se transformando gradativamente em um sabre de dupla empunhadura. A tampa do pequeno receptáculo, no centro do bastão se abriu e o cristal desceu mansamente para seu lugar, encaixando-se nas juntas e fios, a luz se condensando naquele pequenino lugar e irradiando-se por todo o interior do sabre e iluminando-o de dentro para fora.

 Uma vibração cálida alisou o rosto de Rey suavemente, como um carinho.

 - Mãe...

O aroma de rosas tocou delicadamente os lábios de Luke, como um beijo.

 - Lore...

 Naquele fugaz instante, os quatro se encontravam unidos.

O sabre estava pronto.

 ****************************

 O tempo fora sempre seu inimigo... principalmente a ausência dele.

 Ben permanecia de pé, na soleira da caverna e olhava o horizonte sem fim de dunas antes acastanhadas pelos dois sóis poentes. Agora em escuras, parcamente iluminadas pelas poucas estrelas de uma noite escura... e interminável.

 Desde que caíra no mundo interno construído e oculto no labirinto de sua mente após ter dado morte misericordiosa àquelas mulheres moribundas, atacadas e mantidas ainda vivas por Kylo, perdera suas forças... e seus planos. E suas antigas convicções. Não conseguiria tomar seu corpo novamente e provavelmente seria derrotado por Ren, caso este o encontrasse. Ele o buscava, podia sentir. Mais cedo, mais tarde, Kylo o encontraria e enfrentar-se-iam.

 Rey conseguira achar a ele, Ben, com facilidade, após sua queda. Ela não possuía suas memórias então e seu ato foi mais um reflexo do que intencional, a mente dela buscando a dele, invadindo seu mundo interno trazida pelo magnetismo existente entre os dois desde que ele salvara sua vida enquanto recém-nascida, quando suas energias se entrelaçaram e o coração dela voltou a bater para a vida.

E ele a expulsara de seu mundo interno... para sua segurança.

Tempo... tempo... não tinha noção de quanto tempo no mundo real se passara desde então. No seu eterno agora, ele se mantinha... e precisava de todo o seu controle para não se perder na ausência da sequência temporal. Respirou fundo.  Pois agora não era mais uma opção permanecer naquele limbo. Não havia como retornar à vida externa.

 Agora seu refúgio se tornara literalmente uma prisão... a aguardar seu carrasco.

 Voltara-se para as sombras... para aquele ódio guardado e aprisionado dentro de si, desde que tirara a vida de Lore, a última vez que invocara seu poder através daquele sentimento obscuro. Necessitava ser muito mais do que fora até aquele momento para combater Kylo e Snoke. Precisava buscar sua própria essência, essência essa que, quando criança, escapara de seu controle e o dominara.

 O ódio congelado desde aquela época... encapsulado, aprisionado em camadas de ensinamentos jedis e supervisão de seu mestre. Controlado. Contido. Forçado a seguir outra direção, direção esta que ele, Ben, aceitara no começo completamente, sem questionar, tanto no controle do ódio quanto nas ideias jedi. Fora preciso. Salvara-o naquela ocasião... salvara-o de se perder nas sombras e na culpa. A luz do seu mestre o resgatara do poço. Contudo, à medida que os anos ficavam para trás, as premissas jedi das quais ele nunca concordara e abraçara por obediência,  incomodaram-no a ponto de ele voltar a se questionar seriamente.

A batalha de Noah o marcara para sempre... nesse tocante, aos seus dezesseis anos. Zoe. Zoe... a primeira garota que beijou. A primeira moça com quem fez sexo. A garota, com a mesma idade sua, que se transformou na rainha de Lumenere; que demonstrou para ele com seu exemplo, suas ideias e ações, que havia uma zona intermediária na qual ele poderia encontrar algum conforto entre o que pensava e o que se predispusera a fazer como padawan. Que mostrou a ele confiança como homem. Ela lhe abrira uma nova perspectiva e jamais, jamais a esqueceria.

Desde então, não negava mais suas opiniões a si, e seguia, na ação, os preceitos jedi. Não se pressionava a se tornar um jedi em seu interior e não violava as atitudes jedi. Não era perfeito, claro... porém muito melhor do que se transformar internamente no que jamais seria. Ali vislumbrava a possibilidade de um futuro caminho intermediário.

 Após entregar o comando do corpo a Kylo e viver em seu mundo interno desértico, criado especificamente para isso, pudera refletir muito no espaço entre vigiar seu duplo, emergir para o corpo e assumir sua vida por breves períodos. Lore já demonstrara esse meio termo... entre as luzes e as trevas, uma postura diversa de seu tio. Naquela época, ele, Ben, desejara seguir esse rumo inusitado para ele, porém não possuía força suficiente em si para resistir ao domínio do ódio. Essa trilha não era acessível para ele.... e agora, seria.

Perigoso beirar às sombras... o ódio ali. Suspenso... como controlá-lo sem as premissas jedi? Sua força de vontade, disciplina e foco teriam que ser enormes, para dominá-lo em vez de ser dominado. Usá-lo para acessar o seu poder sem se perder. Usá-lo... tocá-lo... inevitável  sombrear-se... impossível utilizar as trevas e sair incólume.

 Era o único caminho. Não se pouparia naquela empreitada. Colocar-se-ia em risco para ter chances de vencer as trevas. Sombras contra sombras.

 Adulto agora. Vivendo, segundo suas contas do mundo externo, durante aproximadamente dez anos naquele mundo irreal a vigiar e controlar Kylo. A esperar que Snoke revelasse seus planos para sabotá-los. A esperar uma chance na qual Snoke se mostrasse vulnerável para matá-lo. Porém aquele ser trevoso, mesmo com Kylo Ren como seu primeiro general e mais próximo alcólito, nunca se expusera e muito menos seus objetivos por detrás do domínio da galáxia. Ele insinuava algo muito maior... algo aterrorizador... sem dar detalhes. E Rey era a peça chave para isso, juntamente com Kylo. Nada mais fora esclarecido.

 Ellin.  Rey.

Ellin. A criança que acompanhara desde bebê. A criança que amara  e que protegera. A criança que fora sua amiga mesmo com a diferença de idade. A criança que despertara todo o carinho, tudo que ele tinha de melhor.

Rey. A mulher que encontrara. A mulher que tivera em seus braços. A mulher de olhos verdes. A mulher com o perfume de flores silvestres que o inebriava. A mulher forte e resoluta que enfrentara Kylo. A mulher que passou a persegui-lo em seus sonhos acordados. A mulher que o perturbava.

E que Kylo Ren desejava ardentemente.

Com os punhos cerrados, saiu da caverna e alcançou a planície arenosa, as dunas ao horizonte. Kylo desejava Rey. Isso esquentava o sangue em suas veias. Antes de sua queda, enxergara os pensamentos de Kylo quanto a ela. O desejo por Rey era imenso... uma versão distorcida do que ele, Ben, sentia por ela. Pois o anseio de Kylo era sinistro, egoísta e sombrio. Ele não a amava. Kylo não era capaz de amar... porém nutria uma obsessão doentia por Rey. Rosnou para si mesmo, permitindo-se experimentar o ódio com Kylo. Monstro... quando surgisse o momento certo, destrui-lo-ia com satisfação... mesmo que morresse com ele.

Respirou fundo. Calma. O frio ódio não podia cegá-lo. Controle. Lembre-se... lembre-se... lembre-se que Rey poderia ser o ponto fraco de Kylo. E ele, Ben, teria que ter coragem suficiente para ser cruel com Rey, a fim de que Kylo fosse derrotado. Sim... esqueça a dor que sente por fazer o que teria que fazer... esqueça... seu propósito. Não se esqueça de seu propósito.

Não estava forte ainda para lutar com seu inimigo, mas suficiente para plasmar um traje decente para si, todo negro, o que sempre usara. O sabre de luz roxa já pendurado em seu cinto. As botas de cano alto, os cabelos penteados, a face sem cicatriz. Sim... agora composto.

A um levantar de sua mão e com os olhos penetrantes, em um esforço de vontade, incontáveis arcas emergiram da planície arenosa, das dunas, das terras distantes, formando ondulações escuras no horizonte. Cada caixa, cada receptáculo continha imagens, lembranças, pedaços de recordações que foram ocultas de Kylo desde que criara o duplo. Todo o amor que Ben negou à formação de Kylo. Todas as reminiscências de alegria, de prazer, de carinho, de afeição que ocultou de seu duplo, para que ele se tornasse sombrio o suficiente para convencer Snoke há quase dez anos atrás. Toda a vida que Kylo não conhecera. Toda a luz que Kylo jamais experimentara.

E agora... à espera... dele. Com a armadilha montada.

De repente, um tremor no ar. Algo diferente. Ben franziu o cenho. Acionou o sabre púrpura.

Um vulto se encaminha em sua direção, ao longe, entre as arcas desenterradas. Em princípio, andava na penumbra daquela noite com poucas estrelas, uma sombra andarilha. Quando já trilhara boa parte do caminho, uma luz iluminou aquele vulto e revelou sua identidade.

Ben travou a mandíbula.

Era Rey.

 


Notas Finais


Olá!

Este capítulo é de transição, posicionando Rey em relação a Luke e reapresentando Ben em seu mundo interno, após sua queda nos primeiros capítulos da história (referências: capítulos Castelos de Areia de um Reino Perdido e Noite Escura da Alma).

Zoe foi uma prisioneira na Batalha de Noah, quando Ben tinha dezesseis anos e viajava como padawan, junto com seu mestre Luke. A história de Zoe e Ben se encontra na sidestory Antes do Despertar - Crônicas Star Wars: Ben e Rey, nos capítulos 2, 3 e 4. Esse período foi muito importante para Ben, tanto para suas dúvidas quanto à Força quanto como homem.

A história do nome "Rey" está descrita no capítulo 1 dessa mesma história.

https://spiritfanfics.com/historia/antes-do-despertar--cronicas-star-wars-ben-e-rey-9393919

O próximo capítulo englobará, entre outros assuntos, o encontro de Ben com Rey (já com suas memórias) e como eles agora se vêem, após o passado revelado.
Também trará (o que pretendo) Kylo Ren novamente em ação, dirigindo-se para Naboo, a fim de se deparar com Leia.
Agora a história se acelerará com os acontecimentos, pois as cartas foram mostradas.

Capa:
https://www.scifidesign.com/wp-content/uploads/2016/04/Luke-Skywalker-Teaches-Rey-How-To-Build-A-Lightsaber.jpg


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